Matheus Viana
Em sua solitude, Jacó foi abordado por um homem que lutou com ele
até o amanhecer (Gênesis 32:24). O verbo hebraico traduzido como lutou é aveq,
que é relacionado com os termos abah e abeh. De acordo com o dicionário Strong, o termo abah é usado no sentido de estar disposto; já abeh é usado para súplica ou desejo. Portanto, o embate entre ambos tem
haver com disposição e desejo. Jacó tinha o desejo de atravessar o
lugar em que estava e também disposição para cumprí-lo. Aquele homem tinha o
desejo de transformar Jacó e também estava disposto a cumprí-lo. O confronto
foi inevitável.
Não há como refletir sobre este relato e não evocar as elucidações
do apóstolo Paulo aos romanos sobre a realidade que o afligia (Romanos
7:18-25). Ele descreveu o conflito que existia em seu interior. Ele existe na
vida dos regenerados. E não dura apenas uma madrugada. Seu cerne é a vontade
humana. Jacó tinha desejo e disposição particulares. O homem que o encontrou
também.
Não existe solitude sem renúncia, sem resignação. A solidão é
resultado de nosso egoísmo, a solitude não. Na solitude estamos sozinhos, mas
não solitários. Estamos a sós com Deus. Acredite! Seu desejo e disposição não
mudam: a nossa transformação à imagem e semelhança de Seu Filho, a fim de que
Ele seja o primogênito entre muitos irmãos (Romanos 8:29, Cf. Efésios 4:13). E
no processo desta transformação, a renúncia às nossas vontades é indispensável
(Cf. Evangelho segundo Mateus 16:24).
Aquele homem não desistiria de Seu desejo. Ao ver que não poderia
dominar Jacó, tocou sua coxa de modo que a deslocou (Gênesis 32:25). Coxa, nas
Escrituras, fala de aliança e autoridade. Em idade avançada, Abraão ordenou ao
seu servo: “Ponha a mão
debaixo da minha coxa e jure pelo SENHOR, o Deus dos céus e o Deus da terra,
que não buscará mulher para meu filho entre as filhas dos cananeus, no meio dos
quais estou vivendo, mas irá à minha terra e buscará entre os meus parentes uma
mulher para meu filho Isaque.” (Gênesis
24:2-4).
Este servo, além de ser o mais antigo, era responsável por todos
os bens de Abraão. Era um mordomo. Mordomia é um aspecto fundamental do mandato cultural de Deus a nós. Conforme afirmei no
livro Culto racional:
“Atrelado à mordomia está a relação do ser humano com a criação e
também com o Criador. Aliás, a relação com a criação está fundamentada na
relação com o Criador. Uma não é possível sem a outra. Por isso Deus formou o
homem à Sua imagem (relação com o Criador), a fim de exercer Sua semelhança
(relação com a criação)”.
Aliança e autoridade são elementos coesos. Exercemos a
autoridade de Deus sobre a criação na medida em que vivemos em aliança com o
Criador. Era esta a lição que Aquele homem queria ensinar a Jacó ao tocar-lhe a
coxa por ser a ética que estabeleceu ao ser humano no princípio (Gênesis 2:15).
Queria fazer dele Seu mordomo. Tal desejo repousa sobre nós desde a
criação. A disposição também. Ambos O levaram a entregar a própria vida para
cumpri-los. Mas, para que isso ocorra, a luta é intensa.
Precisamos ser marcados por Ele. Foi neste mote que o apóstolo
Paulo elucidou aos cristãos em Corínto: “Trazendo
sempre por toda a parte a mortificação do Senhor Jesus no nosso corpo, para que
a vida de Jesus se manifeste também nos nossos corpos.” (II Coríntios 4:10). A palavra
traduzida como corpo neste trecho é soma, que significa a
demonstração exterior de algo contido no interior. Esta é a marca que Jesus
quer fazer em nosso coração (Cf. Romanos 2:29).
Ser mordomo é,
antes de tudo, ser servo (Evangelho segundo Mateus 20:26-28). Aqui reside a raiz do problema. Temos
extrema dificuldade em servir. Queremos que todas as coisas gravitem em nossa
órbita. Por isso Paulo insistiu em considerarmos os outros como superiores a
nós (Filipenses 2:3). A proposta indecente de Satanás feita a Jesus para que
Ele se prostrasse diante dele ressoa em nosso coração: queremos ser objetos de
louvor e adoração. Foi isso que o apóstolo Paulo abordou em sua explanação aos
romanos: “... trocaram a
glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem
mortal...” (Romanos 1:23).
Contudo, devemos contrariar este desejo e praticarmos a ordenança que Jesus
bradou a Satanás: “Adore o
Senhor, o seu Deus, e só a ele preste culto.” (Evangelho segundo Mateus 4:10).
O próprio Jacó, próximo de sua morte, propôs ao seu filho José: “Se quer agradar-me, ponha a mão
debaixo da minha coxa e prometa que será bondoso e fiel comigo.” (Gênesis 47:29). Ao ter uma visão de
Cristo glorificado, em Sua parousia (quando Ele retornará para reinar
de forma definitiva), João registrou: “Em
seu manto e em sua coxa está escrito: Rei dos reis, Senhor dos senhores.” (Apocalipse 19:16). O fato do manto de Jesus estar marcado representa o
cumprimento pleno da profecia de que Ele é o Rei, o descendente de Davi, cujo
trono será estabelecido para sempre (Cf. II Samuel 7:16). E a coxa marcada representa a autoridade que
Ele exercerá (Cf. Isaías 11:3, Evangelho segundo Mateus 28:18, Atos 2:36,
Filipenses 2:8-10).
Por isso, durante Seu ministério terreno, Jesus ensinou a seguinte
oração: “Pai nosso que estás
nos céus. Santificado seja o seu nome. Venha a nós o teu reino. Seja feita a
sua vontade, assim na terra como nos céus.” (Evangelho segundo Mateus 6:9-10). Não
há santificação sem entronização. Por sua vez, entronização consiste em plena
submissão Ao que está assentado no trono.
Os serafins que o profeta Isaías viu estavam ao redor do Trono de
Deus dizendo: “Santo, Santo,
Santo é o SENHOR, toda a terra está cheia de sua glória.” (Isaías 6:3). Os quatro seres viventes
vistos por João também (Apocalipse 4:8). Nossa santificação é resultado da
entronização de Deus em nós. Logo, santificar o nome do SENHOR consiste em nos
submetermos, de todo nosso coração, alma, intelecto e forças, à Sua vontade
(Cf. Evangelho segundo Marcos 12:28-30). A manifestação do Reino de Deus em
nós, e sobre toda a terra, é desdobramento desta santificação. Esta é a síntese
da oração que Jesus ensinou. Ela é resultado da luta que temos com Deus diariamente.
Continua...
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