quinta-feira, 18 de junho de 2015

O maior mandamento

Matheus Viana

Certa vez um mestre da Lei perguntou a Jesus: “De todos os mandamentos, qual é o mais importante?” Jesus respondeu: “O mais importante é este: ‘Ouve, ó Israel, o Senhor, o nosso Deus, o Senhor é o único Senhor. Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o coração, de toda alma e de todo o seu entendimento e de todas as suas forças.” (Evangelho segundo Marcos 12:28-30).

Para um judeu - ainda mais para um fariseu como o que fez tal questionamento a Jesus -, guardar os mandamentos de Deus era o mesmo que cultuá-lo. Os mandamentos contidos na Lei de Deus era uma demonstração de Seus atributos em plena interação com o ser humano, a coroa de toda a criação.

Quando Deus, do cume do monte Sinai, ordena que Moisés transmita ao povo hebreu os dez mandamentos, emite o seguinte preâmbulo: “Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidão.” (Êxodo 20:2). Isso não foi mera lembrança, tampouco uma apresentação formal. Mas o relato de quem Ele era (e É) e o que fez. Tal relato tinha como intenção gerar no povo a consciência de cultuá-lo e senso de gratidão em exercer, continuamente, este culto, que Davi chamou de Ação de Graças (Salmo 100:4).

Lembremos que, por conta do pecado, o culto racional que existia entre Deus e o ser humano foi extinto. Por isso Deus precisou instituir uma forma de culto que levasse em conta a contundente corrupção e consequente degradação da natureza humana em relação à Sua Santidade suprema e imutável. Os quatro primeiros dos dez mandamentos focam a relação entre Deus e o ser humano (Êxodo 20:1-7). Pois é ela que fundamentaria o relacionamento comunitário. Sendo assim, o culto racional começa com a interação entre Deus e o homem a fim de que seja a base para a vida comunitária. Não há vida comunitária sem relacionamento individual com Deus, e vice-versa.

A resposta que Jesus emite ao fariseu traz um princípio fundamental. Ele citou o Shemá, que foi a ordenança que Moisés estabeleceu ao povo antes de atravessar o Jordão rumo à terra prometida, Canaã (Deuteronômio 6:4). Antes de analisar o caráter deste princípio, convém nos atentarmos à ação antecedente: ouvir.

Ouvindo a voz do Bom Pastor

“Ouve, ó Israel”. Shemá significa ouvir. Por que Moisés ordenou que o povo ouvisse a Deus antes de proclamar o mandamento citado posteriormente por Jesus como resposta ao fariseu que Lhe questionou? Por que o ato de ouvir é tão importante? A principal causa do pecado original foi o fato de Eva ter dado ouvidos à ardilosa proposta da serpente (Gênesis 3:4-5). Sua mente foi corrompida (II Coríntios 11:3), o que a levou a pensar e agir de forma completamente contrária à vontade de Deus. O restante você já sabe...

Ouvir refere-se a se atentar, receber informação, aprender. O apóstolo Paulo advertiu: “A fé vem pelo ouvir, e o ouvir vem pela palavra.” (Romanos 10:17). Ouvir é a atitude primordial de um aprendiz e também de um servo. Um aprendiz ouve o seu professor. Um servo ouve o seu senhor. Somos chamados a ouvir a Deus. Não foi em vão que Jesus disse em relação aos Seus discípulos: “O porteiro abre-lhe a porta, e as ovelhas ouvem a sua voz. (...) Mas nunca seguirão um estranho; na verdade, fugirão dele, porque não reconhecem a voz de estranhos.” (Evangelho segundo João 10:3 e 5). Quando Jesus aparece a João, na ilha de Patmos, e lhe ordena a escrever as sete cartas para as sete igrejas da Ásia, disse: “Aquele que tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas.” (Apocalipse 2:7).

Coração, alma e entendimento

Kardia, psique e dianoia. Estas são as expressões originais para coração, alma e entendimento, respectivamente, na descrição que aparece no livro do Evangelho segundo Marcos. Moisés exortou o povo hebreu a, depois de ouvir o Único Senhor, amá-lO de todo coração. Coração para um judeu não implica somente em um órgão físico, tampouco apenas ao núcleo de nossos sentimentos. Refere-se ao centro da personalidade e da vida do indivíduo. Por isso Salomão advertiu: “De todas as coisas que deves guardar, guarde o coração, pois dele procedem as fontes da vida.” (Provérbios 4:23).

O termo psique substitui normalmente o termo hebraico nephesh. Contudo, a alma para um judeu não tem a mesma conotação que possui no pensamento ocidental, influenciado pelo pensamento grego, sobretudo platônico. Nephesh, embora traduzido como alma para o português, fala do ser humano integral. Ou seja, um judeu não faz a dicotomia clássica que os ocidentais fazem de corpo e alma. Portanto, amar a Deus com toda psique é amá-Lo com todo o seu ser.

E por fim, mas não menos importante, dianoia. Este termo é traduzido, em seu literal, como intelecto, já que o termo grego nous é que é traduzido como entendimento, por exemplo, em passagens como Romanos 12:2 e II Coríntios 4:4. Dianoia é o próprio intelecto humano, ou seja, sua plena racionalidade. E foi justamente a dianoia que foi totalmente corrompida pelo pecado.

O apóstolo Paulo exorta em sua carta aos romanos: “porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e o coração insensato deles obscureceu-se. (...) Além do mais, visto que desprezaram o conhecimento de Deus, ele os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem o que não deviam.” (Romanos 1:21 e 28 – Ênfases acrescentadas). Sim, tal narrativa é a causa e o devastador efeito da queda. Quando a narrativa de Gênesis descreve o homem como alma ou ser vivente, refere-se a ele em sua integralidade. Tal significado abarca a capacidade de pensar, sentir, desejar e escolher.

Conforme vimos, Jesus recebeu tal capacidade para que pudesse compreender a vontade de Deus a fim de exercer, de forma plena e excelente, o culto racional que lhe fora estabelecido. Por isso o Shemá, conforme Jesus afirmou, é o mandamento mais importante. Pois observá-lo é amar a Deus com a totalidade do que somos, do que temos, do que pensamos e de como agimos.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Aprendendo a humildade - Parte II

Matheus Viana

Obs: Caso não tenha feito, faça a leitura da parte I deste texto para melhor compreensão.

O ardiloso argumento da serpente, que deturpou a mente humana (II Coríntios 11:3), foi de que, além de não morrer conforme Deus havia dito (Gênesis 2:17), seria como Ele, conhecedor do bem e do mal (Gênesis 3:5). O que seria isto senão a soberba de querer ser como o Criador? A humildade de Jesus se manifestou exatamente na contramão. Eva, uma humana, quis ser como Deus, ou seja, obter um conhecimento que era lícito apenas a Ele. Jesus, sendo Deus, tornou-se humano.

O fato de Eva ser seduzida a desobedecer a Deus também demonstra uma atitude egoísta. Ela recebera a ordem de, juntamente com Adão, ser fértil e multiplicar sua espécie a fim de encher toda a terra (Gênesis 1:28). Não é em vão que seu nome significa “mãe de todos os seres humanos.” (Gênesis 3:20). Também era consciente de que seria acometida pela morte (tanto espiritual quanto física) se comesse do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, o que lhe permitia saber que tal consequência não atingiria somente sua vida, mas também a de todos os seus descendentes. Mesmo assim, ela não levou isso em consideração.

O apóstolo Paulo começa sua carta aos filipenses fazendo uma aplicação prática da humildade de Jesus: “Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a si mesmos. Cada um cuide, não somente de seus interesses, mas também dos interesses dos outros.” (Filipenses 2:3 e 4). A humildade de Jesus não vai apenas na contramão da soberba humana, mas também do egoísmo.

Em minha opinião, um dos atributos mais marcantes contidos na humildade de Jesus foi a resignação. Ele se tornou humano como consequência de resignar – e não renunciar ao ponto de abandonar - o fato de ser Deus. De acordo com a ortodoxia estabelecida no Concílio da Calcedônia (451), que foi uma confirmação das doutrinas estabelecidas em Niceia (325) e Constantinopla (381), Jesus foi – e é – plenamente Deus e plenamente homem. Ele, ao tomar a forma humana, se submeteu às limitações, dores, dramas e tribulações que vieram a reboque. Ele resolveu viver os padecimentos humanos, incluindo a morte. O fato de Jesus ter morrido testifica que foi humano. E o de que Ele ressuscitou testifica que era – e é -Deus.

O resultado de tal resignação foi o altruísmo. Sim, o atributo que contrapõe o egoísmo humano demonstrado por Eva que resultou na Queda. Jesus, ao se tornar humano, tornou-se servo. Doulos é a expressão utilizada por Paulo, traduzida por servo. Doulos era a expressão que designava os escravos, algo comum nas sociedades hebraica e greco-romana. Ao ensinar sobre quem seria o maior no Reino de Deus, Jesus disse: “Vocês sabem que aqueles que são considerados governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Ao contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo, e quem quiser ser o primeiro deve ser escravo de todos. Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos.” (Evangelho segundo Marcos 10:43-45).

Ele usou os contextos de dominação política, que era o que o império romano exercia sobre a Palestina, e o do escravismo exercido por algumas famílias hebraicas, gregas e romanas como metáforas para o serviço que um postulante ao Reino de Deus deve exercer. Não foi em vão que Paulo utilizou a expressão doulos em sua carta aos romanos: "Vocês foram libertos do pecado e tornaram-se escravos da justiça." (Romanos 6:18). Ou seja, Jesus tornou-Se um escravo. 

Não foi em vão que, em seu contundente escárnio ao cristianismo, Friedrich Nietzsche, em seus livros Além do bem e do mal e Genealogia da moral, desenvolve uma dicotomia entre o que chamou de moral nobre e moral escrava. A moral nobre é a conduta egoísta, pavimentada pelas ações que praticamos como resultados de nossas próprias vontades e em prol de nosso bem-estar. Não é esta a filosofia que pavimenta a conduta humana, que por vezes recebe o nome de autoajuda e consequentemente a teologia da prosperidade? Claro que é. A moral escrava, por sua vez, é a conduta altruísta, que visa não o bem-estar próprio, mas o bem-estar do próximo. Foi exatamente esta a moral que Jesus exerceu. E isso não foi apenas Nietzsche, que terminou sua vida em um manicômio, que descobriu. Ele, porém, ignorou sua aplicação prática.

O Criador do universo tornando-Se escravo? Isso mesmo. Escravo de quem? De Deus em nosso favor. Pois Ele morreu em nosso lugar quando ainda éramos pecadores (Romanos 5:2, I João 4:10). Não apenas um mero escravo, mas um escravo maldito. Pois além de Paulo salientar o fato de Jesus ter se tornado escravo, ele explicou como Jesus exerceu tal escravidão: “E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo, e foi obediente até a morte, e morte de cruz.” (Filipenses 2:8).

Jesus não morreu no madeiro como coincidência ou mero acaso. Houve um princípio contido na Lei mosaica que apontava para a maneira – com seu consequente propósito - como ela aconteceria (Deuteronômio 21:23). Paulo fala sobre ele em sua carta aos gálatas: “Cristo nos resgatou da maldição da Lei quando se tornou maldição em nosso lugar, pois está escrito: ‘maldito todo aquele que for pendurado no madeiro.’” (Gálatas 3:13).

Um Deus que assumiu a forma humana, o que fez dEle um escravo. Escravidão que O tornou maldito e tal maldição O levou à morte. O Divino que se tornou humano. O Rei Soberano que se tornou escravo. O imaculado que tomou sobre si o pecado dos seres humanos. O Eterno que se tornou mortal. Sua ressurreição, além de testificar o fato de que também era Deus, inaugurou a nossa ressurreição pelo poder do Espírito Santo. É sobre isso que o apóstolo Paulo fala em sua carta aos coríntios (I Coríntios 15).

A pergunta que surge após esta reflexão é: como aplicamos, de forma prática, esta humildade em nossas vidas? Conforme Jesus orientou, devemos servir aos nossos próximos assim como Ele serviu. Ou seja, praticando a mesma humildade que Ele exerceu em nosso favor. “A ardente expectativa da criação aguarda pela manifestação dos filhos de Deus.” (Romanos 8:19). Eis a importância de aprendermos e exercermos a humildade praticada por Jesus.

Leia também: O efeito gangorra

Aprendendo a humildade - Parte I

Matheus Viana

Aprender, por si só, é um ato que implica em ser humilde. O culto racional que Deus deseja de nós também consiste em aprendermos todas as coisas que Jesus fez e ensinou (Evangelho segundo João 14:26, Atos 1:1). Entre elas está a humildade. Não é possível exercer cristianismo sem tal quesito. No entanto, o que é humildade? O que é ser humilde? Na árdua tentativa de responder tais questões, surge outra indagação: “como ser humilde?” Para respondê-la é necessário, primeiramente, responder as duas anteriores.

Fomos formados à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1:26-27, 2:7). Atributos que não se referem ao âmbito físico, mas ético. Há de considerar, todavia, que o termo ético não se resume ao conjunto de leis e normas, mas refere-se à plenitude do propósito que levou Deus a nos criar: pensarmos, sentirmos e agirmos de acordo com Sua soberana vontade. Por isso, fomos feitos de acordo com um modelo: Jesus.

Sobre isso, o apóstolo Paulo diz: “Jesus é a imagem do Deus invisível.” (Colossenses 1:15) em consonância com o apóstolo João: “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós. Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e verdade.” (Evangelho segundo João 1:14). Jesus Se encarnou para ser o modelo de ser humano que Deus deseja que sejamos. É isso que Paulo quis dizer quando afirmou aos romanos: “Aos que de antemão os escolheu, também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.” (Romanos 8:29).

Por que digo tudo isto? Para evidenciar o fato de que Jesus é o modelo soberano de humanidade e, consequentemente, também de humildade. Portanto, para respondermos as questões citadas anteriormente, é necessário analisarmos a humildade exercida por Jesus Cristo. Paulo elucida sobre ela em sua carta aos filipenses:

“Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a si mesmos. Cada um cuide, não somente de seus interesses, mas também dos interesses dos outros. Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus não considerou que o ser igual a Deus era algo a qual devia apegar-se; mas esvaziou a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo, e foi obediente até a morte, e morte de cruz.” (Filipenses 2:3-8).

Antes, porém, de entrarmos nos pormenores desta detalhada narrativa, reflitamos sobre as palavras do próprio Jesus: “... aprendei de mim que sou manso e humilde de coração...” (Evangelho segundo Mateus 11:29). Vemos aqui que a humildade de Jesus é precedida pela mansidão. As perguntas feitas no início deste texto são pertinentes também neste momento: O que é mansidão? O que é ser manso? Como ser manso?

Mansidão é obediência. Ser manso é ser obediente. Somos mansos obedecendo. Jesus, em tudo, foi obediente ao Pai. Tal atributo foi uma das características de Sua identidade: “... a própria obra que o Pai me deu para concluir, e que estou realizando, testemunha que o Pai me enviou.” (Evangelho segundo João 5:39). Sua mansidão (obediência) constante testificava de que era o Messias.

Não era, portanto, uma obediência forçada, mas plena submissão que foi produto de Seu desejo de Se submeter. A mansidão de Jesus era de coração pelo fato de ser Deus. Ele é o Logos divino, ou seja, o Verbo; a Palavra resultante da razão divina que trouxe o universo à existência (Evangelho segundo João 1:1-3). Para melhor compreensão deste tema, leia o texto O caráter de Logos divino. Ele planejou o soberano propósito, mas também o executou. Foi, portanto, o supremo objeto e, ao mesmo tempo, colaborador de tal propósito. Ele foi o “cordeiro que tira o pecado do mundo.” (Evangelho segundo João 1:29) por ser “o cordeiro morto antes da fundação do mundo.” (Apocalipse 13:8). Resumindo: foi a causa e o efeito. Também por isso é chamado de Alfa e Ômega (Apocalipse 1:8).

Mansidão é obediência proveniente do amor a quem obedecemos. Foi esta a mansidão a qual Jesus advertiu Seus discípulos a dEle aprenderem. Mediante tal fato, preconizou: “Quem tem os meus mandamentos e lhes obedece, esse é o que me ama.” (Evangelho segundo João 14:21). O exercício da mansidão resulta, por sua vez, em humildade. Conforme vimos, a humildade que Jesus nos ensinou é a que foi descrita por Paulo em sua carta aos filipenses. Em tal descrição vemos a contrapartida de alguns atributos que acometem o ser humano por conta de sua natureza caída.

Continua...