Matheus Viana
No
afã de conhecer quem é e, consequentemente, encontrar sentido para sua existência, o ser humano criou ao longo da história referências
antropológicas. Os homens das civilizações mais antigas que a história registra
- as mesopotâmicas - criaram deuses antropomórficos (forma de homem). Como estavam mais próximos do evento da queda, as necessidades ética e religiosa - produtos da Imago
Dei ter sido deturpada no interior do ser humano - geravam neles o desejo de
criar substitutos para supri-las. Estes “deuses” foram criados à imagem e
semelhança do homem. O historiador Jean Bottero afirmou:
“Para dar sentido ao mundo e à própria
existência, eles haviam, portanto, postulado uma sociedade sobrenatural de
‘deuses’, concebidos à sua própria imagem superlativa”.[1]
Vemos, então, que o modelo antropológico
tinha como referência uma plêiade de deuses,
o que denota as necessidades ética e religiosa - pois são indissociáveis - sentidas pelo ser humano. No entanto,
ele é o avesso do parâmetro antropológico original. Os homens das civilizações
mesopotâmicas tinham razão sobre o fato de que o que o homem é e o sentido de sua existência não serão encontradas nele
mesmo, mas em alguém além dele. Mas estavam equivocados no tocante a quem é
este alguém. Como podemos ver, estes seres os quais atribuíam como referência,
apesar de estarem além do homem, eram derivados dele. Algo contraditório e que
reflete a religião ególatra. Ou seja, o desejo de autoconhecimento e a falta de
referência fizeram com que criassem, a partir deles mesmos, modelos e os
divinizaram.
De
onde surgiu as necessidades ética e religiosa? De onde surgiu o desejo de
autoconhecimento? As respostas estão no modelo antropológico judaico-cristão. Ele
se divide em três aspectos coesos: ortopedia, ortodoxia e ortopraxia. Ortopedia, segundo o senso comum, é o ramo da medicina que estuda
os ossos. Contudo, seu significado semântico é mais amplo. O termo é a junção
de duas palavras gregas: orto (correto/original)
e pedia (que é derivada de paideia, criança). Sintetizando, ortopedia
é o modelo correto com que Deus criou o ser humano, ligado a ortogênese.
O
ser humano foi criado por Deus à Sua imagem e conforme Sua semelhança (Gênesis
1:27). O texto hebraico descreve os termos imagem
e semelhança como tselem e demuth, respectivamente. Sobre isso, elucidei no livro Culto racional:
O termo tselem é derivado da
palavra tselel que significa sombra. Esta imagem relatada no texto bíblico simboliza uma coisa projetada
sobre outra, assim como a nossa sombra é resultado da luz solar ser projetada
sobre o nosso corpo. O caráter e a ética de Deus (ética, aqui, não possui apenas o significado de conjunto de leis e normas, tampouco o
sentido que a teologia liberal aplica ao termo, mas à plenitude do padrão de
vida que Deus outorgou ao ser humano, manifesto por Cristo quando encarnou)
foram estabelecidos a nós a fim de serem refletidos na criação.
Por mais
que os hebreus utilizaram, na escrita bíblica, de repetições, o uso do termo demuth, ao invés de usar apenas tselem, tem um motivo. Quando analisamos
o texto de Gênesis 1:26-27 com o todo bíblico, vemos que imagem se refere ao caráter (a maneira de ser, pensar e agir, que é
definida como ética divina) de Cristo
(a segunda pessoa da Deidade) – incluindo, claro, a racionalidade – projetado
no homem e manifesto através dele. É por isso que o apóstolo Paulo afirmou: “Aos que de antemão escolheu, também os
predestinou para serem conforme a imagem de seu filho, a fim de que ele seja o
primogênito entre muitos irmãos.” (Romanos 8:29). E semelhança é que o ser humano, por portar tal caráter (imagem),
exerceria sobre a terra - que Deus criou e onde lhe colocou, com todas as
coisas que nele existem – o mesmo governo que o Criador exerce sobre os céus.
Por isso o salmista declara: “Os céus são
os céus do Senhor, mas a terra ele deu aos filhos dos homens.” (Salmo
115:16)[2]”.
Além
disso, as Escrituras afirmam: “Formou
Deus o homem do pó-da-terra, e soprou em suas narinas de seu fôlego de vida, e
ele se tornou um ser vivente” (Gênesis 2:7). Vemos aqui a descrição do
processo de criação do homem. Deus concedeu-lhe um corpo/físico, soprou em suas
narinas de Seu fôlego (Espírito) de vida, e ele se tornou um ser vivente capaz de pensar, sentir,
desejar e escolher. Em algumas traduções aparecem a expressão alma no lugar de ser. Isso se dá pelo fato de que a septuaginta – tradução grega do
Antigo testamento – traduz a expressão nefesh
como psique, que por sua vez foi traduzida como anima na versão latina Vulgata e, posteriormente, como alma para o português. No
entanto, conforme afirmei no livro Culto
racional:
“... a alma para um judeu não
tem a mesma conotação que possui no pensamento ocidental, influenciado pelo pensamento
grego, sobretudo platônico. Nefesh, embora traduzido como alma para
o português, fala do ser humano integral. Um judeu não faz a dicotomia clássica
que os ocidentais fazem de corpo e alma. Portanto,
amar a Deus com toda psique é amá-Lo com todo o seu ser, com
tudo o que é”[3].
Munido
de um corpo e da capacidade de pensar, sentir, desejar e escolher (psique), o
homem recebeu tais atributos, presentes em sua ortopedia, com um propósito: exercer ortodoxia. Esta expressão é comumente traduzida – ou interpretada –
como doutrina correta, o que não é
errado, mas limitado. O conceito contido na expressão doxa abarca diferentes significados. Platão, por exemplo, em seu
livro República, usou este termo para
falar do conhecimento baseado na opinião, que é contrário ao epísteme, que é o conhecimento da
verdade sobre a realidade adquirido na Academia. Já os apóstolos aplicavam a
esta expressão o significado de glória. Ou
seja, ortodoxia refere-se à forma correta de glorificar a Deus.
No
processo da criação do homem por Deus, relatado em Gênesis 1:28, vemos dois
momentos. O primeiro é quando Deus lhe abençoa – lhe concede o fôlego de vida
-, o que faz com que o homem seja consciente de sua existência. No entanto,
embora munido de tal consciência, ainda não conhecia a razão (sentido) de existir. Foi
quando Deus lhe revelou-a: “Disse Deus:
‘Sejam férteis e multipliquem-se...”. Assim, o homem só pode encontrar a
razão plena de Sua existência quando conhecer a plenitude do propósito de Deus
à Sua vida. E, com isso, exercer ortodoxia. Mas, como podemos ver, o propósito que Deus instituiu ao homem no
tocante à ortodoxia nos leva à ortopraxia. Uma vez que o homem foi criado de acordo com a ortopedia de Deus
a ele, ela determinaria a forma como ele cultuaria a Deus (ortodoxia) e, com
isso, exerceria na terra o governo que Deus exerce nos céus através de suas
atitudes (ortopraxia).
Com
relação a estes três elementos da antropologia judaico-cristã, temos a tríade cultivo-culto-cultura. O ser humano foi
criado por Deus à Sua imagem e conforme a Sua semelhança (ortopedia) ao receber
o fôlego de vida sobre seu corpo, feito do pó-da-terra. Ou seja, o homem foi o cultivo
de Deus. Isso aconteceu para que ele realizasse a vontade de Deus a Ele de
cuidar e cultivar o jardim (culto), a fim de exercer o governo
de Deus sobre a criação (cultura) – Gênesis 2:15. Esta tríade
contempla o homem de forma integral.
Jesus
foi o modelo ortopédico de Deus ao ser humano (Romanos 8:29, I João 2:6). Na
medida em que somos conformados neste modelo, pela obra do Espírito Santo e a
Palavra de Deus em nós (II Coríntios 3:18), vamos praticando ortodoxia/culto
e isso determina nossa ortopraxia/cultura. Vemos esta
tríade em Atos 1:8, que marcou o nascimento da Igreja em Jerusalém, em
Pentecostes. “Mas recebereis poder ao
descer sobre vós o Espírito Santo (cultivo), e sereis minhas testemunhas (culto) tanto na Judeia, em Samaria e até os confins da terra (cultura). Os
apóstolos se submeteram a esta antropologia.