quarta-feira, 1 de abril de 2020

O voo de Ícaro e a proposta pós-moderna




Matheus Viana

O conceito atual de liberdade é a total capacidade de agir conforme os próprios impulsos e desejos[1]. O chavão “seja livre”, entoado à exaustão como uma espécie de mantra, carrega em seu bojo o intento de que o indivíduo não se prive de nenhuma vontade. Autocontrole – ou domínio próprio – é visto como um moralismo opressor. Nietzsche, o grande guru póstumo do niilismo pós-moderno que teorizou tal proposta, elucidou:

“O indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral (pois “autônomo” e “moral” se excluem), em suma, o homem da vontade própria, duradoura e independente, o que pode fazer promessas – e nele encontramos, vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do que foi finalmente alcançado e está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento de realização”.[2]

De acordo com o pensador alemão, há duas espécies de moral: a nobre e a escrava. A descrição citada acima foi sobre o indivíduo praticante da moral nobre. Assim, podemos ver que ele considerou como moral nobre a realização plena dos desejos do indivíduo à revelia de qualquer outra moral que os contrarie. Mas tal proposta só é possível de ser exercida se o senso de certo e errado que todo ser humano possui (que lhe confere a necessidade de seguir um padrão ético, independente de qual seja[3]) for relativizado ao extremo.
     
A proposta vigente de relativização de valores e do próprio conceito de verdade, que redunda na inversão moral tão evidente em nossos dias, define o tom do imaginário (intelectualidade) coletivo, também conhecido como senso comum, que determina a cultura e, consequentemente, o pensar, o sentir e o agir da grande massa. Diante desta situação, não há como não evocar, a fim de compreendê-la, o mito grego do Voo de Ícaro.
     
De acordo com o mito, Dédalo, arquiteto e artesão, projetou o labirinto onde habitava Minotauro e informou Teseu sobre como entrar e andar nele. Após Teseu seguir tais orientações e matar o Minotauro, o rei de Creta, Minos, ordenou que Dédalo, juntamente com seu filho, Ícaro, fosse preso no labirinto que ele mesmo projetou. 

Inventor e genioso como era, Dédalo projetou asas com pedaços de madeira, peles de animais e penas de pássaros revestidas com cera para fixá-los todos e dar-lhes consistência. Construiu dois pares de asas, deu um ao seu filho e o ensinou a usá-lo. O intento era único: se libertarem do labirinto. Para que isso fosse possível, havia duas advertências a serem consideradas: Uma de que não poderiam voar muito baixo para que as águas e o sal do mar Egeu não danificassem as asas; e a outra de que não poderiam voar muito alto para que o calor do sol não derretesse a cera e desintegrasse as asas. Depois de um certo tempo, ambos alçaram voo. Conseguiram fugir do labirinto. Embriagado com a façanha, Ícaro começou a voar cada vez mais alto, ignorando as advertências do pai, em direção ao sol.
     
Voar em direção ao sol. Frase que evoca um sentimento “heróico” (ainda que seja um heroísmo egoísta, peculiar da presente era) e poético. Posso ouvir, enquanto escrevo estas linhas, o sussurro que ecoa sobre os seres humanos devotos da pós-modernidade: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”. Por mais poético que pareça, o voo libertador de Ícaro foi a causa de sua ruína definitiva. Quanto mais alto voava, seduzido pela grandeza de poder estar e ver acima da cidade e das pessoas, convicto de sua auto-elevação, aproximou-se do sol. O calor derreteu a cera de seu par de asas que se desintegrou, causando sua queda fatal.
     
Sei que alguns podem argumentar a respeito de que a morte de Ícaro foi a sua verdadeira e definitiva libertação. Tal argumentação, no entanto, contraria o próprio enredo do mito. Ícaro não queria morrer, mas se libertar do labirinto ao qual estava confinado. A morte não foi um objetivo alcançado por ser previamente planejado, mas consequência de uma escolha equivocada, por mais libertadora que aparentou ser. Assim como quem comete suicídio não quer, de fato, morrer, mas se libertar dos labirintos de sua alma. A morte não é um fim em si mesma, mas um meio, uma alternativa de findar um mal.
     
Na contramão deste ideal de liberdade que torna o indivíduo escravo de seus instintos e desejos, a verdadeira liberdade acontece no interior do indivíduo. Conforme elucidou o apóstolo Paulo: “... não permitam que o pecado continue dominando os seus corpos mortais, fazendo com que vocês obedeçam os seus desejos” (Romanos 6:12). A. W. Tozer preconizou: “A libertação vem apenas pela negação do eu”[4]. Jesus disse: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Evangelho segundo João 8:32). É necessário meditar sobre esta verdade em seus três aspectos, com suas respectivas perspectivas:

1 – A verdade sobre mim: Quem sou? (Perspectiva antropológica)
2 – A verdade sobre o sentido da vida: De onde vim? Para onde vou? (Perspectivas ética/ metafísica/religiosa/teológica)
3 – A verdade sobre a realidade: Onde estou? (Perspectivas filosófica/histórica/sociológica).

Claramente que cada uma destas perspectivas demanda outras abordagens complementares de diferentes áreas do saber, como por exemplo, a perspectiva antropológica requer as abordagens biológica e cultural. Assim como não podemos ignorar as abordagens físicas, matemáticas e linguísticas. Ao colocar as perspectivas entre parênteses, não se trata de reducionismo, mas de um mero direcionamento, respeitando e considerando a vasta abrangência epistemológica e fenomenológica que as constitui. O que quero dizer com isso? Que devemos considerar, em nossa análise sobre as diferentes perspectivas da verdade, os vários aspectos, que Herman Dooyeweerd chamou de modais[5], que compõem a realidade.
     
Tal análise tem como base duas premissas: A primeira é a de que as respostas das perguntas apontadas nos pontos 1 e 2 nos levam a Deus. E a segunda é a de que a verdade preconizada por Jesus não é um conceito, mas uma pessoa: Ele mesmo (Evangelho segundo João 14:6). Elucidarei sobre elas em outra oportunidade.
     
Não são as circunstâncias externas que nos fazem livres. Liberdade consiste em um indivíduo não ser escravo de si mesmo. É possível você ser livre estando confinado a uma prisão, e estar preso em cadeias interiores (seja através da culpa, do ressentimento, da angústia, de traumas do passado, do pecado) vivendo em um “paraíso”. A busca frenética do ser humano por liberdade é a suma demonstração de que ele não é livre. Pois buscamos apenas aquilo que ainda não possuímos. Tal desespero, aliado à obsessão aos nossos instintos e desejos, leva o ser humano a construir asas repletas de cera. Analisando e contextualizando a segunda proposta feita pelo Tentador a Jesus, durante a quarentena de Jesus no deserto, elucidei no livro Culto racional:

Esta segunda proposta é feita a nós hoje através do existencialismo, filosofia que apregoa o “salto de fé”. Ou seja, conforme vimos, é a conduta humana que abandona a razão e que se pauta unicamente pelos seus instintos e impulsos, sentido de sua existência. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche define como falsa moral ou moral escrava qualquer artifício usado para controlar ou coibir os impulsos e instintos humanos. É a morte da moralidade. Neste mesmo mote, o filósofo francês Jean-Paul Sartre foi o mentor intelectual da revolução contracultura, em 1968, que apregoou o lema ‘sexo, drogas e rock´n roll’. O que gerou o crescimento vertiginoso da sexualidade juvenil e do consumo de drogas ilícitas.”[6]


A jornada rumo ao “sol da liberdade em raios fúlgidos” não gera outra coisa a não ser a queda fatal. Foi o que elucidou, há milênios, o sábio Salomão: “Há caminhos que ao homem parecem direitos, mas no fim são caminhos de morte” (Provérbios 16:25). Não voe o voo de Ícaro!




[1] Para saber mais informações sobre a diferença entre instinto e desejo, leia o livro Culto racional, de minha autoria.
[2] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia do moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das letras, 2009, p. 45.
[3] Para maiores detalhes, veja o livro Cristianismo puro e simples, de C. S. Lewis.
[4] TOZER, A. W. Dia a dia com Tozer. Curitiba: Publicações Pão Diário, 2016, p. 101.
[5] DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento: Estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento científico. São Paulo: Hagnos, 2010, p. 53-54.
[6] VIANA, Matheus. Culto racional: A interação entre as razões divina e humana. Ribeirão Preto: Legis Summa, 2016, p. 131.