Matheus
Viana
O conceito atual de liberdade é a total capacidade de agir conforme os próprios
impulsos e desejos[1].
O chavão “seja livre”, entoado à exaustão como uma espécie de mantra, carrega
em seu bojo o intento de que o indivíduo não se prive de nenhuma vontade. Autocontrole
– ou domínio próprio – é visto como um moralismo opressor. Nietzsche, o grande
guru póstumo do niilismo pós-moderno que teorizou tal proposta, elucidou:
“O indivíduo soberano, igual apenas a si
mesmo, novamente liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo
supramoral (pois “autônomo” e “moral” se excluem), em suma, o homem da vontade
própria, duradoura e independente, o que pode fazer promessas – e nele
encontramos, vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do que foi
finalmente alcançado e está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder
e liberdade, um sentimento de realização”.[2]
De acordo com o pensador alemão, há duas
espécies de moral: a nobre e a escrava. A descrição citada acima foi sobre o indivíduo
praticante da moral nobre. Assim,
podemos ver que ele considerou como moral nobre a realização plena dos desejos
do indivíduo à revelia de qualquer outra moral que os contrarie. Mas tal proposta
só é possível de ser exercida se o senso de certo e errado que todo ser humano
possui (que lhe confere a necessidade de seguir um padrão ético, independente
de qual seja[3])
for relativizado ao extremo.
A proposta
vigente de relativização de valores e do próprio conceito de verdade, que redunda na inversão moral
tão evidente em nossos dias, define o tom do imaginário (intelectualidade)
coletivo, também conhecido como senso comum, que determina a cultura e,
consequentemente, o pensar, o sentir e o agir da grande massa. Diante desta
situação, não há como não evocar, a fim de compreendê-la, o mito grego do Voo de Ícaro.
De acordo com o mito, Dédalo, arquiteto e
artesão, projetou o labirinto onde habitava Minotauro e informou Teseu sobre
como entrar e andar nele. Após Teseu seguir tais orientações e matar o
Minotauro, o rei de Creta, Minos, ordenou que Dédalo, juntamente com seu filho,
Ícaro, fosse preso no labirinto que ele mesmo projetou.
Inventor e genioso como
era, Dédalo projetou asas com pedaços de madeira, peles de animais e penas de
pássaros revestidas com cera para fixá-los todos e dar-lhes consistência. Construiu
dois pares de asas, deu um ao seu filho e o ensinou a usá-lo. O intento era
único: se libertarem do labirinto. Para que isso fosse possível, havia duas
advertências a serem consideradas: Uma de que não poderiam voar muito baixo
para que as águas e o sal do mar Egeu não danificassem as asas; e a outra de
que não poderiam voar muito alto para que o calor do sol não derretesse a cera
e desintegrasse as asas. Depois de um certo tempo, ambos alçaram voo.
Conseguiram fugir do labirinto. Embriagado com a façanha, Ícaro começou a voar
cada vez mais alto, ignorando as advertências do pai, em direção ao sol.
Voar em direção ao sol. Frase que evoca um
sentimento “heróico” (ainda que seja um heroísmo egoísta, peculiar da presente
era) e poético. Posso ouvir, enquanto escrevo estas linhas, o sussurro que ecoa
sobre os seres humanos devotos da pós-modernidade: “Liberdade, liberdade, abre
as asas sobre nós”. Por mais poético que pareça, o voo libertador de Ícaro foi
a causa de sua ruína definitiva. Quanto mais alto voava, seduzido pela grandeza
de poder estar e ver acima da cidade e das pessoas, convicto de sua
auto-elevação, aproximou-se do sol. O calor derreteu a cera de seu par de asas
que se desintegrou, causando sua queda fatal.
Sei que alguns podem argumentar a respeito
de que a morte de Ícaro foi a sua verdadeira e definitiva libertação. Tal
argumentação, no entanto, contraria o próprio enredo do mito. Ícaro não queria
morrer, mas se libertar do labirinto ao qual estava confinado. A morte não foi
um objetivo alcançado por ser previamente planejado, mas consequência de uma
escolha equivocada, por mais libertadora que aparentou ser. Assim como quem
comete suicídio não quer, de fato, morrer, mas se libertar dos labirintos de
sua alma. A morte não é um fim em si mesma, mas um meio, uma alternativa de findar
um mal.
Na contramão deste ideal de liberdade que torna
o indivíduo escravo de seus instintos e desejos, a verdadeira liberdade
acontece no interior do indivíduo. Conforme elucidou o apóstolo Paulo: “... não permitam que o pecado continue
dominando os seus corpos mortais, fazendo com que vocês obedeçam os seus
desejos” (Romanos 6:12). A. W. Tozer preconizou: “A libertação vem apenas
pela negação do eu”[4].
Jesus disse: “Conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará” (Evangelho segundo João 8:32). É necessário meditar
sobre esta verdade em seus três aspectos,
com suas respectivas perspectivas:
1
– A verdade sobre mim: Quem sou? (Perspectiva antropológica)
2
– A verdade sobre o sentido da vida: De onde vim? Para onde vou? (Perspectivas ética/
metafísica/religiosa/teológica)
3
– A verdade sobre a realidade: Onde estou? (Perspectivas
filosófica/histórica/sociológica).
Claramente que cada uma destas perspectivas
demanda outras abordagens complementares de diferentes áreas do saber, como por
exemplo, a perspectiva antropológica requer as abordagens biológica e cultural.
Assim como não podemos ignorar as abordagens físicas, matemáticas e
linguísticas. Ao colocar as perspectivas entre parênteses, não se trata de
reducionismo, mas de um mero direcionamento, respeitando e considerando a vasta
abrangência epistemológica e fenomenológica que as constitui. O que quero dizer
com isso? Que devemos considerar, em nossa análise sobre as diferentes
perspectivas da verdade, os vários aspectos, que Herman Dooyeweerd chamou de modais[5],
que compõem a realidade.
Tal análise tem como base duas premissas:
A primeira é a de que as respostas das perguntas apontadas nos pontos 1 e 2 nos
levam a Deus. E a segunda é a de que a verdade preconizada por Jesus não é um
conceito, mas uma pessoa: Ele mesmo (Evangelho segundo João 14:6). Elucidarei
sobre elas em outra oportunidade.
Não são as circunstâncias externas que nos
fazem livres. Liberdade consiste em
um indivíduo não ser escravo de si mesmo. É possível você ser livre estando
confinado a uma prisão, e estar preso em cadeias interiores (seja através da
culpa, do ressentimento, da angústia, de traumas do passado, do pecado) vivendo
em um “paraíso”. A busca frenética do ser humano por liberdade é a suma
demonstração de que ele não é livre. Pois buscamos apenas aquilo que ainda não
possuímos. Tal desespero, aliado à obsessão aos nossos instintos e desejos,
leva o ser humano a construir asas repletas de cera. Analisando e
contextualizando a segunda proposta feita pelo Tentador a Jesus, durante a
quarentena de Jesus no deserto, elucidei no livro Culto racional:
“Esta
segunda proposta é feita a nós hoje através do existencialismo, filosofia que
apregoa o “salto de fé”. Ou seja, conforme vimos, é a conduta humana que
abandona a razão e que se pauta unicamente pelos seus instintos e impulsos,
sentido de sua existência. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche
define como falsa moral ou moral escrava qualquer artifício usado
para controlar ou coibir os impulsos e instintos humanos. É a morte da
moralidade. Neste mesmo mote, o filósofo francês Jean-Paul Sartre foi o mentor
intelectual da revolução contracultura, em 1968, que apregoou o lema ‘sexo,
drogas e rock´n roll’. O que gerou o crescimento vertiginoso da sexualidade
juvenil e do consumo de drogas ilícitas.”[6]
A jornada rumo ao “sol da liberdade em
raios fúlgidos” não gera outra coisa a não ser a queda fatal. Foi o que
elucidou, há milênios, o sábio Salomão: “Há
caminhos que ao homem parecem direitos, mas no fim são caminhos de morte” (Provérbios
16:25). Não voe o voo de Ícaro!
[1] Para saber mais informações sobre
a diferença entre instinto e desejo, leia o livro Culto racional, de minha autoria.
[2] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia do moral: uma polêmica. São
Paulo: Companhia das letras, 2009, p. 45.
[3] Para maiores detalhes, veja o
livro Cristianismo puro e simples, de C. S. Lewis.
[4] TOZER, A. W. Dia a dia com Tozer. Curitiba: Publicações Pão Diário, 2016, p.
101.
[5] DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento: Estudos
sobre a pretensa autonomia do pensamento científico. São Paulo: Hagnos, 2010,
p. 53-54.
[6] VIANA, Matheus. Culto racional: A interação entre as
razões divina e humana. Ribeirão Preto: Legis Summa, 2016, p. 131.
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