quarta-feira, 5 de junho de 2019

Saldo devedor

 Matheus Viana

Em uma sociedade devota ao senso comum do ufanismo travestido de autoconfiança, somos confrontados pela sentença proferida pelo apóstolo Paulo sobre si: “Sou devedor...” (Romanos 1:14). Quanto mais aprendemos sobre Cristo, torna-se mais claro o fato de que devedor é a nossa imutável condição. Há quem retruque tal afirmação citando o conhecido texto de Romanos 8:1: “Já não há condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus”. Esta declaração, por sua vez, confirma a veracidade da minha tese e invalida todas as tentativas de refutação. Através dela, o apóstolo Paulo mostrou a premissa que deve fundamentar a nossa conduta como cristãos. Pois fomos salvos (livres de toda condenação) com um propósito: o de fazer boas obras[1]. Ser salvo para fazer boas obras é diametralmente oposto à prática de boas obras para a obtenção da salvação. A obra de Jesus é completa. E tem uma finalidade. Foi neste mote que o apóstolo Paulo advertiu: “Desenvolvei com temor e tremor a vossa salvação” (Filipenses 2:12).
     
Fomos libertos, pelo sangue de Cristo derramado na cruz, da escravidão do pecado[2]. No entanto este ato, ao mesmo tempo em que foi libertador, sacramentou, de forma definitiva, nosso saldo devedor. Fomos comprados pela obra de Jesus[3]. Ou seja, deixamos de ser devedores do maligno para sermos devedores de Jesus Cristo. Houve apenas uma substituição de credores. Devemos considerar, todavia, a diferença do caráter de cada um destes credores: o Adversário é enganador[4] e usurpador[5]. Cristo, por Sua vez, é a luz dos homens[6], o Caminho, a Verdade e a Vida[7] e, apesar de ter toda autoridade nos céus e na terra[8] por ser o Criador de tudo[9], nos chama de amigos[10].
     
Era este senso devedor que orientava a vida do apóstolo Paulo. Sua consciência era tomada a tal ponto que ele se considerava como um doulos (escravo) de Jesus Cristo[11]. Ele conhecia o salmo que diz: “Entrai pelas suas portas com ações de graças” (Salmos 100:4). Quando adquirimos, pela obra do Espírito Santo em nós, a consciência da magnitude da obra de redenção realizada por Jesus em nosso favor, não temos outra opção a não ser a de submeter nossa vida a Ele em obediência à Sua soberana vontade. Foi por este motivo que ele afirmou: “Não sou mais eu quem vivo, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2:20). Ao recebermos algo de valor, independente qual seja, surge em nosso coração um senso de dívida de retribuirmos a dádiva recebida. No caso da Graça de Deus, também manifesta na cruz de Jesus Cristo, não há como retribuir de maneira simétrica e justa. Sempre ficaremos devendo­-Lhe.
     
Assim, podemos deduzir que Cristianismo consiste em nossa tentativa de retribuirmos a Graça que Deus previamente nos concedeu, conscientes de que não conseguiremos. Eis a loucura do Evangelho, também chamado de mensagem da cruz (I Coríntios 1:8). E esta tentativa consiste, conforme advertiu o próprio Jesus, em negarmos a nós mesmos e tomarmos a nossa cruz[12]. O apóstolo Paulo, certamente fundamentado no Salmo 100:4, descreve estas ações de graças como a entrega de nossos corpos (extensão da entrega de todo o nosso ser, pois um judeu considera o ser humano em sua integralidade) como sacrifícios vivos, santos e agradáveis a Deus e chama este ato de culto racional[13]. Em outras palavras: ser discipulado por Jesus Cristo através de Sua Palavra e de Sua Igreja. Elucidando sobre este aspecto, o pastor e teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) afirmou:

“Os discípulos de Jesus, por causa dele, vivem na renúncia aos próprios direitos. (...) Se ainda fizessem questão, mesmo depois de terem abandonado tudo por causa dele, de continuar apegado a essa posse, isto é, a seu direito individual, já teriam abandonado o discipulado”.[14]

Eis o dilema. Estamos inseridos em uma turbulenta dialética que se dá entre duas leis elucidadas pelo apóstolo Paulo: a Lei de Deus, também chamada de Espírito de vida, cumprida em Jesus Cristo[15], e a lei do pecado e da morte[16]. O entendimento equivocado sobre a Lei de Deus pode ocasionar na submissão inconsciente à lei do pecado e da morte. Algo comum na Igreja contemporânea. Há sobre o imaginário coletivo cristão uma espécie de dispensacionalismo que divide a História em: a era da Lei e a era da Graça. Tal dicotomia baseia-se em uma intepretação equivocada de Romanos 6:14. Para os seus adeptos, Cristo cumpriu toda a Lei e, por isso, somos livres para fazermos o que quisermos. Doutrina conhecida, grosso modo, como antinomismo[17]. Foi esta que Bonhoeffer nomeou de graça barata.

“A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento do pecador, é o batismo sem disciplina eclesiástica, é a comunhão sem confissão de pecados, é a absolvição sem convicção pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, é a graça sem cruz, é a graça sem Jesus Cristo vivo e encarnado”.[18]

Um dos fundamentos da ortodoxia cristã - que nada mais é do que a sistematização do que Jesus chamou de vontade[19] e de mandamentos do Pai[20], e o apóstolo Paulo chamou de boa, perfeita e agradável vontade de Deus[21] e de fundamento dos apóstolos e profetas, tendo Jesus como a Pedra angular[22] - é o de que, embora Jesus Cristo tenha cumprido a plenitude da Lei de Deus, o aspecto moral da Lei ainda permanece. O próprio Jesus deixou isso bem claro no sermão na montanha[23].

No entanto, há uma espécie de marcionismo moderno que ignora o Antigo Testamento, relegando-o a mitos judaicos e crendo que o Novo testamento ultrapassou e anulou o Antigo. Ledo engano. Todo o Novo Testamento foi escrito com base no Antigo. O próprio Jesus usou o Antigo Testamento para testificar sobre Sua vida e obra[24]. O Antigo Testamento (Tanach) foi a Bíblia que Jesus e os apóstolos usaram. Assim, ele é um dos pilares da ortodoxia cristã. O outro pilar é o Novo Testamento. Philip Yancey nos traz a seguinte advertência:

“Quando lemos o Antigo Testamento, estamos lendo a Bíblia que Jesus lia e usava. Trata-se das orações que Jesus fazia, dos poemas que memorizava, dos cânticos que entoava, das histórias de ninar que ouvia quando criança, das profecias nas quais refletia. Ele reverenciava cada ‘iota ou (...) til’ da Bíblia Hebraica. Quando mais entendemos o Antigo Testamento, mais entendemos Jesus. Como disse Martinho Lutero: ‘O Antigo Testamento é um testamento de Cristo, o qual ele pediu que fosse aberto após a sua morte e lido e proclamado em todos os lugares por intermédio do evangelho”.[25]

Como podemos ver, o Novo Testamento complementa o Antigo Testamento, mas não anula-o. O falso dogma de que o Novo Testamento anula o Antigo não é uma característica peculiar da Igreja atual. A Igreja primitiva também foi acometida por ela. Judas (o irmão do Senhor Jesus), em sua carta à Igreja em Jerusalém, registrou: “... senti que era necessário escrever-lhes insistindo que batalhassem pela fé de uma vez por todas confiada aos santos. Pois certos homens, cuja condenação já estava sentenciada há muito tempo, infiltraram-se dissimuladamente no meio de vocês. Estes são ímpios, e transformam a graça de nosso Deus em libertinagem e negam Jesus Cristo, nosso único e soberano Senhor”. (Judas 3-4). Qualquer semelhança não é mera coincidência. Esta fé confiada aos santos nada mais é do que a doutrina dos apóstolos e dos profetas, tendo Jesus como a Pedra angular, citada pelo apóstolo em sua carta aos efésios. Veja que não se trata de duas doutrinas distintas, mas da síntese entre ambas como uma só. Como podemos ver, o cerne desta prática vil, denunciada por Judas, é o pensamento equivocado, alicerçado na premissa de que não somos mais devedores de coisa alguma. E sim que somos beneficiários que devem usufruir das bênçãos conquistadas por Jesus, disponíveis nas regiões celestes[26] sem nenhum senso de responsabilidade. Em outras palavras, chamam libertinagem de liberdade. Se esquecem do que disseram os apóstolos Paulo e Pedro:

“Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas não usem a liberdade para dar ocasião à vontade da carne; ao contrário, sirvam uns aos outros mediante o amor”.
                                                                  (Gálatas 5:13)

“Vivam como pessoas livres, mas não usem a liberdade como desculpa para fazer o mal; vivam como servos (doulos – escravos) de Deus”.
(I Pedro 2:16)

Resumindo e finalizando, devemos viver nossa liberdade, conquistada em Jesus Cristo, como Seus escravos e, por isso, devedores para sempre.


[1] Efésios 2:9-10.
[2] Romanos 6:5-7, Efésios 1:7, Colossenses 1:13-14, Hebreus 9:28.
[3] I Coríntios 6:20.
[4] Evangelho segundo João 8:44, II Coríntios 11:3.
[5] II Tessalonicenses 2:4.
[6] Evangelho segundo João 1:4-9.
[7] Evangelho segundo João 14:6.
[8] Evangelho segundo Mateus 28:18.
[9] Evangelho segundo João 1:1-3, Colossenses 1:16-17.
[10] Evangelho segundo João 15:14-15.
[11] Romanos 1:1.
[12] Evangelho segundo Mateus 16:24.
[13] Romanos 12:1.
[14] BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Paulo: Mundo Cristão, 2017, p. 107.
[15] Evangelho segundo Mateus 5:17, Romanos 10:4
[16] Romanos 8:2.
[17] Sistema doutrinário que preconiza, grosso modo, que a Graça de Deus, manifesta em Jesus, extingue qualquer dever de cumprir a Lei. Ou seja, anula, por completo, as implicações de qualquer aspecto da Lei de Moisés na vida do cristão.
[18] BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Paulo: Mundo Cristão, 2017, p. 20.
[19] Mateus 6:9-10
[20] João 14:21-23
[21] Romanos 12:2
[22] Efésios 2:20-22
[23] Evangelho segundo Mateus 5:18-20.
[24] Evangelho segundo João 5:39, Lucas 4:14-20, 24:27, 44-45.
[25] YANCEY, Phillip. A Bíblia que Jesus lia. São Paulo: Vida, 2000, p. 23.
[26] Efésios 1:3