segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Antropologia cristã

Matheus Viana    

No afã de conhecer quem é e, consequentemente, encontrar sentido para sua existência, o ser humano criou ao longo da história referências antropológicas. Os homens das civilizações mais antigas que a história registra - as mesopotâmicas - criaram deuses antropomórficos (forma de homem). Como estavam mais próximos do evento da queda, as necessidades ética e religiosa - produtos da Imago Dei ter sido deturpada no interior do ser humano - geravam neles o desejo de criar substitutos para supri-las. Estes “deuses” foram criados à imagem e semelhança do homem. O historiador Jean Bottero afirmou:

     “Para dar sentido ao mundo e à própria existência, eles haviam, portanto, postulado uma sociedade sobrenatural de ‘deuses’, concebidos à sua própria imagem superlativa”.[1]

Vemos, então, que o modelo antropológico tinha como referência uma plêiade de deuses, o que denota as necessidades ética e religiosa - pois são indissociáveis - sentidas pelo ser humano. No entanto, ele é o avesso do parâmetro antropológico original. Os homens das civilizações mesopotâmicas tinham razão sobre o fato de que o que o homem é e o sentido de sua existência não serão encontradas nele mesmo, mas em alguém além dele. Mas estavam equivocados no tocante a quem é este alguém. Como podemos ver, estes seres os quais atribuíam como referência, apesar de estarem além do homem, eram derivados dele. Algo contraditório e que reflete a religião ególatra. Ou seja, o desejo de autoconhecimento e a falta de referência fizeram com que criassem, a partir deles mesmos, modelos e os divinizaram.

De onde surgiu as necessidades ética e religiosa? De onde surgiu o desejo de autoconhecimento? As respostas estão no modelo antropológico judaico-cristão. Ele se divide em três aspectos coesos: ortopedia, ortodoxia e ortopraxia. Ortopedia, segundo o senso comum, é o ramo da medicina que estuda os ossos. Contudo, seu significado semântico é mais amplo. O termo é a junção de duas palavras gregas: orto (correto/original) e pedia (que é derivada de paideia, criança). Sintetizando, ortopedia é o modelo correto com que Deus criou o ser humano, ligado a ortogênese.
    
O ser humano foi criado por Deus à Sua imagem e conforme Sua semelhança (Gênesis 1:27). O texto hebraico descreve os termos imagem e semelhança como tselem e demuth, respectivamente. Sobre isso, elucidei no livro Culto racional:

     O termo tselem é derivado da palavra tselel que significa sombra. Esta imagem relatada no texto bíblico simboliza uma coisa projetada sobre outra, assim como a nossa sombra é resultado da luz solar ser projetada sobre o nosso corpo. O caráter e a ética de Deus (ética, aqui, não possui apenas o significado de conjunto de leis e normas, tampouco o sentido que a teologia liberal aplica ao termo, mas à plenitude do padrão de vida que Deus outorgou ao ser humano, manifesto por Cristo quando encarnou) foram estabelecidos a nós a fim de serem refletidos na criação.
    Por mais que os hebreus utilizaram, na escrita bíblica, de repetições, o uso do termo demuth, ao invés de usar apenas tselem, tem um motivo. Quando analisamos o texto de Gênesis 1:26-27 com o todo bíblico, vemos que imagem se refere ao caráter (a maneira de ser, pensar e agir, que é definida como ética divina) de Cristo (a segunda pessoa da Deidade) – incluindo, claro, a racionalidade – projetado no homem e manifesto através dele. É por isso que o apóstolo Paulo afirmou: “Aos que de antemão escolheu, também os predestinou para serem conforme a imagem de seu filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.” (Romanos 8:29). E semelhança é que o ser humano, por portar tal caráter (imagem), exerceria sobre a terra - que Deus criou e onde lhe colocou, com todas as coisas que nele existem – o mesmo governo que o Criador exerce sobre os céus. Por isso o salmista declara: “Os céus são os céus do Senhor, mas a terra ele deu aos filhos dos homens.” (Salmo 115:16)[2]”.

Além disso, as Escrituras afirmam: “Formou Deus o homem do pó-da-terra, e soprou em suas narinas de seu fôlego de vida, e ele se tornou um ser vivente” (Gênesis 2:7). Vemos aqui a descrição do processo de criação do homem. Deus concedeu-lhe um corpo/físico, soprou em suas narinas de Seu fôlego (Espírito) de vida, e ele se tornou um ser vivente capaz de pensar, sentir, desejar e escolher. Em algumas traduções aparecem a expressão alma no lugar de ser. Isso se dá pelo fato de que a septuaginta – tradução grega do Antigo testamento – traduz a expressão nefesh como psique, que por sua vez foi traduzida como anima na versão latina Vulgata e, posteriormente, como alma para o português. No entanto, conforme afirmei no livro Culto racional:

     “... a alma para um judeu não tem a mesma conotação que possui no pensamento ocidental, influenciado pelo pensamento grego, sobretudo platônico. Nefesh, embora traduzido como alma para o português, fala do ser humano integral. Um judeu não faz a dicotomia clássica que os ocidentais fazem de corpo e alma. Portanto, amar a Deus com toda psique é amá-Lo com todo o seu ser, com tudo o que é”[3].

Munido de um corpo e da capacidade de pensar, sentir, desejar e escolher (psique), o homem recebeu tais atributos, presentes em sua ortopedia, com um propósito: exercer ortodoxia. Esta expressão é comumente traduzida – ou interpretada – como doutrina correta, o que não é errado, mas limitado. O conceito contido na expressão doxa abarca diferentes significados. Platão, por exemplo, em seu livro República, usou este termo para falar do conhecimento baseado na opinião, que é contrário ao epísteme, que é o conhecimento da verdade sobre a realidade adquirido na Academia. Já os apóstolos aplicavam a esta expressão o significado de glória. Ou seja, ortodoxia refere-se à forma correta de glorificar a Deus.
    
No processo da criação do homem por Deus, relatado em Gênesis 1:28, vemos dois momentos. O primeiro é quando Deus lhe abençoa – lhe concede o fôlego de vida -, o que faz com que o homem seja consciente de sua existência. No entanto, embora munido de tal consciência, ainda não conhecia a razão (sentido) de existir. Foi quando Deus lhe revelou-a: “Disse Deus: ‘Sejam férteis e multipliquem-se...”. Assim, o homem só pode encontrar a razão plena de Sua existência quando conhecer a plenitude do propósito de Deus à Sua vida. E, com isso, exercer ortodoxia. Mas, como podemos ver, o propósito que Deus instituiu ao homem no tocante à ortodoxia nos leva à ortopraxia. Uma vez que o homem foi criado de acordo com a ortopedia de Deus a ele, ela determinaria a forma como ele cultuaria a Deus (ortodoxia) e, com isso, exerceria na terra o governo que Deus exerce nos céus através de suas atitudes (ortopraxia).
    
Com relação a estes três elementos da antropologia judaico-cristã, temos a tríade cultivo-culto-cultura. O ser humano foi criado por Deus à Sua imagem e conforme a Sua semelhança (ortopedia) ao receber o fôlego de vida sobre seu corpo, feito do pó-da-terra. Ou seja, o homem foi o cultivo de Deus. Isso aconteceu para que ele realizasse a vontade de Deus a Ele de cuidar e cultivar o jardim (culto), a fim de exercer o governo de Deus sobre a criação (cultura) – Gênesis 2:15. Esta tríade contempla o homem de forma integral.
    
Jesus foi o modelo ortopédico de Deus ao ser humano (Romanos 8:29, I João 2:6). Na medida em que somos conformados neste modelo, pela obra do Espírito Santo e a Palavra de Deus em nós (II Coríntios 3:18), vamos praticando ortodoxia/culto e isso determina nossa ortopraxia/cultura. Vemos esta tríade em Atos 1:8, que marcou o nascimento da Igreja em Jerusalém, em Pentecostes. “Mas recebereis poder ao descer sobre vós o Espírito Santo (cultivo), e sereis minhas testemunhas (culto) tanto na Judeia, em Samaria e até os confins da terra (cultura). Os apóstolos se submeteram a esta antropologia.




[1] BOTTERO, Jean. No começo eram os deuses; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 172.
[2] VIANA, Matheus. Culto racional: A interação entre as razões divina e humana. Ribeirão Preto. Editora Legis Summa, 2016. p. 17.
[3] Ibid. p. 31.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O limbo do silêncio

Matheus Viana    

“Ai de vós, mestres da lei e fariseus, hipócritas!” (Evangelho segundo Mateus 23:13). Tais palavras saíram dos lábios de Jesus. E conforme Ele mesmo preconizou: “A boca fala do que está cheio o coração” (Evangelho segundo Mateus 12:34). O coração de Jesus estava farto da devoção incoerente que, afirmando – e acreditando – obedecerem a Deus, os alvos de Sua severa repreensão exerciam e, com isso, desviavam os homens cada vez mais Dele.
    
Na esteira desta narrativa, proponho-lhe: Imagine qual seria a realidade dos judeus se Jesus não proferisse tais palavras, mas ficasse em silêncio! Imagine se Ele agisse conforme muitos dizem: “Jesus, fique na sua, cuidando de sua vida e ensinando Seus discípulos! Deixe os fariseus e os mestres da Lei com os seus erros para lá!”. Em outras palavras: “Permaneça no limbo do silêncio!”.
    
Imagine se os apóstolos – os primeiros discípulos de Jesus Cristo - fizessem silêncio frente às seitas que ameaçaram a Igreja cristã, que se espraiava por todo o império romano, como os judaizantes, os gnósticos, os libertinos e os nicolaítas! Imagine se Justino - o mártir -, Orígenes, Irineu entre outros se calassem diante do escárnio que a fé cristã sofreu! Imagine se Atanásio permanecesse em silêncio diante da heresia ariana que pervertia a Pessoa de Jesus Cristo durante o concílio de Niceia!
    
Imagine se Jan Huss, em Praga, e John Wycliff, na Inglaterra, permanecessem em silêncio em relação ao abandono das Escrituras por parte da igreja romana! Imagine se Lutero permanecesse em silêncio em relação às indulgências e a tantos outros erros e abusos cometidos pela mesma instituição religiosa durante o papado de Leão X!
    
Jesus foi chamado de blasfemo (Evangelho segundo Mateus 26:65). Os apóstolos foram considerados apóstatas e pertencentes de uma seita chamada Caminho. Em outras palavras: hereges. Jan Huss foi queimado como um... herege. Lutero, até hoje, assim como os protestantes, independente da vertente ao qual pertençam, são considerados pelos católicos romanos como traidores e hereges.
    
Qualquer semelhança não é mera coincidência. “Se você quiser viver o Evangelho, viva-O de forma particular e deixe a gente viver o nosso evangelho”. Este é limbo do silêncio atual proferido, como um mantra, por muitas denominações evangélicas e direcionado às vozes que analisam as condutas do cristianismo vigente com a ortodoxia descrita nas Escrituras. Jesus veio para cumprir a plenitude da Lei de Deus (Evangelho segundo Mateus 5:17). Por isso foi enfático e direto (Evangelho segundo João 6:25-29). Foi público, abrangente e sem rodeios (Mateus 23:1-38). Tal firmeza O levou a se lamentar sobre Jerusalém. Pois a exposição do Evangelho, embora firme, sempre é feita em amor. Os apóstolos, por terem recebido este ensino, também.
    
Vejam a orientação do apóstolo Paulo aos filipenses: “Pois, como já lhes disse repetidas vezes, e agora repito com lágrimas, há muitos que vivem como inimigos da cruz de Cristo” (Filipenses 3:18). Como sabemos, estas cartas corriam as igrejas de várias cidades e eram lidas aos fiéis durante o culto público e coletivo. Ao seu discípulo Timóteo, advertiu: “Evite as conversas inúteis e profanas, pois os que se dão a isso prosseguem cada vez mais para a impiedade. O ensino deles alastra-se como câncer; entre eles estão Himeneu e Fileto. Estes se desviaram da verdade, dizendo que a ressurreição já aconteceu, e assim a alguns pervertem a fé” (II Timóteo 2:17).

João, o apóstolo do amor, não agiu diferente no tocante à manutenção da ortodoxia cristã. Falando sobre os anticristos de sua época, afirmou: “Eles saíram do nosso meio, mas na realidade não eram dos nossos, pois, se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco; o fato de terem saído mostra que nenhum deles era dos nossos. (...) Quem é mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o Cristo?” (I João 2:19-20 e 22). Há várias outras citações. Mas não quero deixar o texto exaustivo.
    
O argumento usado para arrefecer as vozes dissonantes é o do “Não se levante contra uma autoridade instituída por Deus!”. Sendo assim, não devemos nos levantar contra os abusos do governo, em qualquer uma de suas esferas; o impeachment da Dilma foi “coisa do cão”; e não devemos nos levantar contra o Ministério da Educação (MEC), por exemplo, no tocante à imposição da ideologia de gênero, entre vários outros artifícios que visam o estabelecimento de uma sociedade anticristã. Pois o Sr. Ministro da educação é uma autoridade. E toda autoridade é instituída por Deus, e por isso devemos obedecê-las, não é verdade? Não completamente, de acordo com Atos 5:19. Como é possível se levantar contra estas autoridades e, ao mesmo tempo, sustentar o discurso do “não se levante contra as autoridades”? O nome disto foi dito por Jesus: hipocrisia.
    
Jesus afirmou que Ele possui toda a autoridade nos céus e na terra (Evangelho segundo Mateus 28:18). Assim, só é munido de autoridade quem permanece Nele. Como permanecer Nele? Vivendo, de forma íntegra, segundo o Seu Evangelho. Quem não estiver de acordo com Ele, ainda que não tenha deixado de ser pecador (Cf. I João 1:8), o que é completamente diferente de não abandonar a vida de pecado, não possui autoridade diante de Deus, ainda que a tenha diante dos homens.
    
A cúpula religiosa que Jesus enfrentou estava munida de autoridade diante dos homens, mas não diante de Deus (Evangelho segundo Marcos 7:6-9). A da época dos apóstolos, idem. A igreja romana que classificou de hereges Huss, Wycliff e Lutero, não estava munida da autoridade de Deus, por mais que o Papa falasse ex-cathedra por ser o “vigário de Deus na terra”, pois havia abandonado o Evangelho de Cristo.
    
Posso imaginar Lutero, diante de alguns representantes da cúria romana, na dieta de Worms em 17 de abril de 1521. Após ser forçado a renunciar seus escritos, sermões e as 95 teses que fixara quatro anos antes na Catedral de Wittemberg, sob a ameaça de morte, disse: “Levo minha consciência cativa à obediência de Cristo”. Nesta mesma ocasião, propôs que aqueles representantes da cúria dissessem a ele onde seus escritos, sermões e teses estavam contra as Escrituras. Não havia nada errado.
    
Esta é a mesma proposta, guardadas as devidas proporções, que faço aos meus detratores. Chamar-me de herege por expor as Escrituras é direito deles. Mas meu dever é continuar a expor as Escrituras como base para refutar, em amor, mas com seriedade, o falso evangelho que desviam pessoas da fé, apesar de minhas imperfeições. Uma coisa não anula a outra. Excetuando Jesus, todos os demais citados nas linhas acima eram pecadores. João chegou a afirmar que aquele que diz não ter pecado é mentiroso, ou seja, pecador (I João 1:8). Paulo declarou: “Miserável homem que sou” (Romanos 7:24). Mesmo assim, não titubearam em expor o Evangelho e as práticas erradas de pessoas que pervertiam a fé. Por que eu, embora pecador, agiria diferente?

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Parábolas ou mistérios do Reino de Deus? - Parte II

Matheus Viana

Conforme Jesus afirmou, Seu propósito em contar a parábola não foi um artifício lúdico para facilitar o entendimento da multidão de ouvintes, como afirmam alguns. Foi, pelo contrário, de que não compreendesse: “Por esta razão eu lhes falo por parábolas: ‘Porque vendo, eles não veem e, ouvindo, não ouvem nem entendem’” (Evangelho segundo Mateus 13:13). Jesus, por sua vez, não falou de Si mesmo, ainda que possuísse (e possui) toda a autoridade para falar (Evangelho segundo Mateus 28:18). Mas evocou a profecia feita por Isaías: “Neles se cumpre a profecia de Isaías: ‘Ainda que estejam sempre ouvindo, vocês nunca entenderão; ainda que estejam sempre vendo, jamais perceberão. Pois o coração deste povo tornou-se insensível; de má vontade ouviram com os seus ouvidos e fecharam os seus olhos...’” (Vs. 14).
    
A percepção plena da realidade, em todos os seus âmbitos, bem como o entendimento dela são desdobramentos do reconhecimento e exercício do pleno Senhorio de Jesus Cristo sobre tudo e todos. A multidão - assim como a cúpula religiosa judaica, cujos membros faziam parte dela - não reconhecia Jesus como soberano e único SENHOR, conforme afirma o Shemá. A maneira como aquelas pessoas pensavam, sentiam e agiam denunciava tal carência. Sem o conhecimento de quem Cristo é, não é possível conhecer quem somos e como é a realidade a qual estamos inseridos, em todos os seus níveis. Pois eles são fundamentados nos absolutos que Ele estabeleceu na criação (Colossenses 1:15-17).
    
Assim, o empirismo científico não é suficiente, bem como o racionalismo naturalista também não é. O subjetivismo pós-moderno, por sua vez, não apenas é insuficiente para interpretá-la, como cria uma realidade paralela e reduzida. Antes de elucidar sobre a semente que germinou e produziu bons frutos, Jesus descreveu três situações distintas. A primeira é a que chamo de periférica, de caráter sensitivo (empírico). A segunda é a superficial, de caráter sentimental (emocional). A terceira é a materialista, de caráter secular (racionalista). Embora distintos, estão relacionados de forma coesa.
    
O fato de Jesus usar a linguagem da semente na terra é alicerçado no princípio do culto racional, que consiste na tríade cultivo-culto-cultura. O ser humano foi formado do pó da terra e recebeu do fôlego de vida de Deus (Gênesis 2:7). Somos, portanto, o cultivo de Deus. Seu propósito para nós consiste em, através do nosso cultivo, cultuarmos a Ele e desenvolvermos Sua cultura sobre toda a criação (Isaías 11:9). Processo chamado de mordomia, conforme elucidado por mim no livro Culto racional. Devemos compreender criação como a realidade que nos permeia em todos os seus âmbitos. Assim, somos a primeira terra que deve receber o cultivo da semente do Evangelho do Reino, mas não a única.
    
Toda a criação sofreu um intenso processo de degradação por conta da depravação oriunda do pecado original (Gênesis 3:17). Tal fato fez com que vários obstáculos surgissem, impedindo o florescer desta preciosa e soberana semente. A primeira situação elucidada por Jesus foi a parte da semente que caiu à beira do caminho. Aqui surgem algumas indagações: À beira de qual caminho? Em qual caminho temos trilhado? Os fatos falam por si. É nítida, na abordagem de Jesus, a existência de dois caminhos: um trilhado pela multidão e outro pelos discípulos. O trilhado pela multidão é o que conduz às bênçãos que Jesus pode oferecer. O outro conduz ao próprio Cristo. Quando Jesus afirmou ser O Caminho (Evangelho segundo João 14:6), não se referiu meramente a uma rota – externa a Ele - que iria mostrar. Mas afirmou que Ele é o próprio Caminho.
     
O salmo 18:30 diz: “O caminho de Deus é perfeito”. O texto hebraico, transliterado, afirma: “HaEl tamiyn darko (derekh) imerat”. A tradução literal deste texto é “O Deus caminho perfeito é”. Para que ele tenha sentido ao leitor de língua portuguesa, os tradutores utilizaram das seguintes formas: “O caminho de Deus é perfeito” e “Deus, cujo caminho é perfeito”. Mas, para os judeus, não é necessário o acréscimo de nenhum artifício para dar sentido a esta afirmação. O sentido para eles é claro e definitivo: O Deus é o caminho perfeito. Jesus, ao fazer tal afirmação, estava declarando que Ele é a plena personificação do derekh tamiyn. Por isso Seus discípulos ficaram conhecidos como a seita do Caminho. E não há outra forma de se achegar a Ele sem a obra do Espírito Santo em nós (Evangelho segundo João 16:8). E esta, por sua vez, é resultado de nos submetermos à Sua cruz. Pois, para que o Espírito Santo viesse sobre os discípulos, era necessário que Jesus primeiramente fosse crucificado (Cf. Evangelho segundo João 15:26).
    
Assim, seguir e viver um evangelho desprovido de cruz é estar à beira do caminho. Considerar, equivocadamente, a dicotomia vida secular/vida espiritual é estar à beira do caminho. Interpretar o Evangelho pelas lentes do secularismo, em suas várias nuanças, é estar à beira do caminho. Por isso Jesus afirmou, ao explicar a mensagem íntegra de seu ensinamento: “Quando alguém ouve a mensagem do Reino e não a entende, o Maligno vem e arranca o que foi semeado...” (Evangelho segundo Mateus 13:18 – Ênfases acrescentadas).
    

Ouvir e não entender. Conforme vimos anteriormente, não entenderemos a mensagem do Reino, de forma íntegra, sem submetermos nosso modo de pensar a Ele (II Coríntios 10:5). Ou seja, não devemos submeter a Ele apenas o nosso aspecto sensitivo, mas também o racional (Tiago 1:22). Isso, claro, como desdobramento de nosso comprometimento espiritual (coração). Eis o ‘x’ da questão. Qual é a epistemologia que fundamenta o pensamento do evangelicalismo moderno?

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Parábola ou mistérios do Reino de Deus? - Parte I

Matheus Viana

A parábola do semeador, contada por Jesus há milênios, é a descrição da realidade vocacional dos cristãos. De acordo com Ele, somos chamados a cultivar a semente do Evangelho do Reino de Deus. No entanto, esta não é uma tarefa simples. Há sobre ela alguns elementos os quais precisamos conhecer para seu êxito.
    
O primeiro é o fato de Jesus ter utilizado duas formas para emitir Sua mensagem. Cada uma delas com um público específico como alvo. Para a grande multidão que O rodeava, Jesus contou uma parábola, método comum entre os mestres judeus, também chamados de rabinos. Jesus era um rabino. E como tal, tinha seguidores (discípulos), conhecidos como talmidim. Para eles, a forma utilizada foi a descrição integral da mensagem.
    
Durante Seu ministério terreno, Jesus foi seguido, por muitas vezes, pelas multidões. Contudo, uma característica marcante de Seu legado foi a busca por discípulos, pessoas que não apenas O seguiam pelo que pudesse oferecer, mas pelo que era (e É): O Messias, Filho de Deus, o Deus encarnado. Nesta passagem, tal distinção é notória. Mas algo que chama atenção é que os discípulos, diferentemente da multidão, não ficaram satisfeitos com a elucidação de Jesus, o que os levou a indagarem-Lhe: “Os discípulos aproximaram: ‘Por que fala ao povo por parábolas?’ (Evangelho segundo Mateus 13:10). A resposta de Jesus revelou o motivo, que escancarou a distinção: “Ele respondeu: ‘A vocês é dado o conhecimento dos mistérios do Reino dos céus, mas a eles não’” (Vs. 11).
    
Parábolas eram histórias fictícias usadas como metáforas pelos rabinos para descreverem traços da realidade. E os discípulos, por serem formados na matriz religiosa judaica, sabiam disso. Tal fato faz brotar a questão: O que é o Evangelho do Reino de Deus para você? A resposta revela quem, de fato, és em relação a Jesus.
    
Muitos que se denominam cristãos são devotos a um “evangelho” que contempla apenas a vitória de Cristo e as bênçãos dela provenientes. Um reducionismo que dá origem a uma “realidade” paralela. Sim, uma espécie de esquizofrenia. Pessoas estão entorpecidas pela perniciosa “teologia” da prosperidade. Fato que as alienam no tocante à cruz que o próprio Jesus estabeleceu como elemento fundamental para o exercício de Seu discipulado – leia-se cristianismo: “Aquele que quiser me seguir, negue-se a si mesmo, tome cada um a sua cruz e siga-me” (Evangelho segundo Mateus 16:24).
    
A realidade, portanto, é nua e crua: Não há cristianismo sem Cristo. Não há como viver de acordo com o Seu legado sem ser Seu discípulo. Não há discipulado cristão sem cruz, sem renúncia, sem resignação. O apóstolo Paulo sintetizou, de forma brilhante, todos estes pontos ao preconizar: “Eu prego Cristo, e este crucificado” (I Coríntios 2:2). Qualquer proposta contrária é... Parábola motivacional, comum em muitos púlpitos.
    
O motivo de tal disseminação é que seus ocupantes não querem formar discípulos de Jesus. Querem atrair multidões que encham seus templos para que este inchaço demográfico transforme sua denominação em algo lucrativo e, ao mesmo tempo, dê a ela visibilidade – leia-se fama. É errado uma denominação cristã ter muitos membros? Não, desde que sejam discípulos, e não mera multidão.
    
Como professor da faixa etária infanto-juvenil, lido com alguns alunos que, mesmo professando Jesus Cristo com seus lábios, demonstram pela forma como pensam, sentem e agem que a conduta de vida que levam é totalmente alienada ao Evangelho de Cristo. O veem apenas como um subterfúgio que alimenta e satisfaz a religiosidade ególatra que lhes é peculiar. Não estão dispostos a ultrapassar esta embriaguez subjetiva rumo à sobriedade objetiva do Evangelho Pleno a fim de conhecerem e viverem a realidade integral que Cristo propõe ao ser humano. Interpretam parábolas como se fossem a realidade total do Evangelho.
    
Consequentemente, a ortodoxia cristã está sendo conformada aos preceitos modernos, ainda que frontalmente contrários ao caráter e essência do Evangelho de Cristo. Uma “pequena” demonstração disto é o fato de que adereços da cultura pop – como “super-heróis”, dinossauros, picadeiros circenses, “cultos” chamados de “baladas gospel” - são transformados, à exaustão, em elementos de culto ao SENHOR. E tudo isso, na maioria das vezes, trata-se de manifestações sinceras de devoção, o que é pior e denuncia o nível do engano presente em muitos altares.
    
Além da profanação do culto, esta conduta transforma Jesus em um mero pop star, deturpando Sua imagem e reduzindo Sua identidade. Conforme diagnosticou o historiador e sociólogo Leandro Karnal, sobre o que chamou de customização da fé: “O Jesus criado pela sociedade atual não transforma as pessoas, apenas concede seus desejos”. O apóstolo Paulo falou sobre isso muito antes e com mais propriedade: “Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina; ao contrário, sentindo coceira nos ouvidos, juntarão mestres para si mesmos, segundo os seus próprios desejos” (II Timóteo 4:3). Esta sã doutrina é o mistério do Evangelho do Reino que apenas os discípulos de Jesus Cristo entendem.
     
O “Jesus” usado como metáfora para justificar e satisfazer os desejos humanos, criados por uma sociedade líquida, conforme afirmou Zygmund Baumam, é uma realidade completamente distorcida em relação ao que Ele verdadeiramente É. Ela satisfaz as multidões. Mas não os discípulos que, comparados à grande multidão, são poucos. Embora em menor número, não se conformam a esta parábola. Pois a eles são dados, conforme o próprio Jesus afirmou, a capacidade de conhecer os mistérios do Reino de Deus.
    
Discipulado começa com o SENHORIO – o maiúsculo é proposital – de Jesus Cristo. Para a multidão, que se satisfaz com a parábola, basta o “Jesus” milagreiro, o “Jesus” coaching, o “Jesus” psicólogo, o “Jesus” administrador, entre outros. O “Jesus” que mais se aproxima de SENHOR é o que é considerado como líder. Contudo, não se engane! Este é usado apenas como modelo de como devemos liderar as pessoas em um caráter e estruturas corporativistas. Pois o organograma utilizado é baseado na hierarquia vertical, e não na horizontal preconizada pelas Escrituras, tendo Jesus como O Cabeça.
    
O “Jesus” que a multidão cultua não é O Eterno e Soberano Criador dos céus e da terra (Evangelho segundo João 1:1-3, Colossenses 1:15-17), O Cristo, Filho de Deus Altíssimo (Evangelho segundo Mateus 16:18), Deus que se fez homem (Evangelho segundo João 1:14, 14:9) e É revelado pelas Escrituras (5:39); mas várias faces de um “Gezuis” imaginário que é conformado aos anseios das pessoas que formam a multidão.