quinta-feira, 20 de abril de 2017

O Sublime Artista

Matheus Viana

Não deixe de ler, de antemão, o texto Cultura e o ser cultural

Não é possível pensar em cultura sem considerar arte. Pois arte é a maneira como o homem realiza o cultivo. Um artesão ou artífice é aquele que produz os artifícios (métodos, sistemas ou instrumentos) necessários para a prática do cultivo. Portanto, cultivo/cultura está intrinsecamente ligado à arte. E ambos conectados com culto.
    
Assim, toda arte é religiosa. As obras de arte mais antigas que a história registra tinham finalidades religiosas. Eram representações de seres naturais deificados pelo homem com a finalidade de suprir seu sensus divinitatis. A cultura grega trabalhava com a arte em dois aspectos: Techné e poésis. O primeiro era a técnica utilizada na produção de arte de maneira geral. Já o segundo era referente à forma no sentido estético. Ambos relacionados ao trabalho (cultivo) do homem. Portanto, ligados a culto. O objeto da arte greco-romana, por exemplo, era o culto aos deuses e, como consequência disto, ao homem. Por isso era comum deuses serem representados como figuras humanas (antropomórficas). Nos períodos da escolástica e da renascença, a arte era dividida como de ofício, ligada ao trabalho, e as liberais, ligadas à descrição da realidade.
    
Quando evocamos os primórdios da arte, vemos que Deus a concedeu ao homem para que este realizasse o mandato cultural ou culto racional, que era o cultivo do jardim no Éden (Gênesis 2:15). Antes disso, Ele criou o universo e tudo o que nele há, dos pontos de vista natural e sobrenatural, com arte, contemplando o belo. Por isso a Bíblia diz que, ao contemplar tudo o que criara, Deus viu que era bom (Gênesis 1:31). Belo está ligado à ordem. Por Sua vez, ordem está ligada à autoridade.
    
Imagine as expressões tohu e vavohu, usadas por Moisés para descrever a situação primária do universo e traduzidas para o português como “sem forma e vazia”, como uma tela diante do artista! Nela, Deus começou criar Sua obra de arte. Ele disse e Se manifestou como Luz. Não há como criar algo sem ver o que está sendo criado. Um artista não pode produzir no escuro completo. A luz é necessária. No caso de um portador de necessidades especiais visuais, a “luz” é os seus demais sentidos. Na arte de Deus, Luz não foi apenas algo que iluminou. Ele foi (e é) a própria Luz. Todo artista coloca algo de si em sua obra. Com Deus não foi diferente.
    
A primeira arte utilizada em Sua obra foi a fala. Por meio deste artifício, criamos e reproduzimos histórias, elucidamos conceitos e disseminamos argumentos. Com isso, levamos os ouvintes a criarem, pela imaginação, algo em suas mentes e corações. Pela fala, - sendo Ele a própria Palavra (logos) manifesta (Cf. João 1:1) - Deus criou as leis físicas (incluindo tempo, espaço, matéria e energia) para executar Sua obra de arte chamada universo. Baseado neste fato, o salmista afirmou: “Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou e tudo surgiu” (Salmo 33:9).
   
É nítida a organização feita por Deus no processo de Sua obra. “Disse Deus: ‘Ajuntem-se num só lugar as águas que estão debaixo do céu, e apareça a parte seca’. E assim foi”. (Gênesis 1:9). Não há arte sem organização, sem limites a serem observados. Em seu diálogo com Jó, Deus lhe disse: “Onde você estava quando lancei os alicerces da terra? Responda-me, se é que você sabe tanto! Quem marcou os limites de suas dimensões? Talvez você saiba! Quem estendeu sobre ela a linha de medir? E os seus fundamentos sobre o que foram postos? Quem colocou sua pedra angular, enquanto as estrelas matutinas juntas cantavam e todos os anjos se regozijavam?”. (Jó 38:4-7). É claro que Jó sabia quem era (e é) O artista.
    
Mas o que falar de Sua principal obra de arte, o homem? Em Gênesis 2:7, lemos a expressão: “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra”. Vemos aqui a primeira escultura da história. Ela foi feita pelo próprio Deus e recebeu de Seu fôlego de vida. Isso levou Jó a afirmar: “Foram as tuas mãos que me formaram e me fizeram (...) Lembra-te de que me moldaste como o barro ...” (Jó 10:8-9).
    
A expressão Ele formou (vayiyster), que aparece em Gênesis 2:7, traz a ideia de fazer conforme um modelo, que foi elucidada por Jó em sua afirmação citada acima. A Bíblia diz que Deus criou o homem à Sua imagem (tselem). A obra de arte chamada homem refletiria o caráter do Criador como uma espécie de Sua sombra, sendo esta resultante do irradiar da Luz (o próprio Deus) sobre ela. Mas para isto era preciso revestir esta escultura com Seu fôlego de vida. Assim, o homem passa a ser um ser vivente, munido de racionalidade para compreender e virtude para exercer Sua ética (Gênesis 1:28).
    

Para tal fim, Deus exerceu a arte do sopro. E para completar Sua obra, utilizou novamente a arte da fala. Sua fala ao homem, no entanto, teve uma forma peculiar. Além da ordem, houve ensino ou instrução. Instruir ou Ensinar é uma arte. O professor é o artista que, munido da Palavra de Deus e revestido pelo Seu Espírito, esculpe no caráter (todo o aspecto interior) do aluno a imagem de Cristo, a fim de que ele alcance a estatura do varão perfeito (Efésios 4:13). Isso é exatamente o que Deus realizou no homem no início e continua fazendo através do Espírito Santo em nós (II Coríntios 3:18).

terça-feira, 18 de abril de 2017

Cultura e o ser cultural

Matheus Viana

Tudo o que está relacionado à nossa vida, no campo material, tem sua origem na terra ou na natureza de forma geral. Nossas roupas são feitas de matérias-primas originadas de plantas, como por exemplo, o algodão. As sandálias, tênis ou sapatos que calçam nossos pés contêm borracha e látex extraídos de seringueiras. Nossas habitações são pavimentadas por pedras, tijolos (que vêm do barro), de blocos (compostos por minérios encontrados na natureza), de ferro (outro minério), madeiras entre outras matérias-primas naturais.

A eletricidade que nossas moradias dispõem vem da água e, em casos específicos, do sol ou do vento, entes naturais. Os instrumentos usados na produção de músicas que apreciamos (refiro-me ao quesito música, não aos barulhos eletrônicos produzidos atualmente) são feitos, entre outras matérias-primas, de madeira e de couro animal. O figurino dos atores da peça de teatro a qual assistimos, as bolas usadas em jogos de futebol (ou qualquer outra modalidade esportiva que use este artifício redondo) dos quais participamos, os uniformes e chuteiras dos jogadores... Enfim, toda atividade humana possui profunda relação com a natureza, com a terra. O que isso significa?
     
O ser humano produz, em todo momento, cultivo ou cultura. Ao ler este texto, estás cultivando o conhecimento. E a prática dele, o exercício chamado de sabedoria, também é produção de cultura. Portanto, uma pessoa culta não é apenas a que possui uma grande e variada quantidade de conhecimento, mas a que está inserida em uma sociedade e é capaz de receber e produzir cultura.
    
Imagine você e sua família morando em uma terra isolada, erma e distante! Não terão alternativas, caso queiram sobreviver, a não ser cultivarem o ambiente onde vivem. Procurarão extrair da natureza recursos, seja através da caça, da pesca ou da agricultura. Cultivarão o lugar não apenas para extrair alimentos, mas também roupas e materiais para a fabricação de uma habitação. Alimento, vestuário e habitação. Necessidades humanas básicas. Cultura/cultivo é o homem exercendo o ato de viver ou sobreviver no ambiente em que vive.
    
Na tentativa de cultivar a natureza, métodos, sistemas e instrumentos (ferramentas) - os quais são conhecidos como artifícios – surgirão e serão passados para as gerações posteriores como herança de costumes e valores. É a consolidação da cultura de uma sociedade[1] que, neste caso, é a sua família. Conforme Aristóteles definiu em seu livro Política, sociedade é o conjunto de famílias[2]. Isto, portanto, tem sua origem no Éden. A cultura humana também, pois provém do fato de o homem ter sua origem na terra (Gênesis 2:7). Ele é produto de uma cultura: A do Criador do universo. O cultivo do homem sobre a terra, que é a forma como ele cultua o Criador, é resultado do fato de ele ser, antes de tudo, o cultivo de Deus. Por isso foi criado para receber, produzir e exercer cultura. O teólogo e historiador Justo González elucidou:

“... parte do propósito de Deus ao criar a criatura humana e fazê-la livre é que essa criatura desenvolva cultura, que se relacione com seu ambiente em criatividade e amor, à imagem e semelhança da relação de Deus com o mundo e a humanidade.”[3]

E a finalidade disto é se relacionar com o Criador a fim de expressar Sua Glória à toda criação. O ato de cultivar o lugar onde habitava - no jardim do Éden - era exercer culto ao Criador, pois estava cumprindo o chamado mandato cultural, o qual chamo, a exemplo do apóstolo Paulo, de culto racional (Gênesis 2:15). Cultuar é glorificar. E glorificar é obedecer. Daí o termo ortodoxia, que, no sentido bíblico, ao se referir à doutrina correta, fala da forma correta de glorificar a Deus, já que os apóstolos, sobretudo Paulo, utilizaram o termo doxa para falar da Glória de Deus. Assim, fica claro que não basta cultuar a Deus da forma correta. A intenção também precisa ser correta. Pois é possível seguirmos à risca a liturgia doutrinária com o intento de nos envaidecermos em nossa devoção.
    
Quando ajo de acordo com a tradição cultural de uma sociedade, estou obedecendo-a. Com isso, exerço culto, pois cultuo (glorifico e honro) os que a criaram e a consolidaram, ainda que inconscientemente. Ao fazer do homem um ser vivente, Deus instituiu-lhe uma ética (Gênesis 1:28). Ela era a cultura sob a qual devia viver. Exercendo-a, estaria cultuando-Lhe. A qual cultura você é submisso? O que tens produzido e exercido como fruto de sua submissão a ela? Nossas ações e seus consequentes resultados respondem tais questões.
    
O cristão que pauta sua vida no materialismo histórico-dialético cultua, ainda que de forma inconsciente, Karl Marx e seus asseclas, bem como todo o projeto revolucionário de engenharia social e de destruição da moral judaico-cristã que lhe é próprio. Os que cultuam o liberalismo econômico cultuam Mamon e o individualismo, desdobramentos da idolatria humanista. Cultura cristã, por sua vez, é o homem agindo de acordo com o legado de Jesus Cristo revelado pela Sagrada Escritura (Cf. Evangelho Segundo João 5:39). Ele encarnou para exercer na terra a cultura do Céu, para cultivar em nós Sua vontade a fim de que possamos exercê-la onde vivemos. Resumindo, realizarmos Culto racional.



[1] GONZÁLEZ, Justo. Cultura & Evangelho: O lugar da cultura no plano de Deus. Hagnos, 2011. p. 38-39.
[2] ARISTÓTELES. Política. Nova Fronteira (Saraiva de bolso), 2011. p. 21.
[3] GONZÁLEZ, Justo. Cultura & Evangelho: O lugar da cultura no plano de Deus. Hagnos, 2011. p. 54.

terça-feira, 11 de abril de 2017

O conhecimento do crucificado




Matheus Viana

“Pois decidi nada saber entre vocês, a não ser Cristo, e este crucificado”.
(I Coríntios 2:2).

O contexto em que o apóstolo Paulo fez esta afirmação era semelhante ao atual. A Igreja em Corinto estava dividida por alguns teólogos que, nas palavras de Paulo, ocupavam, ainda que inconscientemente, o lugar do próprio Cristo no coração de seus seguidores (I Coríntios 1:12). Hoje, ouvimos algumas declarações como: “Sou de Lutero”, “sou de Calvino”, “sou da TMI”, “sou pentecostal”, “sou reformado”, “sou do MDA”, “sou do G12”, “sou universal”, enfim... Há muitas correntes confessionais existentes sob a alcunha de cristianismo. Cada uma delas afirma possuir a Verdade do Evangelho e, por isso, classifica o dissenso de herege.
     
Por outro lado, há os que desconsideram toda a herança histórica da Igreja dizendo “somos de Cristo” como justificativa para se confessarem como desigrejados ou antidenominacionalistas. Com isso, se esquecem do fato de que Igreja não é uma organização denominacional ou instituição humana, mas é a vasta comunidade de pessoas que foram salvas pelo Messias e que O seguem como SENHOR. Além de se considerarem como uma “casta superior” da fé cristã, criam exatamente o que visam destruir: Uma denominação chamada desigrejados.
     
O objetivo de Paulo era acabar com a divisão na Igreja em Corinto. Para isso, era ciente de que teria que mostrar quem Cristo, de fato, era (e É). Esta demonstração, no entanto, não seria realizada segundo os pressupostos humanos que fundamentavam o pensamento e a visão daquela congregação. O que levou Paulo afirmar: “Eu mesmo, irmãos, quando estive entre vocês, não fui com discurso eloquente, nem com muita sabedoria para lhes proclamar o mistério de Deus” (I Coríntios 2:1).
     
Paulo não desconsiderou a racionalidade – que difere de racionalismo - do culto a Deus e do consequente conhecimento da pessoa de Jesus Cristo. Mas descreveu qual era seu fundamento. É notório que Paulo estava dizendo que não usava de artifícios e pressupostos filosóficos para atingir seu objetivo. Ele não tinha sua demonstração do Evangelho alicerçada nas estruturas cognitivas da maiêutica socrática, da dialética platônica ou da lógica, retórica, ética e metafísica aristotélicas, ainda que em alguns momentos utilizou-se deles, como meras ferramentas, em seus discursos. Mas no fazer e ensinar do próprio Cristo. Eis o nosso desafio.
     
A existência dos muitos movimentos doutrinários, que surgiram ao longo da História da Igreja Cristã, se dá pela variedade de elaborações teológicas resultantes de interpretações oriundas dos pressupostos culturais vigentes em cada período. Vários apologistas do período patrístico, por exemplo, na tentativa de elaborar uma ortodoxia fiel ao ensino de Jesus e dos apóstolos, produziram uma teologia permeada de elementos filosóficos gregos, sobretudo platônicos, por serem características do pensamento da época. 
Em relação aos reformadores, é nítido ao analisar a teologia de Lutero, por exemplo, detectar aspectos do nominalismo de Ockham. Herman Dooyeweerd afirmou: “Lutero, o grande reformador, estivera sob a influência do círculo de Ockham durante sua permanência no mosteiro de Erfurt. Ele mesmo declarou: ‘Sou da escola de Ockham’. Sob a influência de Ockham, o motivo religioso básico da natureza e da graça continuou a permear a vida e o pensamento de Lutero.”[1]
     
Ao analisarmos os chamados contratualistas, como por exemplo, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, vemos que, como cristãos, interpretaram as Escrituras de acordo com os pressupostos iluministas da liberdade autônoma e, com isso, elaboraram suas respectivas teorias políticas. O liberalismo teológico do século 19, com todas as nuances de seus proponentes, não fugiu à regra. Em contrapartida, o fundamentalismo, a fim de refutá-lo sacramentando a inerrância das Escrituras e a divindade de Cristo, submeteu as Escrituras às estruturas racionalistas.
     
No século 20, vemos teologias resultantes da tentativa de romper com este racionalismo em um salto de fé pós-moderno. Há também as que submetem as Escrituras às ideologias materialistas, sejam elas de direita ou de esquerda. Personagens como Marx, Gramsci, Mises, entre outros tornam-se chaves hermenêuticas. Assim, Jesus deixou de ser a Logos fundamental de Deus aos homens para se tornar um personagem interpretado e conformado sob tais prismas humanos. Daí o surgimento de um cardápio repleto de “cristianismos” ao gosto de cliente.
     
O Cristianismo genuíno, todavia, tem Cristo como fundamento. Fato óbvio, porém desconsiderado. Nossa vida e a realidade que nos cerca, em todos os seus âmbitos, devem ser submetidas a Ele, e não o contrário, como tem ocorrido. Os modelos de pensamento em voga na época em que Paulo escreveu sua carta aos coríntios, oriundos da filosofia grega, eram resultantes do esforço do homem em conhecer a origem de todas as coisas e, com isso, encontrar sentido em sua vida. Por isso Paulo, a exemplo do que fizera com os estóicos e epicureus em Atenas, apresentou Cristo como esta origem (Atos 17:22-31). Ao dizer que tinha a intenção de pregar Cristo crucificado, quis dizer que Jesus, por ser este arché, é o único Ser que dá sentido ao ser humano e à criação de modo geral.
     
O problema é que, por mais que Jesus Cristo esteja presente nos discursos ditos cristãos, não é considerado como alicerce epistemológico. Na contramão, a verdade que pavimenta tais discursos e qualifica o verdadeiro e o falso é, na realidade, ideologias que O consideram como mero personagem nelas inserido. Assim, Ele é visto, sob o prisma anacrônico do materialismo histórico, como um revolucionário que veio destruir a classe opressora dos fariseus, escribas e saduceus. E, baseados em seu exemplo, devemos destruir toda ordem vigente. Por outro lado, Ele é visto como um “Vale-bênção”, cuja função é suprir todas as expectativas produzidas por uma sociedade consumista. Assim podemos ver que Jesus, ao contrário de ser conhecido e cultuado pelo que É, é conformado aos anseios do sujeito que busca conhecê-Lo.
     
Jesus crucificado é a Verdade que sustenta toda a criação. Todas as coisas convergem Nele (Efésios 1:9-10) por ser Ele a origem e o fim de todas as coisas. Ao falar sobre a veracidade dos livros que falam do Evangelho de Jesus Cristo considerados canônicos, Eusébio de Cesareia, em sua obra História Eclesiástica, relatou algo fundamental. Mateus e Lucas descrevem a origem humana de Jesus. O primeiro descreveu Sua descendência davídica e o outro a descendência adâmica a fim de mostrar que Ele foi o cumprimento da profecia estabelecida por Deus à Eva (Gênesis 3:15). João, por sua vez, descreveu Sua origem divina, o Logos eterno, Criador de todas as coisas. A criação tem sua existência e seu consequente sentido determinados por Jesus. Por isso não conheceremos a verdade sobre nós e sobre onde vivemos a não ser por Ele e pelos absolutos que estabeleceu.
     
A revelação de Jesus como base epistemológica se dá em três aspectos, elucidados por Herman Dooyeweerd: Criação, queda e redenção. A criação só tem sentido diante de seu criador.
     
Senhor Jesus, ensina-me a viver disposto a morrer por ti. (Cf. II Co 4:10).



[1] DOOYEWEERD, Herman. Raízes da Cultura Ocidental: As opções pagã, secular e cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2015. p. 161

segunda-feira, 10 de abril de 2017

O brilho das candeias - Parte II

Matheus Viana

Mesmo confessando Jesus como Cristo com os lábios, muitos têm sua cosmovisão guiada pela “luz” do materialismo histórico/dialético, onde toda a realidade é pautada por uma guerra de classes entre opressores e oprimidos. Nela, os oprimidos têm permissão para se rebelarem, num movimento internacional chamado de revolucionário, contra os opressores, que são todos aqueles que exercem algum tipo de autoridade ou meramente discordam dos ideais preconizados pelo referido movimento.

Além disso, o ser humano não tem valor em si mesmo, mas é visto apenas como produto de suas ações e das circunstâncias e mudanças sociais. Em seu estado avançado, a etapa do globalismo, os pertencentes a este movimento passam a ser os opressores, mas agem como se ainda fossem os oprimidos para a manutenção da estratégia revolucionária visando o alcance de seu pleno êxito. Eis o fundamento moral e intelectual de “cristãos” que apoiam pautas como o feminismo, a ideologia de gênero, o aborto, entre outras do referido movimento.
    
Outros são pautados pelo materialismo do naturalismo científico, produto do racionalismo que extrai Deus do universo e, consequentemente, da realidade que permeia o ser humano. Há também os que são levados pelo fluxo da onda pós-moderna, cujo existencialismo propõe o culto aos impulsos e sentimentos, castrando desta forma o bom senso e, de quebra, a ética de Deus sobre o homem.
    
Qualquer luz que não tenha Jesus Cristo como fonte é, na verdade, trevas, conforme o próprio Jesus afirmou: “Portanto, se a luz (fos) que está dentro de você são trevas, quão grandes trevas são!” (Evangelho segundo Mateus 6:23). Jesus, porém, afirmou que se os nossos olhos forem bons, representando neste contexto uma cosmovisão - e, por conseguinte, uma ética - fundamentada Nele, todo o nosso corpo (nossa vida de forma completa) será bom. Tal advertência evoca o seguinte salmo: “Tu, SENHOR, manténs acesa a minha lâmpada; o meu Deus transforma em luz as minhas trevas” (Salmo 18:28).
    
Assim, há lugares específicos para serem iluminados. Quem traz consigo uma candeia, conforme Jesus ensinou, não a coloca debaixo da uma vasilha ou de uma cama. Mas em um lugar apropriado. A questão que surge, de súbito, é: Onde colocar nossa candeia? O primeiro lugar que a Luz de Cristo precisa iluminar é a nossa mente. O apóstolo Paulo elucidou aos coríntios: “Porque o deus deste século cegou o entendimento das pessoas para não lhes resplandecer a luz do Evangelho de Cristo, que é a Glória de Deus.” (II Coríntios 4:4). O texto grego diz “noémata ton apiston”, que é literalmente traduzido como entendimento dos incrédulos. A expressão traduzida como luz é fotismon, que é derivada de fos/fotós.
    
O resultado de se ter o entendimento (noémata, por se derivar dos termos nous/noia) absorto em trevas, por estar distante de Deus, é incredulidade (apiston, que é derivada de pistis - fé). E ela, mesmo sendo efeito, também é a causa de a luz/imagem (fotismon) de Cristo (Ele próprio), que é a Glória de Deus (João 1:14, 14:9), não ser refletida em nosso entendimento e, consequentemente, em nossa vida de forma completa. Por isso o salmista declarou: “Lâmpada para os meus pés e luz para os meus caminhos é a Sua Palavra.” (Salmo 119:105). Lâmpada e luz. Uma lâmpada que não possui luz não ilumina. Logo, não tem serventia. Por isso o apóstolo Paulo advertiu: “Não apagueis o Espírito Santo.” (I Ts 5:19). Advertência óbvia ignorada por muitos cristãos.
    
Entendimento. Eis o fulcro da cegueira humana. Sobre isso, o apóstolo Paulo elucidou: “O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie de sua pura e sincera devoção a Cristo” (II Coríntios 11:3). A expressão traduzida como mente (ou entendimento, conforme outras traduções em português), neste trecho, também é noémata. Com o pecado original, a mente humana foi obscurecida, pois deixou de receber a luz da ética divina, fruto da comunhão com o próprio Deus, e foi cegada pelas trevas do engodo da serpente que lhe propôs uma utópica autonomia em relação ao Criador. A proposta se repete e está em franca disseminação.
    
O apóstolo João escreveu em sua primeira carta: “Esta é a mensagem que dele ouvimos e transmitimos a vocês: Deus é luz; nele não há treva nenhuma. Se afirmamos que temos comunhão com Ele, mas andamos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Se, porém, andamos na luz, como Ele está na luz, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, Seu Filho, nos purifica de todo pecado.” (I João 1:6-7).
    
A afirmação traduzida como “Deus é luz” é, no texto grego, ó Theos fos. No início do Evangelho de Jesus Cristo que escreveu, o apóstolo João afirmou: “Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens” (Evangelho segundo João 1:4). O texto grego diz: “en auto zoé én kai én to fos ton antropos”, cuja tradução, próxima do literal, é: “era a própria vida e a vida era a luz (fos) dos homens”. Jesus é a zoé (vida no sentido pleno), e esta é a luz (fos/fotós) dos homens. Quando a vida de Deus, que também é luz, está em nós, refletimos, através de nós, a Sua luz/imagem (fos/fotós). Foi neste princípio que Deus criou o homem à Sua imagem (Gênesis 1:26-27).
    
Não há como sermos candeias sem estarmos ligados, de todo coração, alma, intelecto e forças ao Evangelho de Cristo. Pois Jesus Cristo, A Luz do mundo, é refletido (revelado) através das Escrituras (Evangelho segundo João 5:39).