terça-feira, 29 de novembro de 2016

O alicerce do conhecimento - Parte I

Matheus Viana

“Não fui com discurso eloquente, nem com muita sabedoria para lhes proclamar o mistério de Deus. Pois decidi nada saber entre vocês, a não ser Jesus Cristo, e este, crucificado.” (I Coríntios 2:1-2).

Embora registrada há muito tempo, esta declaração do apóstolo Paulo é pertinente a nós. Seu fator central é a proclamação do mistério de Deus. Em algumas traduções aparece o termo testemunho, já que a expressão grega é martírion. Por quê? Que mistério ou testemunho é esse? O Evangelho de Jesus Cristo (Cf. I Coríntios 1:17). O que é Evangelho? As boas novas de Deus aos homens. O que são estas boas novas? Cristo, a imagem do Deus invisível. Sua pessoa, vida e obra.

Por que Paulo não usou em sua declaração o termo evangelion (evangelho), e sim martírion? Este termo é derivado de mártires, que aparece em Atos 1:8, por exemplo, e é traduzido por testemunha. O que ele quis dizer foi que, ao se portar como uma testemunha de Cristo, estava sendo um instrumento usado por Deus para transmitir o conhecimento de quem Cristo é e o que fez e ensinou (Cf. Atos 1:1). Mediante isso, você já parou para pensar por que precisamos obter tal conhecimento?

Conforme preconizaram Agostinho de Hipona em seu livro Cidade de Deus e João Calvino em suas Institutas, o conhecimento do homem é completamente dependente do conhecimento de Deus, revelado em Jesus Cristo (Colossenses 1:15, João 14:9). O conhecimento de Cristo, além de revelar quem Deus é, revela também, além de sua origem, o que o ser humano deve ser e realizar (Filipenses 2:13). Por isso Jesus possui duas naturezas - plenamente Deus e plenamente homem -, conforme afirma o Credo niceno-constantinopolitano, também confirmado no Concílio de Calcedônia (451 d. C.).

Tal conhecimento, entretanto, não se refere a uma espécie de gnosticismo. Não é o conhecimento (gnose) de Cristo quem salva, mas o próprio Cristo (pessoa e obra). Assim, embora o conhecimento do Theologos não seja condição prévia para nossa salvação e redenção, ele é fundamental para a plena restauração da Imago Dei (Imagem de Deus) em nós (Cf. II Coríntios 3:18 e Filipenses 3:7-11) e o consequente cumprimento de Seu propósito. Elementos que o apóstolo Paulo chamou de desenvolvimento da salvação (Filipenses 2:12). Óbvio que ele não se referiu ao desenvolvimento da obra salvadora de Cristo, consumada na cruz (Evangelho segundo João 19:30), tampouco da salvação em si. Mas da restauração da ética de Deus no homem, que é oriunda de Sua essência em nós.

A nossa vida só possui sentido neste conhecimento. Pois fomos formados por Ele, por meio Dele e para Ele (Colossenses 1:16). Fomos criados à Sua imagem e semelhança. Ele é a fonte da vida e de todos os aspectos que a constituem, que foram depravados pelo pecado. Este conhecimento, no entanto, não se dá através da sabedoria humana. Sobre isso, o apóstolo Paulo afirmou: “Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por meio da sabedoria humana...” (I Coríntios 1:21).  

Conforme vimos no livro Culto racional, a sabedoria humana é produto da depravação de nossa mente. Por isso, a racionalidade humana tornou-se obscurecida, por se afastar da Luz suprema, ao ponto de não ser capaz de obter os conhecimentos teológicos (de Deus), antropológicos (do homem) e cosmológicos (do universo) como realmente são (Isaías 60:1, II Coríntios 4:4), pois são complementares. O primeiro serve de referência aos demais. Se o primeiro não for considerado, os outros não serão plenamente obtidos.

Um método do conhecimento, qualquer que seja, precisa de absolutos, abstratos ou concretos, que sejam usados como fundamentos e referências do objeto a ser conhecido. Na tentativa de estudar o homem (antropologia, seja ela biológica, psíquica ou sociocultural) sem a existência de Deus, o padrão referencial passou a ser um ancestral comum que, por sua vez, é oriundo da evolução natural aleatória (sem propósito). Assim, o ser humano é definido como um mero acidente da natureza. Por isso, não há definição que sirva como resposta para a questão: O que é o ser humano?. Pois ela só será respondida quando houver o reconhecimento de que Seu antecessor, que funciona como padrão referencial, é Cristo, o Deus que se fez homem.

Continua...

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Integridade devocional

Matheus Viana

É interessante a dialética que o apóstolo Paulo utilizou em sua carta aos cristãos em Corinto ao falar das divisões existentes naquela congregação: carnais x espirituais. Desde o surgimento do pecado, somos subjugados por ela. Contudo, para melhor a entendermos, é necessário recordarmos a realidade humana antes do pecado.

Esta distinção não existia pelo fato do homem exercer, integralmente, na criação a ética de Deus estabelecida a ele, proveniente de seu relacionamento com o Criador, também chamada de mandato cultural ou culto racional.

Com o pecado, o homem se apartou de Deus e, consequentemente, de Sua ética. Assim, passou a seguir uma ética contrária originada em uma mente degradada pelo engano de Satanás (II Coríntios 11:3). Seus atos tornaram-se carnais por serem desprovidos da espiritualidade contida na ética divina, sendo esta um desdobramento do relacionamento entre Deus e o homem. Ou seja, esta espiritualidade, ou devoção, não tem nada haver com a dicotomia natural/secular -espiritual que muitos, equivocadamente, relacionam.

Quando recebemos o Espírito Santo, somos regenerados por recebermos a mesma essência que o homem recebeu ao se tornar um ser vivente (Gênesis 2:7, Romanos 8:11). Desta forma, na medida em que, por meio do consolo do Espírito Santo (Evangelho segundo João 14:26), somos submetidos à ética de Deus, esta dicotomia vai desaparecendo. Pois o Senhorio de Cristo é absoluto como consequência de sua redenção ser completa, conforme Ele mesmo (Evangelho segundo Marcos 12:28-30) e o apóstolo Paulo preconizaram (I Coríntios 10:31).

É a esta absolutização da ética divina sobre nós que Jesus se referiu quando disse: “Sejam perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.” (Evangelho segundo Mateus 5:48). A expressão perfeito é teleion, também traduzida como completo e íntegro. Assim, perfeição, neste contexto, é se submeter à ética divina integralmente, em todas as áreas de nossa vida. Logo, na vida de um cristão não existe tal distinção.

Paulo, por sua vez, estava lidando com pessoas que ainda estavam sob sua tutela. Por isso os chamou de carnais. Sendo, de acordo com a exortação paulina, carnal aquele que ainda vive sob tal dicotomia, surge a questão: O que é uma pessoa espiritual? É aqui que reside a grande confusão.

Por sermos influenciados por um pensamento dialético (duas éticas) e, dentro dele, antitético (éticas contrárias e excludentes), temos a tendência de classificar como espiritual o que for contrário a esta carnalidade. Assim, não atribuímos espiritualidade aos atributos humanos que Deus, em Sua sabedoria e soberania, atribui (Cf. Gênesis 1:28, 2:15).

O problema é que esta carnalidade também é produto de uma mentalidade dialética e antitética que redunda no dualismo citado por Paulo. Mas, diferente de Paulo, muitos (e coloque muitos nisto) classificam como carnal o que é considerado secular, e espiritual o que é do âmbito religioso/eclesiástico. Um erro crasso e, infelizmente, muito comum.

A espiritualidade ou devoção oriunda desta dicotomia é problemática por não ser íntegra. Esta falta de integridade, por sua vez, redunda em uma espiritualidade alienante. Você conhece o “irmãozinho do monte”? Nada contra orar no monte. Mas este não deve ser o “artifício único” de espiritualidade. No decorrer do desenvolvimento histórico do cristianismo houve pessoas que, fundamentadas em um pensamento estoico de que a matéria é, em si, má, exerceram uma espiritualidade de reclusão no deserto, em monastérios e mosteiros. Porém, a oração sacerdotal de Jesus em favor de Seus apóstolos também recai sobre nós, Seus discípulos: “Não lhe peço que os tires do mundo, mas livra-os do mal (Evangelho segundo João 17:15).

João, o Batista, viveu no deserto. Mas o contexto que envolveu o seu chamado foi peculiar. Deus quis emitir, além do cumprimento das profecias feitas por meio de Isaías, a mensagem de que estava rechaçando o sacerdócio corrompido e de que Ele não falava mais do Templo, mas do deserto através de um sacerdote que não se corrompeu com o farisaísmo. Assim, podemos ver que a devoção de João não foi alienante. Deus apenas quis que o povo entendesse que Ele estava substituindo o culto que era realizado no Templo pelo realizado no deserto através de João, o Batista.

Um homem lavar a louça para a esposa é tão espiritual quanto um momento de oração. O fato desta afirmação lhe parecer estranha – ou até sem sentido -, indica o quanto estás acometido por esta distinção. Lavar a louça implica em mordomia doméstica. Ela, por sua vez, redunda em harmonia familiar, que redunda na glorificação de Cristo por meio de testemunhos de famílias saudáveis.

É interessante a narrativa da devoção da Igreja em Jerusalém, em seus primórdios, descrita no livro de Atos: “Eles se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão, ao partir do pão e às orações. (...) Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do Templo. Partiam o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração” (Atos 2:42 e 46 - NVI).

Veja que Lucas, em seu relato, não classificou “ensino dos apóstolos” e “orações” como coisas espirituais e a “comunhão” e o “partir do pão” como carnais. Para um cristão, tudo o que envolve sua vida é culto racional. A Igreja de Atos vivia esta realidade, apesar de terem alguns Ananias e Safiras que faziam esta distinção.

Quantas pessoas conhecidas no meio evangélico priorizaram seus “ministérios” e não deram a devida atenção à família (cônjuges e filhos)? Os resultados? Divórcio, filhos químico-dependentes, entre outras catástrofes. Como disse Paulo a Timóteo, aquele que não cuida de sua família é pior do que o infiel. Família é algo espiritual. Trabalho, desde que não infrinja a Escritura, é espiritual. Com o termo espiritual quero dizer culto e devoção a Deus. Eis um ponto fundamental da renovação de mente elucidada pelo apóstolo Paulo, em sua carta aos romanos (12:1-2), a fim de que vivamos o culto racional.