quarta-feira, 4 de março de 2015

Cabeça servente

Matheus Viana

“O Senhor fará de vocês a cabeça das nações, e não a cauda.” 
(Deuteronômio 28:13 – Nova Versão Internacional).

Esta sentença foi proferida por Moisés em meio às várias bênçãos prometidas por Deus aos hebreus em decorrência da obediência à Sua Lei. E em nossa realidade não tão recente ela tem sido entoada como uma espécie de “mantra” pelos cristãos. Revelando, desta forma, o pernicioso triunfalismo contido no coração humano (Jeremias 17:9, Tiago 4:3).

Assim como todo o Antigo Testamento, esta sentença deve passar pelo crivo do Evangelho de Jesus, cujo caráter é, de certa forma, descrito em Seu sermão da montanha. E ele começa da seguinte forma: “Bem-aventurados os pobres de espírito, pois deles é o Reino dos céus.” (Evangelho segundo Mateus 5:3). Interessante. No entanto, o que é um pobre de espírito? Grosso modo, é aquele que tem a plena consciência de que é dependente, em todas as esferas de sua existência, de Seu Criador. Conforme o apóstolo Paulo elucidou aos estóicos e epicureus em Atenas: “Pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como disseram alguns poetas de vocês: ‘Também somos descendência dele.’” (Atos 17:28).

Isto traz à tona a necessidade que temos de arrependimento. Quando adquirimos a consciência de que estamos muito distantes do padrão de normalidade de Deus ao ser humano, – Jesus – isso causa a tristeza que nos conduz ao quebrantamento. E esta consciência Jesus nomeia de pobreza de espírito. Sobre tal tristeza, o apóstolo Paulo preconiza: “A tristeza segundo Deus não produz remorso, mas sim um arrependimento que leva à salvação, e a tristeza segundo o mundo gera a morte.” (II Coríntios 7:10).

A expressão usada por Paulo, traduzida como arrependimento, é metanoia. Meta não se refere a uma simples mudança, mas em um progresso, uma mudança para melhor, para além de uma realidade específica. Sim, este progresso ocorre na nous/noia, mente (entendimento) do indivíduo. O que remete ao fato de que o verdadeiro arrependimento começa em nosso pensar e, consequentemente, alcança nosso agir. Se nos arrependemos de fato, como fruto da ação do Espírito Santo em nós (Evangelho segundo João 16:8), nossas ações consistirão em servir, e não em buscar meios de sermos servidos. O verdadeiro arrependimento produz uma cabeça servente.

O caráter que a sentença, alvo de nossa análise e reflexão, possui é completamente contrária ao caráter do Evangelho de Jesus Cristo, Aquele ao qual foi lhe concedida toda autoridade nos céus e na terra (Evangelho segundo Mateus 28:18). O apóstolo Paulo, de forma brilhante, o revela em sua carta aos filipenses: “ ... embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se, mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz! Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome.” (Filipenses 2:6-9).

O próprio Jesus advertiu seus discípulos: “Vocês sabem que aqueles que são considerados governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Ao contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo; e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo de todos. Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.” (Evangelho segundo Marcos 10:42-45).

Como assim? Ser servo? Servir pessoas? E o “papo” de sermos “cabeça e não cauda”? De sermos servidos pelas pessoas por estarmos em um “grau acima”? De sermos reconhecidos e aclamados? O Evangelho de Cristo, o Cabeça da Igreja (Seu corpo na terra), demonstrado por Suas atitudes, revela o contrário: as “cabeças” são as servas, aquelas que, de forma voluntária, tornam-se escravas da justiça de Deus (Romanos 6:18). Nós, como membros do corpo de Cristo, apenas obedecemos os comandos que vêm do Cabeça: servir.

Pedro foi o homem que, em detrimento de suas imperfeições e limitações, Deus escolheu como instrumento para o estabelecimento de Sua Igreja na terra (Evangelho segundo Mateus 16:18, Atos 2:38-40). E, antes do cumprimento desta gloriosa profecia sobre a terra, Jesus teria que estabelecer na vida de Pedro o caráter fundamental de servo.

Após ter negado Jesus, Pedro entrou em um degradante quadro de tristeza. Porém, sentiu a tristeza segundo o mundo, a qual comumente chamamos de depressão. Mas Jesus tinha o intento de restaurá-lo, pois os planos de Deus não podem ser frustrados. Não quero me ater às três vezes em que Jesus indaga Pedro sobre o amor que sente por ele. Mas na advertência consequente: “Cuide de minhas ovelhas.” (Evangelho segundo João 21:16).

A conjugação do verbo, traduzida para o português como cuide, usada por João é boske, cuja expressão é derivada de bosko. De acordo com o dicionário Strong, bosko significa alimentar, como também retrata o dever de um mestre cristão de promover, por todos os meios possíveis, o bem-estar espiritual dos membros da igreja. Conceitos complementares. Pois sabemos que o Evangelho de Cristo implica tanto nos serviços espiritual e social. Ortodoxia que é conhecida como missão integral. Contudo, acrescento o serviço intelectual. Intelectual? Sim. Por isso Pedro orienta: “Antes, santifiquem Cristo como Senhor em seu coração. Estejam sempre preparados para responder a qualquer pessoa que lhes pedir a razão da esperança que há em vocês. Contudo, façam isso com mansidão e respeito, conservando a boa consciência...” (I Pedro 3:15).

Resumindo, implica em servir. E foi exatamente isto que Jesus propôs a Pedro como desdobramento de seu amor por Ele. E esta mesma proposta, onde não cabe qualquer tipo de ufanismo, e guardadas as devidas proporções; repousa sobre nós.