Matheus
Viana
As
ações de indivíduos corruptos resultam em uma sociedade perversa. Tal
perversidade, no entanto, passa pelo âmbito da família. Conforme afirmou
Aristóteles, sociedade é o conjunto de famílias. Esta também é a definição
bíblica, que é anterior à do filósofo. Não é em vão que a engenharia social,
peculiar do sistema vigente que visa destruir os absolutos judaico-cristãos,
não mede esforços em mutilar a estrutura familiar teonômica com todo seu
mosaico de conceitos e valores.
Ao
analisarmos a depravação da humanidade que levou Deus a subverter o mundo com
dilúvio, vemos que ela foi desdobramento da degradação familiar que, por sua
vez, foi resultado da corrupção dos indivíduos. A sentença bíblica é clara: “Por causa da perversidade do homem...”
(Gênesis 6:3). No entanto, como ela se manifestou? “Quando os homens começaram a multiplicar-se na terra e lhes nasceram
filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram bonitas, e
escolheram para si as mulheres que lhes agradaram.” (Gênesis 6:1-2).
Os
filhos de Deus – independente do que esta expressão signifique - manifestaram suas
vilanias nas famílias até então compostas. Neste trecho das Escrituras vemos
que os homens estavam cumprindo o mandato
cultural estabelecido por Deus (Cf. Gênesis 1:28), mas Ele não era mais o ser cultuado. Isto resultou na formação de
famílias desfiguradas em relação ao padrão familiar constituído por Deus ao
homem. O que degradou toda a humanidade, exceto uma família: a de Noé. E foi através dela que Deus recomeçou.
Tratemos,
contudo, a narrativa do capítulo 6 de Gênesis como efeito. Do pecado original – corrupção do indivíduo (Romanos 5:12)
- até a depravação de toda a humanidade, houve dois homens que geraram, por
meio de suas respectivas famílias, dois tipos de sociedade: Caim e Sete. Ambos,
filhos de Adão. As diferenças entre eles, bem como de suas respectivas sociedades,
foram abismais. Para termos uma pequena ideia de tamanha discrepância, Enoque,
o homem que andou com Deus ao ponto de ser tomado por Ele, foi descendente de
Sete (Gênesis 5:24). Já Lameque, o homem de “estopim curto” que matou um homem
por tê-lo ferido e um menino por tê-lo machucado, foi descendente de Caim
(Gênesis 4:24). Analisemos estas duas sociedades de modo a contextualizá-las
com a nossa realidade.
Caim,
o primeiro fratricida da história, casou-se e gerou um filho chamado Enoque,
que significa iniciado. Depois disso,
fundou uma cidade com o nome do filho, a primeira mencionada em toda a Bíblia
(Gênesis 4:17). Aqui é clara a relação entre a tríade indivíduo, família e sociedade.
Mas o ponto fulcral é a circunstância primária que levou Caim a trilhar sua
saga: “Então Caim afastou-se da presença
do SENHOR e foi viver em Node, a leste do Éden.” (Gênesis 4:16). Duas
coisas a serem analisadas: O afastamento da presença de Deus e a morada em
Node. Node significa peregrinação. Peregrinação,
neste contexto, significa uma vida distante do propósito de Deus.
Houve
dois momentos no episodio da criação do ser humano: O primeiro foi quando, ao
receber do fôlego de vida de Deus (Gênesis 2:7), o ser humano passa a existir e
ter consciência de sua existência. O
segundo foi quando ele recebeu a ética de Deus que lhe deu propósito e sentido para
sua vida (Gênesis 1:28). Ao abandonar a ética de Deus para se aventurar na
ética proposta pela serpente, ele deixou de viver de acordo com o propósito
pelo qual foi criado. A perda do sentido foi súbita. Recordemos que um dos
significados de pecado (hátá) é errar o
alvo/deixar de cumprir o propósito. Peregrinação é a jornada do ser humano
em busca de sentido, que pode ser encontrado apenas em Deus encarnado na pessoa
de Jesus Cristo, o Logos.
Andando
a esmo, no labirinto de sua peregrinação, Caim formou uma família e,
consequentemente, uma cidade. As
gerações posteriores definiram os traços culturais desta sociedade. Jabal, por
exemplo, foi o pai dos que moram em tendas e criam rebanhos (Cf. Gênesis 4:20).
Seu irmão, Jubal, foi pioneiro na arte da música. E Tubalcaim foi ferreiro. Por
crescer inserido nesta sociedade que propiciou o florescer de sua natureza corrompida,
Lameque reproduziu o legado homicida de Caim: “Eu matei um homem porque me feriu, e um menino porque me machucou. Se
Caim é vingado sete vezes, Lameque o será setenta e sete”. (Gênesis 4:24).
Vejamos,
agora, a sociedade oriunda de Sete. Ele gerou um filho chamado Enos. Conforme a
Bíblia afirma: “Nessa época começou-se a
invocar o nome do SENHOR”. (Gênesis 4:26). O texto hebraico, de forma
transliterada, afirma: “vayiqra´
shemo-`et `enosh `az huchal liqro`beshem `adonay” – “Ele chamou o nome dele de
Enos. Então ele começou chamar pelo nome de SENHOR”. Ou seja, Enos, cujo
nome significa ser humano/homem,
passou a invocar o nome do SENHOR. Vemos aqui, ainda não na forma estabelecida
por intermédio de Moisés, o ministério sacerdotal.
Diante
desta análise, surgem algumas indagações: De onde Enos tirou a ideia de invocar
o nome do SENHOR? Foi ele ensinado pelo pai, ou aprendeu sozinho? Quem lhe
transmitiu o conhecimento do SENHOR de modo que O invocasse? Apesar de a
Escritura não dizer explicitamente, a própria narrativa em si é um indício de
que Enos foi ensinado a realizar esta invocação, este culto racional.
Invocar o nome do
SENHOR.
Não foi em vão que Jesus, ao ensinar Seus discípulos como orar, declarou: “Pai nosso que estás nos céus, santificado
seja o seu nome.” (Evangelho
segundo Mateus 6:9 – Ênfase acrescentada). Ao falarmos neste princípio, não há
como não evocar o diálogo entre Deus e Moisés: “Moisés perguntou: ‘Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes
disser: O Deus de seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem:
‘Qual é o seu nome?’ Que lhe direi?’. Disse Deus a Moisés: ‘Eu sou o que sou. É
isto o que você dirá aos israelitas: Eu sou me enviou a vocês’”. (Êxodo
3:13-14).
Neste
mote, podemos afirmar que invocar o nome do SENHOR significa declarar,
prestando-lhe o culto racional, que Ele é o único e verdadeiro Deus de modo a
viver segundo tal declaração. O apóstolo Paulo, citando o profeta Joel,
declarou: “Todo aquele que invocar o nome
do Senhor será salvo” (Romanos 10:13). Pedro, em sua mensagem após o evento
em Pentecostes, também. Ambos usaram a expressão epikalésetai, cujo significado é clamar. De acordo com o Léxico do Novo Testamento de Wilbur
Gringrich e Frederick Danker, esta expressão é usada para indicar que a pessoa
invocada é pertencente ao nome que ela possui[1].
Às
vésperas da encarnação de Jesus Cristo, o anjo advertiu a José sobre a gravidez
de Maria: “Ela dará à luz um filho, e
você deverá lhe dar o nome de Jesus (Yahoshua/Yeshua – Yahweh/Yaho salva), pois ele salvará o povo de seus pecados.”
(Evangelho segundo Mateus 1:21). O nome determina o ser. O ser, por sua vez,
determina o fazer. Jesus não se tornou O Salvador por salvar. Ele salvou – e
salva - por ser O Salvador desde antes da fundação do mundo (Apocalipse 13:8).
As
ideologias existentes no mundo não visam apenas prover uma ética para a
humanidade seguir e, através dela, encontrar sentido existencial. Mas, principalmente,
redimi-la. Todas elas têm início na premissa de que o mundo está caótico. Uma
das diferenças entre elas, no entanto, é a situação do ser humano em relação a
tal realidade.
Invocar o nome do SENHOR
é
resultado de se ter a consciência de que o mundo está caótico por culpa do
próprio homem. Seu pecado degradou o ambiente em que habita (Cf. Gênesis 3:17).
Por isso, não há redenção do mundo sem a redenção do homem. Esta, por sua vez,
se dará apenas pela obra de Jesus Cristo, o Deus que se fez homem. É neste mote
que o apóstolo Paulo declarou: “Pois a
natureza foi submetida à inutilidade, não pela sua própria escolha, mas por
causa da vontade daquele que a sujeitou (o ser humano), na esperança de que a própria natureza criada será libertada da
escravidão da decadência em que se encontra, recebendo a gloriosa liberdade dos
filhos de Deus” (Romanos 8:20-22).
O
materialismo histórico/dialético, que desfruta de hegemonia no pensamento
coletivo, não considera a depravação humana (antropológica). Na contramão,
propõe apenas uma redenção social (que contempla a cultura, a educação, a
política e a economia) como “solução final”. Sim, o termo pertencente ao
movimento nazista vem bem a calhar. Anulando a necessidade de redenção do ser
humano, anula-se, subitamente, O Redentor. Assim, não há razão para invocar o nome
do SENHOR. Cria-se, a partir de então, uma sociedade anticristã.
Foi
exatamente isto que o apóstolo Paulo exprimiu em sua carta aos romanos: “... trocaram a Glória do Deus imortal por
imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal (...) Trocaram a verdade de
Deus em mentira, e adoraram e serviram a coisas e seres criados em lugar do
Criador, que é bendito para sempre. Amém” (Romanos 1:23 e 25). O culto a
Deus foi substituído pelo culto ao homem. Ele divide-se em duas partes: O culto
ao homem em si e o culto à sua obra.
No
outro polo, temos o libertarianismo que manifesta um materialismo
característico. Ele vê, à semelhança do histórico/dialético, qualquer figura de
autoridade como elemento opressor. Contudo, na contramão do supracitado, ele
não se resume à ética social promovida pelo Estado (Status Quo), mas à
capacidade redentora do próprio homem, sem precisar da ajuda (capacidade) ou
intervenção (autonomia) de ninguém. O que, além de desconsiderar a obra
redentora de Jesus Cristo, elimina o princípio comunitário – e não comunista - do
cristianismo.
Caim,
embora reconhecendo seus pecados de idolatria e de fratricídio, - cujo
reconhecimento não foi fruto de arrependimento, mas da abordagem
disciplinatória de Deus sobre ele - não se atentou à necessidade de se redimir.
Sintoma da plena ausência de culto
racional. Conforme afirmei no livro Culto
Racional:
“... a base de um culto racional é a consciência de que
somos pecadores e a consequente necessidade de redenção que temos ao ponto de
desejarmos ser libertos e redimidos como fruto de Sua misericórdia e Graça (I
João 4:10). Este desejo nos leva a renunciarmos nossa vontade e realizarmos a
vontade de Deus como consequência de seguirmos a Cristo (Evangelho segundo
Mateus 16:24). Este processo é chamado de cristianismo”.[2]
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