sexta-feira, 26 de julho de 2013

Ação teórica

Matheus Viana

Sei que este título pode ser interpretado como contraditório. Quem o faz evidencia a pouca importância - quase nula - que dá à teoria.

No ano de 2012, um aluno me disse: “Você é o melhor professor que já tive...”. Sei que o leitor deve estar pensando: “Imagine então a má qualidade dos outros professores!”. Aguarde o desfecho do depoimento do aluno e reflita de forma paciente: “... o professor de ensino religioso que eu tinha na outra escola onde eu estudava não ensinava como o senhor, passando lições teóricas que fazem a gente pensar. Ele passava apenas lições práticas, como a de dois alunos fazerem, com os braços, uma espécie de ‘cadeira’ para que um terceiro aluno sentasse e fosse por eles carregado”.

A aula “prática” deste professor, segundo o relato do aluno, era totalmente desprovida de teoria. Este, infelizmente, é o pensamento da maioria. Numa sociedade cada vez mais frenética, competitiva e dinâmica, a prática exerce a primazia sobre a teoria até o ponto de considerá-la como desnecessária. Alguns usam até as Escrituras (Bíblia) como base argumentativa para tal descalabro: “O próprio Salomão, o homem mais sábio do Antigo Testamento, disse: 'o muito estudar é enfado da carne.'” (Eclesiastes 12:12).

Uma das regras básicas da hermenêutica, e também da exegese, é considerar todo o contexto do texto analisado. É evidente o fato de que Salomão definiu como vaidade o fato do ser humano colocar a busca pelo conhecimento como algo central e, com isso, esquecendo-se ou até mesmo extirpando Deus de sua vida. Mas não anulou sua crucialidade, preconizada em caráter de lamentação pelo próprio Deus através do profeta Oséias: “Meu povo se perde por falta de conhecimento.” (Oséias 4:6). Clamor que foi reiterado por Jesus quando debatia com os saduceus: “Errais por não conhecerem as escrituras nem o poder de Deus.” (Evangelho segundo Mateus 22:29).

O mesmo Salomão advertiu: “Ensine a criança o caminho em que deve andar, e quando for adulto não se desviará dele.” (Provérbios 22:6). Este é um versículo usado à exaustão por educadores cristãos. E ele é pertinente para nossa breve reflexão. O termo ensine é derivado da expressão latina insígnia, que significa marca. Salomão estava dizendo que o educador, seja ele quem for, deve deixar uma marca – caráter e maneira de pensar - na vida da criança que pavimentará e determinará toda a sua conduta quando for um indivíduo maduro e responsável pelos seus atos.

A questão é: “Qual a insígnia que temos feito na vida de nossos filhos e alunos?”. A advertência feita pelo apóstolo Paulo em sua carta aos filipenses é atual: “Para que sejais irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus inculpáveis, no meio de uma geração corrompida e perversa...” (Filipenses 2:15). O índice de violência entre o público infanto-juvenil é espantoso. Não é em vão que a proposta da redução da maioridade penal, de tempos em tempos, emerge como clamor público (Não deixe de ler o texto: Maioridade penal). O número de usuários de drogas – legais e ilegais - na faixa de 12 a 18 anos não fica atrás. Aliás, violência está, na esmagadora maioria dos casos, ligada à drogadição. Se fôssemos mensurar todo o mau comportamento infanto-juvenil que contribui para o que Freud chamou de “mal-estar da civilização”, o texto ficaria exaustivo.

O motivo? Há muitos. Contudo, o principal é a má qualidade do ensino em todos os níveis. Nosso objeto de análise, no entanto, é o teórico. Na década de 60, em pleno auge da revolução cultural que disseminou o comportamento pautado na tríade “sexo, drogas e rock´n roll”, responsável pelo quase imensurável número de abortos clandestinos e mortes causadas pela chamada “overdose” em meio aos adolescentes e jovens, o artista plástico Hélio Oiticica declarou: “Seja marginal, seja herói!”. Hoje não é diferente. Enquanto educadores que prezam por valores morais como direito à vida (contrários ao aborto), à família e ao bem-estar geral minimizam o valor da teoria, os devotos em fazer ruir toda base moral que ainda persiste dão a ela um grande valor. Os filhos das trevas são mais hábeis do que os filhos da luz. (Não deixe de ler o texto: Quem são os obscurantistas?).

Quando ouvi o relato daquele aluno fiquei aterrorizado. E não era para menos. Claro que não concordei com ele sobre o fato de eu ser o melhor professor que já teve. Mas a questão não é esta. Este jovem, que na época estava com 15 anos, passa e irá passar ainda mais por momentos turbulentos que exigirão dele uma capacidade de pensamento e escolha que o livre de apuros. Por isso, deve estar fundamentado em uma teoria sólida para que possa agir da maneira correta e satisfatória quando a circunstância exigir.

Hoje, no entanto, vivemos a mesma realidade descrita pelo apóstolo Paulo há milênios pelo fato de priorizarmos a “prática”, como se ensino teórico não fosse relevante. O escriba Esdras, responsável pela reconstrução do Templo e restauração do culto a Deus em meio aos israelitas, e consequentemente à moral social que emanava da Lei mosaica, afirmou que guardava em seu coração (âmago de sua personalidade) os ensinamentos de Deus para não pecar contra Ele (Salmos 119:11). Temos gerado, como educadores, esta realidade no coração de nossos filhos e alunos?

Esta realidade não será possível com meros entretenimentos. Uma aula lúdica e interessante vem bem a calhar. Podemos até dizer que é um atributo essencial no processo de educação. Mas o ensino deve deixar uma marca. Marca que fará com que nossos filhos e alunos saibam pensar e agir de forma a preservar a moral e o bem-estar social (que não tem nada a ver com o keynesianismo) cada vez mais degradante. Não apenas para não serem solapados por esta vil realidade. Mas também – principalmente - para serem agentes de transformação.

Uma ação preponderante, além de considerarmos a teoria como ação, é darmos à razão – sem, claro, anular a fé – o valor que ela possui. Falaremos sobre isso em outra ocasião. Até lá!

segunda-feira, 22 de julho de 2013

O Rei e seu jumento

Matheus Viana

O episódio conhecido como a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém não foi em uma pomposa e ornada carruagem real. Tampouco montado sobre um cavalo puro sangue de linhagem nobre. Aquele a qual a multidão saudava: “Bendito é o que vem em nome do Senhor! Bendito é o Reino vindouro do vosso pai Davi!” (Evangelho segundo Marcos 11:9-10), o Messias (Evangelho segundo Mateus 16:16), O dinasta davídico prometido (II Samuel 7:16) entrou montado em um jumento.

Ao lermos tal narrativa, uma questão surge de súbito em nossa mente: Por que um jumento? A resposta, além de ser o cumprimento da profecia feita por Zacarias (Zacarias 9:9), é a síntese de toda a mensagem e ensinamento de Jesus durante Seu ministério terreno. Ele disse aos Seus ouvintes: “Aprendei de mim que sou manso e humilde.” (Evangelho segundo Mateus 11:29). Antes disso, porém, no sermão da montanha, preconizou: “Bem-aventurados os mansos, pois herdarão a terra.” (Evangelho segundo Mateus 5:4). Outras traduções dizem “humildes”.

Há uma clara alusão messiânica em torno destas mensagens. Jesus é o Filho de Davi cujo trono foi estabelecido para sempre. Ou seja, Ele é o herdeiro do grande rei por ser, como homem, da linhagem davídica. Além de, como Deus, ser o Cristo que viria para reinar (Isaías 9:6), embora seu Reino não foi e não é deste mundo. Mas uma das características do Rei que herdaria tal reinado é a mansidão. No entanto, o que é ser manso? É ser obediente. Embora recebera toda a autoridade nos céus e na terra (Evangelho segundo Mateus 28:18), Jesus foi manso. Ou seja, se humilhou até a morte, e morte de cruz (Filipenses 2:6-8).

A prática de Seu reinado foi pautada na humildade. Por isso, advertiu Seus discípulos: “Quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo. E quem quiser ser o primeiro deverá ser servo, assim como o Filho do Homem que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos.” (Evangelho segundo Mateus 20:26-28).

Jesus entrou em Jerusalém montado em um jumento para evidenciar o caráter e a essência de Seu reinado: humildade e serviço. Paulo, em sua carta aos filipenses, descreve tais características. Assim como o profeta Isaías, Paulo definiu tal reinado como servo. A expressão usada pelo apóstolo não foi terapeia (serviços/cuidados médicos) nem diakonia (serviços gerais), mas a mesma usada por Mateus ao descrever o ensinamento de Jesus sobre quem seria o maior no Reino de Deus: doulos (escravo).

O Rei que se fez escravo de súditos rebelados. O filósofo e sociólogo francês Michel Foucault disse em seu livro Vigiar e punir que, durante a Idade Média, quando um súdito infringia alguma lei do reinado, era severamente punido – cujas punições eram chamadas de suplícios – por contrariar a vontade e a autoridade do próprio rei. Ou seja, a punição era uma demonstração da autoridade do rei que não poderia, em nenhuma circunstância, ser ameaçada ou contestada. Não fizemos algo semelhante (Romanos 3:23)? Mas o Rei que entrou montado em um jumento, ao invés de nos punir, se entregou para ser punido (Evangelho segundo João 10:16-18).

Não há maior ato de humilhação e serviço do que este. Não há mansidão maior do que a expressa na seguinte oração: “Pai, se possível, afasta de mim este cálice. Contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres.” (Evangelho segundo Mateus 26:39), cuja prática foi a morte na cruz. Foi tudo isso que o jumento representou naquele momento.

No entanto, o caráter que permeia nossos corações, e consequentemente determina nossa prática, é bem diferente disto. Não medimos esforços para estar no “ápice” da “prosperidade” financeira e/ou no topo das várias empresas de marketing multinível – atualmente em voga – que têm trazido severas contendas, discussões e divisões em meio ao corpo de Cristo. Hoje em dia, por conta da perniciosa teologia da prosperidade, montar o jumento da humildade e da servidão, que significa não amar e não viver de acordo com as riquezas e os valores deste mundo (I João 2:15), mas buscar o Reino de Deus e a Sua justiça (Evangelho segundo Mateus 6:33), é “sintoma” de pecado, e sua consequente maldição ou falta de fé.

Sim, Jesus virá para reinar como o Cavaleiro do cavalo branco, com toda excelência e glória (Apocalipse 19:11-16). Foi exaltado à mais alta posição e Seu Nome está acima de todo nome nos céus, na terra e debaixo da terra (Filipenses 2:9-10). Contudo, somos chamados a obedecer e representar o Rei montado em um jumento. É isso que significa atender ao Seu pedido de seguí-Lo: “Aquele que quiser me seguir, negue-se a si mesmo (humildade e mansidão), tome a tua cruz e siga-me.” (Evangelho segundo Mateus 16:24). Qualquer proposta contrária é puro ufanismo humano.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Discernindo conceitos – Parte II

Matheus Viana

Jesus preconizou: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (Evangelho segundo João 8:32). Mediante tal afirmação, deduzimos que a liberdade está pautada na verdade. Definir o que seja, de fato, esta verdade citada por Jesus demanda uma exaustiva reflexão que não faremos neste momento. No entanto, podemos defini-la, em nosso contexto, como um padrão ético/moral e de normalidade.

Todo ser humano tem sua vida, e consequentemente sua liberdade, pautadas em um padrão. Mesmo o mais relativista dos homens – podemos usar Nietzsche como exemplo - tem a necessidade de definir o que é certo e errado, normal e anormal. E isto é impossível sem um padrão pré-estabelecido que sirva como referência. (Não deixe de ler o texto O que é normalidade?)

O próprio fato de uma pessoa não acreditar na existência do certo e do errado, mas de que tudo é relativo, é desdobramento de sua devoção a um padrão moral e de normalidade. Pois esta pessoa classifica o absoluto como errado e o relativo como certo. Para o imoral, por exemplo, fazer o que contraria a ética, e consequentemente a moral, é a coisa certa e normal a se fazer.

C. S. Lewis, elucidando sobre a teoria da Lei moral, afirma que o fato de termos a consciência do certo e errado é indício da existência de um padrão. Ou seja, a nossa capacidade de discernir o certo e o errado é produto de sermos submissos a um padrão moral que definimos para nós mesmos. E este padrão moral é reflexo da existência de uma Lei moral superior a nós que, de forma direta ou indireta, nos influencia. É semelhante ao fato de que nossa existência atesta a existência – ainda que ela já tenha falecido – de nossa mãe.

Sem este padrão, estamos como um barco à deriva em alto mar. Nossa vida perde totalmente o sentido e, com isso, ficamos enredados no limbo do niilismo existencial. Isso não é ser livre, é ser libertino. Como vimos no texto anterior, a liberdade só existe quando há uma ordem social. E esta ordem é pautada por leis e diretrizes originadas na vontade geral dos membros de uma sociedade. Esta ordem social nada mais é do que o estabelecimento de um padrão de normalidade.

Eis o círculo virtuoso: liberdade só pode ser exercida quando nos submetemos  ao padrão de normalidade estabelecido por Deus ao homem ou pautado por ele. Um padrão de normalidade é constituído de ética e moral. Ética é o conjunto de leis, normas e costumes que regem uma sociedade. E este conjunto pode ser resultado de nossa vontade conciliada com a vontade geral. Neste ponto, é necessário evocarmos a definição de Schopenhauer sobre justiça e injustiça.

O filósofo dizia que injustiça é o ato exercido por uma pessoa que, através da coerção física ou verbal, impedia outra pessoa de exercer sua vontade. E justiça é o ato em que uma pessoa faz todo o possível para que a vontade de outro seja feita em detrimento da sua. Conforme Rousseau preconizou, uma ordem social (padrão moral/de normalidade) só pode existir mediante leis. As leis nada mais são do que o estabelecimento da vontade geral. Algo que só é possível quando as vontades particulares forem renunciadas de forma espontânea. Isso, segundo Schopenhauer, é justiça. E sabemos que o pleno exercício da justiça é essencial para o bom funcionamento de uma sociedade.

Nietzsche definiu a diferença entre moral nobre e moral escrava. A “moral nobre”, segundo ele, está pautada na ação egoísta. Ou seja, quando a vontade particular tem a primazia – e o total controle – sobre a geral. Já a moral “escrava” é a pautada na não ação e no altruísmo. Portanto, a vontade geral definida por Rousseau, para Nietzsche não passa de moral escrava. Agora, imagine uma sociedade onde todos os seus membros optassem pela “moral nobre”? Não haveria altruísmo. Sem altruísmo, não haveria renúncia das vontades particulares. Sem esta renúncia, não haveria o estabelecimento das vontades gerais (leis e diretrizes). Sem leis e diretrizes, não haveria ordem social (padrão de normalidade). Sem ordem social, existiria apenas o caos. E no caos, não há liberdade, mas apenas a libertinagem.

E é exatamente a Ordem que Deus concedeu ao ser humano, que C. S. Lewis denomina como Lei moral e eu, ousadamente, confesso, denomino como padrão de normalidade, que Jesus nos adverte a conhecermos. Pois quando a conhecermos, algo que implica também na plena observação a ela, seremos, de fato, livres. No entanto, esta Ordem é que deve pautar os padrões que estabelecemos para nossa vida individual e coletiva. Por isso Rousseau elucida: “Toda a justiça procede de Deus, só Ele é sua fonte, porém, se soubéssemos recebê-la de tão alto, não necessitaríamos de governos e de leis.”. E neste ponto que o Estado laico entra em ação. Não deixe de ler o texto: Laicismo.

Discernindo conceitos

Matheus Viana

Muitos confundem liberdade com libertinagem. Mas seus conceitos são indissociáveis como a água e o óleo. O dicionário Michaelis traz várias definições para liberdade. Cito algumas:

1 Estado de pessoa livre e isenta de restrição externa ou coação física ou moral. 2 Poder de exercer livremente a sua vontade. 3 Condição de não ser sujeito, como indivíduo ou comunidade, a controle ou arbitrariedades políticas estrangeiras. 4 Condição do ser que não vive em cativeiro. 5 Condição de pessoa não sujeita a escravidão ou servidão.

Para libertinagem, emite as seguintes definições: 1 Vida de libertino. 2 Devassidão, licenciosidade. Para que nossa reflexão seja completa, cito também a definição que o dicionário traz para libertino: Desregrado nos costumes, dissoluto, licencioso, lascivo. 

Mediante tais definições, ouso fazer uma sucinta para cada um destes dois elementos: Liberdade é o exercício de ser e fazer mediante o conjunto de direitos e deveres; e libertinagem é a tentativa de ter apenas direitos e ser completamente desprovido de deveres. O que é definido, em outras palavras, como anarquia. Tais definições são baseadas em vários pensadores. Cito alguns deles.

Rousseau dizia que o ser humano possui duas liberdades distintas: a natural e a civil, também chamada de social. A liberdade natural consiste no fato de que todo ser humano nasce livre para fazer o que bem entender. Conceito, de certa forma, conflitante com o de Aristóteles que dizia que a natureza fez alguns para serem senhores e outros para serem escravos. Onde dizia que os mais inteligentes nasceram para comandar e os mais fortes fisicamente para servir.

Já a civil é a liberdade que deve ser exercida em uma sociedade. Platão em A República, Aristóteles em A Política e o próprio Rousseau definiram sociedade como um conjunto de famílias/pessoas submissas a uma ordem social. Rousseau, no entanto, diz em seu livro Do contrato social que esta ordem “... é um direito sagrado que serve de base para todos os demais. Não obstante, este direito não vem da Natureza; funda-se em convenções (contrato social)”.

De acordo com Rousseau, para que a necessária ordem social seja instalada, é preciso definir a diferença entre vontade comum e vontade geral. Vontade comum é a vontade particular do indivíduo, e a vontade geral é o pleno consenso entre todos os membros da sociedade para que as leis e diretrizes que estabelecem a ordem social sejam definidas. Estas leis e diretrizes não são definidas por um governante soberano, mas por um poder legislativo que representa a vontade geral do povo.

As leis e diretrizes, de acordo com Rousseau, são atos e desdobramentos da vontade geral. Logo, não é algo imposto de forma contraditória, mas sim a própria vontade geral estabelecida como instrumento de ordem social. Por isso ele afirmou: “... a lei não pode ser injusta, mesmo porque ninguém é injusto para consigo (...) porque são estas (leis e diretrizes) expressões de nossa vontade”. Ou seja, do direito de exercemos nossa liberdade civil.

Para que isso seja possível, as vontades particulares que são contrárias às vontades gerais – transformadas em leis – precisam ser preteridas e renunciadas por todo associado à ordem social. Pois se vários membros pleiteiam por vontades particulares, segundo Rousseau, a ordem social está fadada ao fracasso e à total dissolução. Ou seja, a liberdade civil, necessária para o estabelecimento da ordem social, é pautada na vontade geral. E esta, por sua vez, é produto da renúncia dos membros da sociedade às suas vontades particulares.

O exercício da liberdade civil e sua consequente ordem social só são possíveis com o estabelecimento de direitos e deveres. Portanto, podemos dizer que a vontade geral – que propicia a ordem social – produz a liberdade, e a vontade particular – que é contrária à geral e propicia a desordem social – produz a libertinagem. Em seu livro, O espírito das leis, Montesquieu afirmou: “Todo homem é livre para fazer o que a lei o permite fazer”.

Infelizmente, o conceito de lei, na prática, não é resultado da vontade geral, mas da vontade particular dos governantes ou de grupos isolados e, por isso, instrumento ditatorial, não de liberdade. Por isso, tais conceitos tornam-se, aparentemente, utópicos. No entanto, meu intento é refletir sobre a importância de um padrão de normalidade para pautar nossa vida individual e coletiva. Continuaremos nos próximos posts.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Salve geral

Matheus Viana

Jesus certa vez afirmou: “Eu não vim chamar justos, mas pecadores”. (Evangelho segundo Mateus 9:13). A circunstância em que Ele proferiu tal frase é relevante: estava comendo com publicanos e com os considerados “pecadores” pela cúpula religiosa por não cumprirem a Lei de Moisés. Algo repugnante para os fariseus. Aproveitando o ensejo, Jesus advertiu-os: “Vão aprender o que significa isto: ‘Misericórdia quero, e não holocaustos.’”.

Sabemos que a principal missão que Jesus veio estabelecer foi Sua misericórdia, que é a plena manifestação da Graça de Deus ao ser humano (I João 4:10). E esta, segundo o próprio Cristo, foi – e é - predestinada (Apocalipse 13:8) a um público exclusivo que alguns chamam de “os escolhidos”. Jesus o chamou de “pecadores”.

Se este público a qual a soberana Graça de Jesus está predestinada é dos pecadores, logo ela está predestinada a TODOS (o maiúsculo é proposital) os homens. Pois, conforme o apóstolo Paulo afirma: “Todos pecaram, e destituídos estão da Glória de Deus.” (Romanos 3:23). Davi afirma que já nascemos em pecado (Salmo 51:5). Fato que Calvino, em sua teologia reformada, nomeia de ‘Depravação total’, ou seja, o pecado original fez com que toda a natureza terrena fosse corrompida e, consequentemente, todo ser humano tornou-se pecador. O apóstolo Paulo descreve este processo quando diz: “Por um só homem veio o pecado, e pelo pecado a morte, e a morte passou a todos os homens.” (Romanos 5:12).

Um dos textos usados à exaustão pelos predestinistas radicais (que defendem a ideia de que Deus escolheu, antes da fundação do mundo, uns para serem salvos e outros para perecerem no inferno) é o de Salmos 53:1-3, que o apóstolo Paulo cita em sua carta aos romanos: “Não há nenhum justo, nem um sequer, não há ninguém que entenda, ninguém que busque a Deus. Todos se desviaram, tornaram-se juntamente inúteis; não há ninguém que faça o bem, não há um sequer”. (Romanos 3:10-12).

É um equívoco dizer que Paulo aqui emite a mensagem de que ninguém é capaz de escolher ou fazer o bem por si mesmo. Pois pensar desta forma, torna incoerente a advertência de Jesus que diz: “Aquele que quiser me seguir...”. (Evangelho segundo Mateus 16:24). Se não podemos escolher seguir a Cristo por conta da depravação total oriunda do pecado, por que Ele fez tal advertência? Seria semelhante eu escrever uma carta para uma pessoa que sofre de deficiência visual (cegueira) e pedi-la para que a lesse. Não devemos nos esquecer da orientação que Jesus dá aos Seus ouvintes quando diz: “Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar coisas boas aos filhos...”. (Evangelho segundo Mateus 7:11). Para maiores detalhes, leia o texto: Volição humana.

O que Paulo elucidou é que todo ser humano é pecador. O apóstolo João disse que aquele que nega tal situação, engana-se a si mesmo e a verdade não está nele (I João 1:8-10). Por isso, antes de citar trechos do salmo 53, Paulo diz: “Já demonstramos que tanto judeus quanto gentios estão debaixo do pecado.” (Romanos 3:9). Mediante tais afirmações, façamos o seguinte silogismo:

Todos os seres humanos são pecadores;
Jesus veio estabelecer Sua misericórdia e Graça aos pecadores;
Logo, Jesus veio estabelecer a misericórdia e Graça a todos os seres humanos.

O próprio texto usado pelos predestinistas radicais (não me refiro a todos os reformados) na tentativa de dizer que ninguém, por si mesmo, pode escolher a Deus, a fim de ratificar que os que “escolhem” a Deus na verdade não escolhem, mas recebem a Graça irresistível por serem os “escolhidos”, contraria a doutrina que eles defendem. Pois ele fundamenta a verdade de que todos somos pecadores e, por isso, alvo da misericórdia de Jesus como Ele mesmo afirma.

Alguns podem citar o texto em que Jesus diz: “Muitos são chamados, mas poucos escolhidos.” (Evangelho segundo Mateus 22:14) como argumento para defender a predestinação radical. No entanto, uma regra principal da hermenêutica bíblica é considerar o contexto ao qual o texto a ser interpretado está inserido. Jesus falava a respeito da parábola das bodas (do casamento), onde pessoas consideradas dignas foram convidadas, mas não quiseram (volição humana) ir (Evangelho segundo Mateus 22:3).

Então, o noivo solicitou que os servos chamassem aos que não eram considerados dignos e eles compareceram ao casamento, enchendo a sala do banquete (Evangelho segundo Mateus 22:10). Ao contar tal parábola, Jesus não quis dizer que entre os muitos chamados, apenas os “predestinados” serão escolhidos. Mas sim que, entre os chamados, muitos não aceitarão o convite. Dizer que o fato de não aceitarem é desdobramento de estarem fadados ao inferno é fazer da volição humana um mero teatro. E sabemos que Jesus considerou sua importância, claro, submissa à vontade do Pai.

Eis a síntese, o “salve geral”: Jesus veio chamar os pecadores. Sendo assim, veio chamar a todos. Se alguns rejeitarão Seu chamado... Bem, isso é outra história.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Volição humana

Matheus Viana

Ao longo da História da Igreja, incluindo os dias atuais, debate-se sobre o livre-arbítrio humano em relação à predestinação feita por Deus. Não entrarei em reminiscências. Tampouco viso defender os pontos de vista “calvinista” ou “arminiano”. O que desejo, de forma breve e prática, é analisar algumas advertências de Jesus que nos ensinam algo sobre estes aspectos. Bem, o fato de eu desejar... Deixe pra lá!

Desde o século IV, quando Agostinho e Pelágio discutiram sobre a total degradação humana oriunda do pecado original, este fato, através dos Concílios, fica estabelecido como doutrina da salvação, conhecida na teologia sistemática como ‘soteriologia’. Contudo, Lutero - em seu debate com Erasmo de Roterdam -, e posteriormente Calvino, sustentaram a doutrina de que a degradação do ser humano, por ser total, comprometeu sua volição. Ou seja, fez com que ele desejasse e escolhesse apenas o que é mal e ofende a Deus (pecado). É neste ponto que quero me ater.

Jesus disse algo que nos faz refletir sobre isto: “Qual de vós, se seu filho lhe pedir pão, lhe dará pedra? Se vós, que sois maus, sabem dar coisas boas aos filhos, quanto mais o vosso Pai, que está nos céus, dará coisas boas aos que Lhe pedirem.” (Evangelho segundo Mateus 7:11). De acordo com esta reflexão, o ser humano, apesar de totalmente degradado pelo pecado (Romanos 5:12, Colossenses 3:5), tem a capacidade - comprometida e limitada, é verdade - de desejar e escolher coisas boas. Não foi apenas Jacob Armínio que disse isso. Foi o próprio Jesus.

Se o ser humano não tem esta capacidade, então a afirmação feita pelo apóstolo Paulo de que não somos salvos pelas nossas obras (Efésios 2:8) é vã. Pois, se todas as nossas ações – oriundas de desejos corrompidos – são ruins, é óbvio que não seremos salvos por elas. Poderíamos discutir sobre o nosso querer e realizar (Romanos 7:18-19, Filipenses 2:13), mas não quero deixar o texto demasiado longo.

Ainda sobre a volição humana, Jesus disse: “Aquele que quiser me seguir, negue-se a si mesmo, tome a tua cruz e siga-me.” (Evangelho segundo Mateus 16:24). Analisemos a proposta do Messias: “Aquele que quiser me seguir...”. “Quiser”, conjugação verbal indissociável de vontade própria. Pensemos sobre algo: se a degradação total, oriunda do pecado original, impede o ser humano de desejar, escolher e fazer o que é correto, por que Jesus faria tal proposta? Por outro lado, se alguns são predestinados para isso, Jesus não precisaria usar o verbo “querer”, tampouco “fazer” – implícito na expressão “negue-se” -, já que a soberania de Deus sobre o ser humano, de acordo com alguns cristãos reformados, culmina no chamado “monergismo” ou Graça irresistível.

O fato de que a salvação vem única e exclusivamente de Deus é inquestionável. O de que o pecado original degradou a natureza humana também é. Mas eles, de acordo com as Palavras de Jesus, não anulam a nossa capacidade – que deve ser aperfeiçoada pela ação do Espírito Santo em nós – de querer e escolher.

Baseado em tais fatos, Jesus nos adverte a negarmos a nós mesmos. Negação fala de renúncia. Renúncia, por sua vez, é um ato oriundo de uma decisão. E decisão é desdobramento de nossa vontade. Sendo assim, se o ser humano não possui a capacidade de querer e escolher a Jesus por si mesmo, por que Jesus faz esta proposta? Se tal fato fosse verdadeiro, esta proposta não soaria incoerente? Mas sabemos que não é.

Sobre a predestinação para a salvação... Bem, cito, para encerrar, duas advertências do apóstolo Paulo; uma para Timóteo e outra para Tito: “Isso é bom e agradável perante Deus, nosso Salvador, que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo, homem, o qual se entregou a si mesmo como resgate por todos.” (I Timóteo 2:3-6). “Porque a Graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens.” (Tito 2:11).

Tanto o Antigo Testamento (Provérbios 16:4, Isaías 55:11) quanto o Novo nos falam sobre a predestinação e soberania de Deus ao homem (Efésios 1:4-5, Romanos 8:29-30). Há muitos textos na Bíblia referentes a estes temas. No entanto, repito: esta predestinação, além de evidenciar a soberania de Deus ao ser humano, não anula a volição humana.