terça-feira, 27 de outubro de 2015

Catequese, caráter e cultura - Parte II

  Matheus Viana

Manassés também “Reconstruiu os altares idólatras que seu pai, Ezequias, havia demolido...”. Basta lermos o livro de Atos ou estudarmos a História da Igreja para ver como ela agiu em seus primórdios, a fim de detectarmos a abismal distância a qual nos encontramos. Basta visitar o facebook para ver os altares da egolatria erguidos em meio à cristandade pós-moderna. E os “artistas gospel”? E os empresários da fé, ministros que fazem do chamado divino uma oportunidade para comercializá-lo? Tornam-se “astros do púlpito”, com venda de ingressos antecipados e tudo.
    
Outro altar é o da doxolatria (adoração à doutrina). Vemos um notável levante de defensores de certas doutrinas que usam – e abusam – dos meios tecnológicos e sociais para difundirem os preceitos da doutrina da qual são devotos, e não do Evangelho (legado de Jesus Cristo). O número de denominações divididas por conta do acirramento, por exemplo, entre calvinistas e arminianos é preocupante. No ímpeto pela ortodoxia, a doutrina, independente qual seja, tem ocupado a supremacia do próprio Cristo no coração de muitos. Altar que deve ser derrubado.
    
Manassés também edificou altares a Baal e um poste sagrado – também conhecido como poste-ídolo – para Aserá, deusa cananeia da fertilidade, também chamada de Astarote. Os cultos a este ídolo eram realizados com orgias, onde as sacerdotisas tinham relações sexuais com os que a cultuavam (Cf. Levítico 25:1-18). Em outras palavras, era um culto à imoralidade sexual. A Palavra utilizada pelos escritores do Novo Testamento, traduzida por imoralidade sexual e também por adultério, é pornéia, de onde se deriva a expressão pornografia. Pornografia, na verdade, é a descrição de qualquer tipo de sexualidade ilícita. A ela, o escritor Marquês de Sade (1749-1814) dedicou sua vida e, com isso, colaborou de forma significativa com a degradação da cultura ocidental. Quando deixamos que a imoralidade sexual nos domine, independente da forma em que ela se manifesta em nós, estamos cultuando Astarote. Ou seja, erguendo um altar a ela em nosso coração, que é o Templo do Espírito Santo (I Coríntios 6:19).

Além de tudo isso, Manassés realizou um equívoco significativo: “Construiu altares no templo do SENHOR, do qual este havia dito: ‘Em Jerusalém porei o meu nome.’” (II Reis 21:4). Deus estabeleceu este decreto aos hebreus, antes de entrarem em Canaã, como parte de Sua ética a eles:

“Estes são os decretos e ordenanças que vocês devem ter o cuidado de cumprir enquanto viverem na terra que o SENHOR, o Deus de seus antepassados, deu a vocês como herança. Destruam completamente todos os lugares nos quais as nações que vocês estão desalojando adoram os seus deuses, tanto nos altos montes como nas colinas e à sombra de toda árvore frondosa. Derrubem os seus altares, esmigalhem as suas colunas sagradas e queimem os seus postes sagrados; despedacem os ídolos dos deuses e eliminem os nomes deles daqueles lugares. Vocês, porém, não adorarão ao SENHOR, o seu Deus, como eles adoram os seus deuses. Mas procurarão o lugar que o SENHOR, o seu Deus, escolher dentre as tribos para ali por o seu Nome e a sua habitação.” (Deuteronômio 12:1-4).

Quando Davi expressa a Deus seu desejo de construir um lugar para Sua habitação em meio ao Seu povo, Deus lhe disse através do profeta Natã: “Será ele (Salomão) quem construirá um templo em meu nome.” (II Samuel 7:13). E este templo foi construído em Jerusalém. O decreto descrito em Deuteronômio teve como base os Dez mandamentos, que foram o reestabelecimento – não em seu caráter pleno – do culto racional do homem a Deus, seu Criador, onde Ele deveria ser adorado única e exclusivamente (Êxodo 20:1-11). Consequentemente, tal devoção seria a base para a vida em comunidade (Êxodo 20:12-17). Assim, vemos que a devoção que Deus espera que ofereçamos a Ele seja exclusiva, santa (kadesh, consagrada/sem mistura). Pois é esta a expressão que deveria ser gravada no diadema do sacerdote (Êxodo 28:36): Santidade ou Consagrado (Kadesh) ao Senhor (Adonai).
    
Por O nome de Deus significa que o objeto que O leva pertence a Ele. Manassés usou, indevidamente, algo que não lhe pertencia de modo que desagradou profundamente O proprietário. Refletindo sobre isso, não há como não evocarmos o episódio quando Jesus chega ao templo de Jerusalém e encontra cambistas. As palavras de Jesus emitem uma severa mensagem: “Não está escrito: ‘A minha casa será chamada casa de oração para todos os povos? Mas vocês fizeram dela um covil de ladrões.’” (Evangelho segundo Marcos 11:17). A ira de Jesus, resultado de uma profunda indignação – que não anulou o exercício de Sua razão -, paira sobre Sua Igreja. Manassés construiu altares aos deuses pagãos, assim como os homens dos tempos de Jesus construíram altares à egolatria, assim como muitos nos dias atuais.
    
Jesus subiu a Jerusalém por estar próximo da Páscoa. Ocasião propícia para os judeus devotos realizarem os sacrifícios ordenados por Moisés. Por estarem debaixo do jugo romano, muitos tiveram que usar seus animais como pagamentos de tributos ao imperador. Por isso, tinham que comprar o animal a ser sacrificado conforme a Lei ordenava. Ao entrar no templo, Jesus encontrou um verdadeiro comércio do culto. Embora usem métodos diferentes, os mercadores da fé agem à semelhança dos que Jesus expulsou (Evangelho segundo Marcos 11:15-16).


Ele não tolerou, assim como não podemos tolerar, a comercialização da fé através da teologia da prosperidade, do mercado gospel e da grande variedade de visões e estratégias que utilizam métodos corporativos para fazer da Igreja um mecanismo lucrativo. Tanto é que muitos já não se indignam ao ouvir o chavão: Igreja é empresa. Não. Segundo Jesus, o líder supremo da Igreja, Ela é a Casa de Oração. Ou seja, lugar onde Ele – somente Ele – é cultuado. Não é mais um lugar geográfico nem físico. Mas a comunidade dos regenerados que O adoram em espírito e em verdade (Evangelho segundo João 4:23), onde Ele habita e através de quem governará sobre a terra (Efésios 2:22, Evangelho segundo Mateus 16:18).



Continua...

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Catequese, caráter e cultura – Parte I

Matheus Viana

A temporalidade nas Escrituras é algo fascinante. Muitas profecias nelas contidas foram cumpridas, mesmo assim emitem uma mensagem pertinente a nós. Sob tal perspectiva está o livro de Daniel. A realidade descrita nele é, em alguns aspectos, semelhante à nossa. O que o torna alvo de uma necessária análise.

Ele começa narrando o episódio quando o reino de Judá - do Sul - é levado cativo pela Babilônia. Mas tal fato é o efeito de uma causa. Para a compreendermos, devemos considerar seu contexto. A Bíblia diz: “No terceiro ano do reinado de Jeoaquim, rei de Judá, Nabucodonosor, rei da Babilônia, veio a Jerusalém e a sitiou.” (Daniel 1:1-2). Por que tal fato ocorreu no terceiro ano de Jeoaquim? Por ter sido consequência de seu governo autônomo em relação a Deus e à Sua Lei que, por isso, tornou-se corrupto.

O comentário sobre o reinado de Jeoaquim é sucinto: “Ele fez o que o SENHOR reprova, tal como os seus antepassados.” (II Reis 24:37). O cativeiro babilônico “... aconteceu a Judá conforme a ordem do SENHOR a fim de removê-los de sua presença, por causa de todos os pecados que Manassés cometeu, inclusive o derramamento de sangue inocente.” (II Reis 24:3-4). Ou seja, a causa não foi apenas o governo corrupto de Jeoaquim, mas as atrocidades cometidas contra o povo e contra Deus no governo de seu antecessor, Manassés.
    
Jeoaquim era da linhagem de Manassés, o pior rei que governou sobre Judá. “Ele fez o que o SENHOR reprova, imitando as práticas detestáveis das nações que o SENHOR havia expulsado de diante dos israelitas. Reconstruiu os altares idólatras que seu pai, Ezequias, havia demolido e também ergueu altares para Baal e fez um poste sagrado para Aserá, como fizera Acabe, rei de Israel. Inclinou-se diante de todos os exércitos celestes e lhes prestou culto. Construiu altares no templo do SENHOR, do qual este havia dito: ‘Em Jerusalém porei o meu nome’.” (II Reis 21:2-4).
    
Manassés não agiu conforme seu pai, Ezequias. Fez exatamente o contrário. De acordo com o relato bíblico, se submeteu às culturas pagãs. Algo, infelizmente, presente em meio à Igreja. Manassés “importou” os conceitos e valores das culturas não aliançadas com Deus, assim como a Igreja tem “importado” práticas seculares, desprovidas de aliança com Ele por meio de Sua Palavra. Fato que demonstrou seu abandono às Leis de Deus dadas através de Moisés.
    
Manassés imitou as práticas detestáveis a Deus. Isso fala de aculturação. O rei de Judá fez com que seus súditos fossem doutrinados de acordo com a cultura pagã não condizente com a vontade de Deus estabelecida na Lei. A Igreja tem sofrido uma aculturação semelhante. E não é de hoje. Na tentativa de fazer com que o Evangelho seja acessível às pessoas, Seu caráter tem sido relativizado e, consequentemente, corrompido. Refletindo sobre este perigo, Alister McGrath preconiza: “Permitir que novas ideias e valores tornem-se controlados por qualquer coisa ou pessoa, que não a auto-revelação de Deus na Escritura, é adotar uma ideologia, em vez de uma teologia; é tornar-nos controlados por ideias e valores cujas origens se acham fora da tradicão cristã – e potencialmente tornar-nos escravizados por eles.”[1]
    
Na mosca! O Evangelho deve ser pregado de modo que as pessoas O compreendam, pois a fé é resultado de ouví-Lo (Romanos 10:17). No entanto, a compreensão do Evangelho é fruto da ação do Espírito Santo no intelecto humano (Evangelho segundo João 16:8, I Coríntios 2:10-16), e não na capacidade do orador ou eficácia da “estratégia de evangelismo” (I Coríntios 2:4-5). Sendo assim, o poder do Evangelho se manifesta quando, através dele, Jesus Cristo, o próprio Logos, é revelado - em detrimento de qualquer valor ou conceito - de modo a ser conhecido. Por isso Jesus afirmou: “Examinai as escrituras, pois elas de mim testificam.” (Evangelho segundo João 5:39). Ou seja, não devemos subjugar o Evangelho a nenhuma tendência não alicerçada em Cristo, mesmo que tenha grande abrangência cultural.

Escrevendo aos coríntios, que eram versados na cultura grega, Paulo afirmou: “Eu mesmo, irmãos, quando estive entre vocês, não foi com discurso eloquente (alicerçado no método socrático e na retórica aristotélica), nem com muita sabedoria (filosofia platônica e o mistério dos gnósticos) para lhes proclamar o mistério de Deus. Pois decidi nada saber entre vocês, a não ser Jesus Cristo, e este, crucificado.” (I Coríntios 2:2-3).
    
Paulo não configurou ou aculturou o Evangelho conforme os valores e conceitos dos coríntios, provenientes de uma cultura gentílica, a fim de proclamá-Lo. Mas preservou Seu caráter – a Cruz de Cristo -  e Nele perseverou para mantê-Lo íntegro. Algo que a Igreja não tem feito. Pelo contrário, o Jesus que temos apresentado é o mais aculturado possível.

Sobre isso, McGrath afirma que o Evangelho “... é fortemente contracultural, defendendo o direito fundamental do cristianismo de ser dominado por Cristo, em vez de dominá-lo à luz dos costumes sociais transitórios contemporâneos.”[2] A pessoa de Jesus Cristo – assim como Seu Evangelho – está acima de qualquer contexto e elemento culturais que não estejam Nele alicerçados.

Continua...




[1] McGRATH, Alister. Paixão pela verdade: a coerência intelectual do evangelicalismo; Hope Gordon Silva. – São Paulo: Shedd Publicações, 2007. p. 53.
[2] Ibid. p. 30.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

A essência da catequese



Matheus Viana

A expressão Catequese vem do latim catechesis que, por sua vez, originou-se da expressão grega catéquesis, também derivada do verbo catequéu que significa instruir a viva voz. A expressão normalmente usada para ensino ou instrução no novo testamento bíblico é didaskalian, que aparece, por exemplo, em II Timóteo 3:16. Portanto, podemos concluir que catequese é uma forma de ensino/instrução.

Deus estabeleceu este método no início da criação quando orientou o ser humano no tocante ao mandato cultural (Gênesis 1:28-29, 2:16-17). Ao chamar Abraão, outra vez utilizou-se dele (Gênesis 12:1-3). Com Moisés não foi diferente (Êxodo 3:1-22). Por isso Jesus começou Seu ministério utilizando-o (Evangelho segundo Mateus 5:1). Os apóstolos, a exemplo do Mestre, também o utilizaram, bem como os pais da Igreja e os reformadores.

É importante analisarmos a primeira catequese de Deus ao ser humano (Gênesis 1:28-29), pois, de certa forma, ela permanece vigente. Os dois primeiros elementos nela contidos são fertilidade e governo/domínio. Não existe governo sem fertilidade. Explico. Esta fertilidade era no tocante à multiplicação da espécie humana. Desejo que, sob o preceito da Nova Aliança, foi elucidado pelo apóstolo Paulo (Romanos 8:29).

A catequese de Jesus a Pedro foi de que a Igreja prevaleceria sobre o mal, chamado na ocasião de “portas do inferno”, mas tal fato era consequência de permanecer em Jesus Cristo, a Pedra angular (Evangelho segundo Mateus 16:18-19, Efésios 2:20-21). A Igreja de Jesus é composta por aqueles que, por serem regenerados pelo Espírito Santo, O seguem de todo coração, de toda alma, de todo intelecto e com todas as forças. Abraham Kuyper (1837-1920), reconstrucionista cristão holandês, definiu: “... a Igreja, em sua essência, é um organismo espiritual, incluindo céu e terra, mas na atualidade tendo seu centro e o ponto de partida para sua ação, não sobre a terra, mas no céu.”[1]
    
Aqui é importante evocarmos a dialética platônica a fim de compreendermos o caráter da Igreja. Platão dizia que tudo o que existe na natureza, que ele chamou de mundo sensitivo, era a representação do que existia na realidade espiritual, que chamou de mundo inteligível/das ideias ou das formas. Assim, a Igreja terrena é – em sua essência e, consequentemente, seu caráter – reflexo da Igreja invisível e espiritual. Pelo menos deveria ser...
    
Esta transcendência, no entanto, não a torna inoperante. O próprio Kuyper afirmou: “A Igreja verdadeira, celestial, invisível deve manifestar-se na Igreja terrena. Se não, vocês terão uma sociedade, mas não uma Igreja. Então, a verdadeira essência e é continua sendo o corpo de Cristo, do qual as pessoas regeneradas são membros.”[2]
    
O mandato cultural de Deus ao primeiro ser humano permanece sobre Sua Igreja. No entanto, ela é o Corpo de Cristo. Sendo assim, Sua essência é o próprio Cristo. É ela que deve determinar Sua ação na terra. Em outras palavras, multiplicar, de modo a ampliar, o governo de Jesus sobre a terra (Evangelho segundo Mateus 28:18-19). Por isso Jesus usou a seguinte metáfora: “Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Eu sou a videira e vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dará muito fruto; pois sem mim nada podeis fazer.” (Evangelho segundo João 15:4-5). Mas, conforme temos visto, a Igreja visível não tem sido fértil ou frutífera como Deus espera. O motivo? Não permanecer em Jesus.
    
Não há como manifestar Sua essência - a vida e o legado do próprio Jesus - sem permanecer Nele. E este permanecer é viver fundamentado em Sua Palavra, pois Ele é a Logos de Deus (Evangelho segundo João 1:1, 5:39). Neste quesito, não há como não evocar um dos princípios fundamentais da reforma protestante, tão negligenciado nos dias atuais: sola scriptura.
    
O Evangelho pleno tem sido substituído por simulacros como teorias motivacionais, auto-ajuda, apelos emocionais e a tão famigerada teologia da prosperidade. Claro que não podemos deixar de citar o movimento gospel. Pois tais coisas são cruciais para encher os templos e fazer com que demoninações tornem-se cada vez mais rentáveis. Prega-se de tudo, de José a Davi entre outros personagens bíblicos, tanto do antigo como do novo testamentos, usados como exemplos motivacionais. Mas Jesus Cristo tornou-se apenas um pano de fundo. Assim, vemos que a Igreja não experimenta uma verdadeira multiplicação de pessoas que vivam conforme à imagem de Cristo de modo a estabelecer Seu governo sobre a terra. Mas apenas um inchaço de pessoas que buscam o bem-estar pessoal e que, por isso, satisfazem-se com qualquer proposta que venha as acalentar.

Como professor, vejo “ao vivo e a cores” a influência do evangelho do entretenimento na vida de alguns dos meus alunos. Cultos de jovens têm se transformado em verdadeiras baladas gospel. Não há comprometimento com a Palavra. Não há responsabilidade. Apenas curtição. “Melhor curtirem uma balada dentro da igreja do que no mundo”. Acredite, já ouvi argumentos semelhantes a este. Conheço até uma música, cujo refrão diz:  “Hoje minha balada mudou. Vai ter ‘rede’ e é pra lá que eu vou.”.

Sim, isto está muito, muito longe do culto racional descrito, com detalhes, na Palavra de Deus. Pois as necessidades juvenis, as mesmas “paixões da mocidade” as quais o apóstolo Paulo adverte seu jovem discípulo Timóteo a renunciar (II Timóteo 2:22) têm sido a primazia e objeto de culto. O mesmo apóstolo declarou: “Onde o Espírito é o Senhor, e onde está o Espírito do Senhor, ali há liberdade.” (II Coríntios 3:17). O mesmo princípio, infelizmente, aplica-se em nossa triste realidade: “Onde a libertinagem, resultado do aflorar das paixões carnais, é o Senhor, ela tem liberdade.”. Nadar contra esta maré é loucura chamada de radicalismo. Eis aqui um louco convicto.


[1] KUYPER, Abraham. Calvinismo; traduzido por Ricardo Gouvêa e Paulo Arantes.  São Paulo: Cultura cristã, 2014. p. 68.
[2] Ibid. p. 71.

O objeto do culto racional - Parte II


Matheus Viana

Antes de analisamos o adjetivo (racional), devemos conhecer a definição do substantivo (culto). Sim, as três questões anteriormente citadas continuam em voga. Utilizaremos uma delas: O que é culto? Vimos que Deus é racional. Fato que implica em Sua ação de criar o universo, e principalmente o ser humano, com um propósito. Culto é o exercício do propósito que Deus estabeleceu ao ser humano, e nele está implícito os atributos imagem e semelhança (Gênesis 1:26-17). No versículo 26, temos, no hebraico, os termos tselem e demuth traduzidos, respectivamente, como imagem e semelhança. Dois termos coesos e peculiares, mas que não são diferentes entre si.
    
Calvino afirmou: “Discussão bem acirrada há também a respeito de imagem e semelhança, enquanto entre estes dois termos buscam os intérpretes uma diferença que não existe, salvo que semelhança foi adicionada à guisa de explicação. Em primeiro lugar, sabemos que entre os hebreus as repetições eram triviais, através das quais exprimem duas vezes uma só coisa; em segundo lugar, nenhuma ambiguidade há na própria matéria, a saber, que o homem seja designado de imagem de Deus, porquanto é ele semelhante a Deus. Do quê se evidencia serem ridículos aqueles que acerca desses vocábulos filosofam com sutileza maior, quer atribuam tselem, isto é, a imagem, à substância da alma, e demuth, isto é, a semelhança, às suas qualidades, quer tragam a lume algo diverso.”[1].
    
Ele tem razão. Contudo, assim como acontece com as expressões alegria e prazer, que são semelhantes e complementares no português, mas ao mesmo tempo cada uma tem sua propriedade; ocorre com as expressões imagem e semelhança. O dicionário Strong traz o seguinte significado para ambas: Demuth – semelhança, similaridade; Tselem – imagem, semelhança.
    
O termo tselem é derivado da palavra tselel que significa sombra. Esta imagem relatada no texto bíblico simboliza uma coisa projetada sobre outra, assim como a nossa sombra é resultado da luz solar ser projetada sobre o nosso corpo. O caráter e a ética de Deus (ética, aqui, não possui apenas o significado de conjunto de leis e normas, tampouco o sentido que a teologia liberal aplica ao termo, mas à plenitude do padrão de vida que Deus outorgou ao ser humano, manifesto por Cristo quando encarnou) foram estabelecidos a nós a fim de serem refletidos na criação.
   
Por mais que os hebreus utilizaram, na escrita bíblica, de repetições, o uso do termo demuth, ao invés de usar apenas tselem, tem um motivo. Quando analisamos o texto de Gênesis 1:26-27 com o todo bíblico, vemos que imagem se refere ao caráter (a maneira de ser, pensar e agir, que é definida como ética divina) de Cristo (a segunda pessoa da Deidade) – incluindo, claro, a racionalidade – projetado no homem e manifesto através dele. É por isso que o apóstolo Paulo afirmou: “Aos que de antemão escolheu, também os predestinou para serem conforme a imagem de seu filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.” (Romanos 8:29). E semelhança é que o ser humano, por portar tal caráter (imagem), exerceria sobre a terra - que Deus criou e onde lhe colocou, com todas as coisas que nele existem - o mesmo governo que o Criador exerce sobre os céus. Por isso o salmista declara: “Os céus são os céus do Senhor, mas a terra deu ele aos filhos dos homens.” (Salmo 115:16).
    
Tais conceitos são corroborados pelo teólogo Justo González: “Desde seus primórdios a humanidade recebe de Deus uma comissão: cultivar o jardim, ser senhora sobre o restante da criação. Este cultivo e este domínio devem ocorrer à imagem e semelhança de Deus.”[2]. Assim, cultuar a Deus é refletir sua imagem (caráter, ética) sobre toda a criação a fim de exercer o mesmo governo sobre a terra que Ele exerce nos céus. O que também é chamado de mandato cultural“O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo.” (Gênesis 2:15). A expressão traduzida pelo verbo cultivar é avodah. Este termo se refere ao que podemos chamar de trabalho agrícola, ou seja, cultivar a terra. Mas o que é este cultivar em relação ao culto racional?
    
Para respondermos tal questão é necessário refletirmos sobre o termo mordomia. Mordomia implica em administrarmos, cuidarmos do que, embora não seja nosso, nos foi confiado não apenas com o intento de manutenção, mas também de desenvolvimento. É exatamente isto que o salmista quis dizer em Salmo 115:16. Pois toda a terra pertence ao Senhor (Deuteronômio 10:14, Salmos 24:1). Mas Ele a confiou ao ser humano para ser Seu mordomo (oikonomos, no grego, de onde se origina o termo economia, e que significa administrador da casa). E mordomia demanda racionalidade.
    
Este cultivar, no entanto, é um dos atributos de culto. Desta forma, vemos que culto racional não é apenas ser mordomo da criação. Atrelado à mordomia está a relação do ser humano com a criação e também com o Criador. Aliás, a relação com a criação está fundamentada na relação com o Criador. Uma não é possível sem a outra. Por isso Deus formou o homem à Sua imagem (relação com o Criador), a fim de exercer Sua semelhança (relação com a criação). A esta relação chamamos mandato cultural ou cultura. Este é o pleno significado de avodah.
    
É baseado neste conceito que Jesus disse aos fariseus: “Eu lhes digo verdadeiramente que o Filho não pode fazer nada de si mesmo; só pode fazer o que vê o Pai fazer, porque o que o Pai faz o Filho também faz. Pois o Pai ama ao Filho e lhe mostra tudo o que faz. (Evangelho segundo João 5:19-20). Jesus estava elucidando sobre o culto racional. No mesmo mote, Paulo exorta os cristãos em Corinto: “fazei tudo para a glória de Deus.” (I Coríntios 10:31). Não há distinção entre “vida secular” e “vida espiritual”. Nosso ser, pensar, sentir e agir, em toda e qualquer esfera de nossa vida, são instrumentos de culto ao Ser que os criou.



[1] CALVINO, João. As institutas ou tratado da religião cristã. Tomo I, Livro Itradução de Carlos Eduardo de Oliveira. — São Paulo: Editora UNESP, 2008p. 189.

[2] GONZÁLEZ. Justo L. Cultura & Evangelho: O lugar da cultura no plano de Deus: tradução de Vera Jordan Aguiar. – São Paulo: Hagnos, 2011. p. 51.


O objeto do culto racional - Parte I



Matheus Viana

Existem três abordagens básicas que devem ser consideradas na reflexão de um tema: o que é, como e por quê. No caso do culto racional, temos as seguintes indagações: O que é culto racional? Como realizá-lo? Por que realizá-lo? Antes, contudo, observemos outra questão: Por que o nosso culto a Deus deve ser racional?
    
Deus é um Ser racional. Basta lermos a primeira sentença bíblica para deduzirmos tal fato: “No princípio, criou Deus os céus e a terra.” (Gênesis 1:1). Convenhamos, criar não é algo irracional, tampouco aleatório. Demanda raciocínio e propósito. Ninguém, em sã consciência, cria algo sem um propósito. Aliás, conforme elucida Aristóteles em seu livro Ética a Nicômaco, toda ação humana possui uma finalidade. Quando nossas ações são contrárias às nossas vontades, suas finalidades não nos agradam. Mesmo assim elas existem. Um escravo, por exemplo, praticará suas a-ções com o propósito de fazer o que o seu senhor lhe ordena, por mais que isso não lhe agrade. Por outro lado, de acordo com o filósofo, as ações oriundas de nossas escolhas possuem o propósito de alcançar um bem, que ele define como felicidade.
    
Com Deus não é diferente. O fato elucidado por Aristóteles nada mais é do que o desdobramento do ser humano ter sido criado por Deus. Ou seja, é a demonstração de que Ele criou os céus e a terra, e tudo o que neles há, com um propósito. E nele inclui-se a felicidade, pois conforme narram as Escrituras, Deus “viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom.” (Gênesis 1:31 – NVI). Este bom (tov, no hebraico), não se refere apenas à contemplação do belo, mas também a um bradar de felicidade.
    
Se Deus criou os céus e a terra e tudo o que neles há (incluindo o ser humano) com um propósito, devemos observar que tal fato evidencia o exercício de um intelecto. O físico e matemático Adauto Lourenço afirmou: “A biologia molecular nos tem mostrado como são complexas todas as formas de vida. Uma ‘simples’ bactéria ou um ser humano, todos exibem alto grau de complexidade nos seus sistemas e na informação que produz e coordena estes sistemas.”[1]. Mediante isto, chega à seguinte conclusão: “A complexidade da informação encontrada em todas as formas de vida nos faz suspeitar que ela foi planejada, ou nos faz ter certeza disso? A implicação de um design inteligente é evidente.”[2]. Até mesmo o biólogo ateu Richard Dawkins, ainda que em tom sarcástico, reconhece a complexidade da vida: “... a biologia é o estudo de coisas complicadas que dão a impressão de terem sido planejadas para um propósito.”[3]. Resta alguma dúvida de que foi?
    
O bioquímico Michael Behe, ao estudar a complexidade irredutível das moléculas, fica maravilhosamente espantado com a engenharia nelas envolvida, que o leva a declarar que somente um ser (superior à natureza) inteligente pode conceber tamanha complexidade, minuciosamente ordenada e em perfeita sincronia[4]. Sim, Deus é inteligente. E criou o ser humano à Sua imagem e semelhança, ou seja, capaz de raciocinar. Por isso indagou a Jó: “Quem deu sabedoria ao coração e entendimento à mente?” (Jó 38:36 – NVI). Convido você, neste momento, a meditar em todo o capítulo 38 do livro de Jó para que fique deslumbrado com um Deus soberano e maravilhosamente inteligente.
    
Portanto, o culto a um Deus racional, origem de toda a racionalidade existente no universo, só pode ser... racional ou, como disse Jesus, em Espírito e em verdade (Evangelho segundo João 4:24). Conforme citado anteriormente, Deus criou o ser humano munido de racionalidade. Vejamos por quê.

Continua...


[1] LOURENÇO, Adauto. Como tudo começou; Uma introdução ao criacionismo – São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2007. p. 53.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] HUNT, Dave. Um apelo à razão; Criação ou evolução?; tradução de Lygia Bradnick, Carlos Osvaldo Pinto e Eros Paschini Jr. – Porto Alegre: Actual Edições, 2004. p. 33.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Pilares degradados

Matheus Viana



As recentes ordenações de líderes homossexuais em algumas igrejas ditas evangélicas nos EUA e o levante político em prol do alargamento do conceito de família no Brasil são alguns dos muitos indícios que demonstram que a humanidade está distante de Deus (Romanos 3:23, 8:19-21). A explícita degradação moral e social que presenciamos não é algo que ocorre apenas extra ecclesian (fora da Igreja), como o primeiro exemplo citado sugere, pelo fato de estar presente no âmago do coração humano (Jeremias 17:9, Evangelho segundo Marcos 7:20-23).

Assim como o mal não existe por si só, sendo assim a ausência do bem; a corrupção passa a existir – embora seja algo abstrato - a partir do momento em que o ser humano abandona o padrão de normalidade estabelecido por Deus à Sua vida, também chamado de mandato cultural. Logo, corrupção é o distanciamento da ética divina que precisa fundamentar a humana.

Já nascemos em pecado, afastados de Deus (Salmo 51:5). Ou seja, somos corruptos por natureza (Colossenses 3:5). Por isso, precisamos fundamentar a nossa maneira de pensar, sentir e agir na ética divina (Evangelho segundo Marcos 12:30, II Coríntios 10:5). Foi isto que Esdras demonstrou quando proclamou: “Guardo no meu coração as tuas palavras, para eu não pecar contra ti.” (Salmos 119:11).

A resposta para o mundo em conflito não é nenhum sistema político, econômico, social ou religioso, seja ele qual for. A Igreja de Jesus Cristo é (Evangelho segundo Mateus 16:18-19). Conforme preconiza o apóstolo Paulo, ela é “coluna e baluarte da verdade” (I Timóteo 3:16). Outra pergunta consistente, entretanto, surge neste quesito: como ser coluna e baluarte da verdade?

É importante salientarmos a advertência do apóstolo Paulo aos filipenses: “para que venham a tornar-se puros e irrepreensíveis, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração perversa e depravada, na qual vocês brilham como estrelas do universo”. (Filipenses 2:14). O primeiro passo é discernimos o nosso contexto. Francis Schaeffer declara em seu livro A morte da razão: “Para comunicar a fé cristã de modo eficiente, portanto, temos que conhecer e entender as formas de pensamento de nossa geração.”[1]. Pois o pensamento determina o comportamento.

A humanidade age aquém da ética divina porque sua forma de pensar, e consequentemente de sentir, foi deturpada (II Coríntios 11:3). A questão é tratar o problema na raiz. O agir correto demanda o pensar e o sentir corretos. Tal possibilidade, no entanto, demanda o ensino correto. Por isso, Lucas sintetizou o ministério de Jesus dizendo, no prólogo do livro de Atos: “... relatando as coisas que Jesus começou a fazer e ensinar.” (Atos 1:1, ênfase acrescentada). Jesus, por Sua vez, ao falar sobre o Espírito Santo, declarou: “Mas o Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, lhes ensinará todas as coisas...” (Evangelho segundo João 14:26, ênfase acrescentada).

Para que o Evangelho alcance o propósito que Deus deseja é preciso, nos termos paulinos, destruir: “... argumentos e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus, levando cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo.” (II Coríntios 10:5). Jesus veio para destruir todas as obras do maligno (I João 3:8). A nossa parte, como seguidores de Cristo, é observarmos a elucidação de Paulo aos coríntios. Pois este é um dos propósitos pela qual o Espírito Santo de Deus habita em nós.

Paulo escreve ao seu discípulo Timóteo: “De fato, todos os que desejam viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos. Contudo, os perversos e impostores irão de mal a pior, enganando e sendo enganados. Quanto a você, porém, permaneça nas coisas que aprendeu e das quais tem convicção, pois você sabe de quem o aprendeu. Porque desde criança você conhece as Sagradas Escrituras, que são capazes de torná-lo sábio para a salvação mediante a fé em Cristo Jesus.” (II Timóteo 3:12-15).

Palavras plenamente pertinentes a nós. A perseguição ao cristianismo, em seus diferentes níveis, é uma realidade. Não ouso falar sobre a perseguição física. Mas quero falar do ataque que os cristãos ocidentais têm sofrido há muito tempo.

Como professor para a faixa etária de 10 a 18 anos, tenho visto a degradação moral como resultado de uma abordagem intelectual anticristã. Nossos jovens são, a todo momento, bombardeados de conceitos e valores distorcidos e conflitantes com a ética cristã através de todo tipo de parafernália tecnológica. Diante disso, qual tem sido a nossa reação?

Ao nos depararmos com a advertência de Paulo a Timóteo, devemos questionar, em relação aos nossos filhos e alunos: “O que eles têm aprendido? Quais são suas convicções? De quem têm aprendido? O que conhecem e o que não conhecem? Tal conhecimento é capaz de torná-los sábios para a salvação?”. Não são questões retóricas, mas que anseiam pelas respostas corretas e efetivas (Romanos 8:19).

Quais devem ser suas convicções?

Fé é algo inerente do ser humano. Não existe humano que não a tenha. O psicólogo americano William James (1842-1910) a denomina como hipóteses funcionais[2], ou seja, algo em que o ser humano, necessariamente, deve acreditar para pautar sua vida. O ateísmo, por exemplo, é uma expressão de fé, assim como toda e qualquer adesão e devoção ideológica. Sendo assim, fé é um dos principais alicerces da conduta humana.

Qual é, portanto, a estrutura da fé? Fé demanda um objeto. Na medida em que o conhecemos, a fé se desenvolve em nós. Conforme diz o escritor da carta aos hebreus, fé é a certeza das coisas que se esperam e a convicção das coisas que não vemos (Hebreus 11:1). Não existe certeza sem fatos, nem convicção sem verdades.

Portanto, devemos analisar, em primeiro lugar, qual tem sido o objeto de fé de nossos filhos e alunos. Depois, quais são os fatos que fundamentam suas certezas. E, então, quais as verdades que fundamentam suas convicções.

Continua...


[1] SCHAEFFER, Francis. A morte da razão, tradução de João Bentes. 2 ed.  ABU Editora – São Paulo; Editora Ultimato – Viçosa, 2014. p. 12.
[2] MCGRATH, Alister. Surpreendido pelo sentido; ciência, fé e como conseguimos que as coisas façam sentido; tradução de Onofre Muniz. – São Paulo: Hagnos, 2015. p. 64.