Para melhor compreensão do texto, leia a parte I.
Matheus
Viana
Guiado
por sua egolatria, Caim se afastou da presença do SENHOR. Gerou uma
família e, consequentemente, uma sociedade à sua imagem e semelhança, conforme
vemos em Lameque (Gênesis 4:24). Na contramão, Enos, filho de Sete, reconheceu
seu estado de degradação e o fato de Deus ser O seu Redentor. Por isso invocou
o nome do SENHOR. Foi baseado nesta verdade que Davi declarou, milênios depois:
“Feliz a nação cujo Deus é o SENHOR”
(Salmos 33:12).
Noé,
o homem cuja família foi escolhida por Deus para ser o protótipo de uma nova
humanidade, era descendente de Sete. Vivendo em uma sociedade depravada e
corrupta, foi justo e íntegro (Gênesis 6:9). Tsadiyq e tamiyn são os termos em hebraico traduzidos para o português, respectivamente. O
significado do termo tsadiyq abrange
o indivíduo que age de forma justa e também o que é justificado por Deus, O
Justo. Em termos de causa e efeito, podemos concluir que tsadyiq é aquele que é justificado por
Deus e suas ações são determinadas por esta justificação.
Foi
baseado neste princípio que o apóstolo Paulo citou o profeta Habacuque (2:4) ao
escrever aos romanos: “O justo viverá
pela fé” (Romanos 1:17). Somos justificados por Deus mediante a fé que
depositamos na obra única, magna e redentora de Jesus Cristo. Isto é invocar o
nome do SENHOR e ser salvo (Atos 2:21, Romanos 10:13). E esta justificação,
cujo selo é o Espírito Santo (Efésios 4:30), nos faz agir e viver com retidão
diante de Deus. Noé foi justificado por Deus por ser fiel à cultura que recebeu
de seus antecessores.
Esta
retidão produz o tamiyn. Conforme
vimos, este termo pode ser traduzido como perfeito
ou íntegro. Tamiyn é amar e cultuar a Deus com tudo o que somos e temos. Não é
em vão que o Shemá, citado por Jesus aos saduceus, preconiza: “Amarás o SENHOR teu Deus de todo coração,
de toda alma, de todo intelecto e com todas as suas forças” (Deuteronômio
6:5, Evangelho segundo Marcos 12:28). Foi neste princípio que Jesus se
fundamentou ao advertir seus ouvintes: “Sedes
perfeitos como perfeito é o vosso pai celeste”. (Evangelho segundo Mateus
5:48). A versão septuaginta (LXX) traduz o termo tamiyn como teleion, que
significa perfeito, completo, íntegro.
E foi a expressão teleion usada por
Marcos e também por Mateus ao registrarem esta afirmação de Jesus. Ou seja, o
que Jesus quis dizer foi que devemos servir ao Ser Perfeito com todo o nosso
ser.
Um
dos mais ilustres descendentes de Sete, Enoque, “já não era” (Gênesis 5:24). O texto hebraico ve´enenu traduzido literalmente para o português é: e ele não era. Enoque andava com Deus ao cultuá-lo de forma
íntegra por observar a cultura ao qual fora formado. Tal integridade fez com que Deus o tomasse para si, por isso ele não
era. Deus deseja que vivamos “tomados”
por Ele ao ponto de que não sejamos nós mesmos, e sim Cristo vivendo em nós
(Gálatas 2:20). Óbvio que isso não significa a extinção de nossa existência.
Mas que ela, integralmente, deve estar pavimentada na pessoa de Jesus Cristo
(Sua vida e obra) a fim de que possamos refletir Sua imagem, conforme Deus
deseja (Romanos 8:29).
Em
outras palavras, vivermos para a Sua Glória (I Coríntios 10:31). Isso fala de
renunciarmos a egolatria que permeia o nosso ser (Jeremias 17:9, Tiago 4:2-3).
Significa, como Paulo exortou, morrermos para a nossa natureza terrena
(Colossenses 3:5). Significa negarmos a nós mesmos conforme Jesus Cristo nos
advertiu: “Aquele que quiser me seguir, negue-se a si mesmo, tome
cada um a sua cruz e siga-me” (Evangelho segundo Mateus 16:24 – Ênfase
acrescentada).
Para
uma melhor compreensão, evoquemos a definição de essência humana de Arthur Schopenhauer: vontade de viver. De acordo com ela, o ser humano, por ser
essencialmente vontade, ao deixar de
realizá-la está morrendo. Assim, quando renunciamos a nossa vontade para
realizarmos a vontade de Jesus Cristo, estamos morrendo para que Ele (Sua
vontade) possa viver em nós. Óbvio que não devemos concordar com a definição do
filósofo. Mas a utilizamos apenas como analogia para compreendermos, por
exemplo, a exortação do apóstolo Paulo: “Trazemos
sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também seja
revelada em nosso corpo. Pois nós, que estamos vivos, somos sempre entregues à
morte por amor a Jesus, para que sua vida também se manifeste em nosso corpo
mortal” (II Coríntios 4:10-11).
Ambos
(Tsadiyq - justo e tamiyn – íntegro), no entanto, foram efeitos de uma causa: Noé andava com Deus. Esta foi uma característica cultural
fundamental na sociedade gerada por Sete a partir de Enos. Ele começou, ensinado
pelo pai, a invocar o nome do SENHOR. Enoque andou com Deus ao ponto de ser tomado por Ele (Gênesis 5:24). Noé
manteve a tradição cultural. Conforme
vimos, não é correto dissociar cultura de
culto. A cultura da sociedade
originada em Caim era um culto ao homem. A cultura da sociedade originada em
Sete era o culto a Deus. Qual a cultura que fundamenta sua maneira de pensar, ser
e agir? Ela demonstra quem você cultua.
Andar
com Deus fala do caminho que o
indivíduo trilha em sua vivência. As duas árvores que estavam no jardim do Éden
(Gênesis 2:17) - a da Vida e a do conhecimento do bem e do mal - representaram
dois caminhos. A Escritura Sagrada afirma que Deus “Depois de expulsar o homem, colocou a leste do jardim do Éden
querubins e uma espada flamejante que se movia, guardando o caminho para a árvore da vida” (Gênesis 3:24 – Ênfase acrescentada).
A palavra hebraica traduzida como caminho
para o português é derech. Ela
aparece, por exemplo, no salmo 18:30: “O
caminho de Deus é perfeito”. A tradução literal deste salmo, no entanto, é Deus é o caminho perfeito (derech tamiyn).
Andar
com Deus é viver, de forma ativa, neste derech
tamiyn. Quando Jesus afirmou ser O
Caminho (Evangelho segundo João 14:6), evocou esta premissa. Estava
afirmando que Ele é O Caminho Perfeito, o derech
tamiyn que conduz ao Pai. Jesus foi (e é) a personificação do salmo 18:30,
bem como o cumprimento da profecia feita por intermédio de Isaías: “E ali haverá uma grande estrada, um caminho
que será chamado Caminho de Santidade. Os impuros (não justificados) não passarão por ele; servirá apenas aos que
são do Caminho...” (Isaías 35:8). Tal fato fez com que Seus primeiros
seguidores fossem conhecidos como a seita do Caminho (Atos 9:2). Noé, à semelhança de Enoque, não andava no
caminho dos homens, mas no derech tamiyn.
O
pai de Noé, Lameque (que não é o descendente de Caim), declarou uma sentença ao
nomeá-lo: “Deu-lhe o nome de Noé e disse:
‘Ele nos aliviará do nosso trabalho e do sofrimento de nossas mãos, causados
pela terra que o SENHOR amaldiçoou”. (Gênesis 5:29). O nome de Noé
carregava um propósito estabelecido por seu pai. A palavra traduzida por sofrimento é itsevon, que significa fadiga.
Embora fadiga seja sofrimento, é algo
característico de trabalho. Contudo,
este trabalho não é o avodah, o cultivo – estabelecido por
Deus - que o homem exercia no jardim do Éden como mandato cultural ou culto
racional a Deus (Gênesis 2:15). A
expressão traduzida como trabalho neste
trecho é assenu. Este é o trabalho
que o homem realiza no intuito de meramente sobreviver (Cf. Gênesis 3:19), e
não de cultuar o Criador.
Sabemos
que o que levou Deus a amaldiçoar a terra foi o estabelecimento de Seu juízo
pela desobediência do homem a Ele, proveniente de um culto ególatra (Gênesis
3:17). Davi declarou em seu salmo: “Deus
é um juiz justo, um Deus que manifesta cada dia o seu furor” (Salmo 7:11).
O apóstolo Paulo preconizou aos cristãos em Roma: “... a ira de Deus é revelada nos céus contra toda impiedade e
injustiça dos homens que suprimem a verdade pela justiça”. (Romanos 1:18).
Tais declarações descrevem nosso contexto atual.
As
várias faces do mal que nos assolam são a manifestação da ira de Deus, que
ainda se manifestará de forma definitiva com a volta de Jesus Cristo, por conta
do ser humano viver à revelia Dele (Cf. Romanos 2:5-11). Enquanto isto não
acontece, somos chamados a confortar o mundo de todo trabalho e fadiga
(sofrimento) resultantes da ação dos homens (Romanos 8:19-21). A palavra
traduzida por aliviará é chamenu, que significa confortar. Conforme vimos, o conforto de Deus é resultado de sermos confrontados a fim de nos conformarmos à Sua vontade soberana (Cf.
Romanos 12:2).
Eis
o chamado de Noé, exercido através da construção da arca: Confrontar o erro dos
homens a fim de que fossem conformados à vontade de Deus, e transformar o
trabalho em cultivo/culto para que a terra fosse redimida pelo SENHOR. O
dilúvio representou tudo isso. O modo profano e devasso segundo o qual as
pessoas viviam foi confrontado com a mensagem do dilúvio iminente (Gênesis
6:12-13). O conformarem-se à vontade
de Deus foi o fato de perecerem como resultado do juízo decretado por Deus em
detrimento de suas más ações. Com o dilúvio, a terra foi redimida e o culto
racional a Deus foi estabelecido novamente. A Escritura registra que após o fim
do dilúvio e o baixar de suas águas:
“... Noé construiu um altar dedicado ao SENHOR e,
tomando alguns animais e aves puros, ofereceu-os como holocausto, queimando
sobre o altar. O SENHOR sentiu o aroma agradável e disse a si mesmo: ‘Nunca
mais amaldiçoarei a terra por causa do homem, pois o seu coração é inteiramente
inclinado para o mal desde a infância. E nunca mais destruirei todos os seres
vivos como fiz desta vez”.
(Gênesis
8:20-21).
A
terra foi redimida de todo o mal causado pelos homens. Na inauguração do
recomeço de Deus sobre a criação, Noé ofereceu a Ele um culto racional. Note que Noé ergueu um altar ao SENHOR e Lhe
ofereceu um holocausto. Mas... o
princípio do holocausto não foi
estabelecido por Deus através de Moisés? Sim, pois Ele intentou que o culto
fosse restaurado (invocar o nome do SENHOR), uma sociedade que pudesse ser
chamada de Seu povo fosse formada, e que Sua Glória enchesse toda a terra,
conforme o plano original. O holocausto estabelecido através de Moisés não foi
algo novo. Era um traço cultural da sociedade gerada em Sete e, por isso,
exercido por Noé.
Em
seguida, a Escritura afirma: “Deus
abençoou Noé e seus filhos, dizendo-lhes: ‘Sejam férteis, multipliquem-se e
encham a terra. Todos os animais da terra tremerão de medo diante de vocês: os
animais selvagens, as aves do céu, as criaturas que se movem rente ao chão e os
peixes do mar; eles estão entregues em suas mãos. Tudo o que vive e se move
servirá de alimento para vocês. Assim como lhe dei os vegetais, agora lhes dou
todas as coisas'” (Gênesis 9:1-3).
Houve
uma repetição aumentada da ética que Deus estabeleceu ao homem após tê-lo
criado (Gênesis 1:28-29). No primeiro versículo do capítulo 9, há a mesma interação,
dividida nos mesmos dois momentos, feita por Deus com o primeiro ser humano da
face da terra: Abençoou e lhes disse. Contudo, foi a Noé e aos
seus filhos. Eis a importância da família para a formação da sociedade e a
perpetuação da cultura de Deus sobre Sua criação. Encher a terra nada mais é do que formar gerações de acordo com a
ética de Deus, personificada em Jesus Cristo. Foi exatamente este culto racional que Jesus advertiu aos
Seus discípulos: “Portanto, vão e façam
discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei”.
(Evangelho segundo Mateus 28:19-20).
Abraão
era descendente de Noé (Evangelho segundo Lucas 3:34-36). Também pudera. Apesar
de viver em um contexto cultural politeísta, completamente diferente do vivido
por seus antecessores, Abrão – seu nome na ocasião – recebeu de Deus a proposta
de voltar o exercer o traço cultural estabelecido por Sete por meio de seu
filho Enos: “Anda na minha presença e
seja íntegro (tamiyn)” (Gênesis
17:1). Deus quis que Abraão possuísse as mesmas características que Noé,
alcançado por Sua Graça por ser descendente de Sete, possuía. Conosco não é
diferente. Por isso Jesus, em seu sermão da montanha, advertiu: “Sedes perfeitos como perfeito é o vosso
pai celeste” (Evangelho segundo Mateus 5:48). Contudo, só é possível ser
perfeito/completo/íntegro (teleion)
andando na presença de Deus, em Seu derech
tamiyn, que é o próprio Cristo.
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