quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Ação idólatra




Matheus Viana

     Todos somos idólatras. Toda ação humana, desprovida da influência da cruz de Cristo, é idólatra. Isso fica evidente quando analisamos a definição de ação humana. O economista Ludwig Von Mises (1881-1973) a definiu da seguinte forma:

“Ação humana é comportamento propositado. Também podemos dizer: ação é a vontade posta em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar alcançar fins e objetivos; é a significativa resposta do ego aos estímulos e às condições do seu meio ambiente; é o ajustamento consciente ao estado do universo que lhe determina a vida”.[1]

Aristóteles preconizou, em seu livro Ética a Nicômaco, que toda ação humana tem como propósito o alcance de um objetivo. Quando ela é resultado de uma escolha, seu propósito é alcançar a felicidade. Então, surgem as questões: qual é o propósito contido em nossas ações? Se for alcançar a felicidade, é a felicidade de quem? As muitas respostas revelarão que elas são idólatras. Pois veremos que o cerne sempre será o nosso ego.

A queda – ou pecado original - foi resultado de idolatria. O ser humano submeteu-se à ética da serpente por ela ir de encontro ao seu desejo de comer do fruto ilícito. Foi o exercício da primazia do ego humano em relação à soberania de Deus. Aqui vemos a estreita e profunda coesão entre ato egoísta e ação idólatra.
    
Para compreendermos melhor esta tensão, precisamos definir o que é idolatria. Do ponto de vista etimológico, é o culto (latria) realizado a um ou mais ídolos (ícones/imagens). Do ponto de vista semântico, considerando a perspectiva teísta, é cultuar qualquer outra coisa que não seja Deus (Cf. Evangelho segundo Mateus 6:24, por exemplo). O apóstolo Paulo preconizou em sua carta aos romanos: “... porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato.” (Romanos 1:21 – Ênfases acrescentadas).
    
Adão e Eva conheciam a Deus. A narrativa bíblica afirma: “Ouvindo o homem e sua mulher os passos do SENHOR Deus que andava pelo jardim quando soprava a brisa do dia, esconderam-se da presença do SENHOR Deus entre as árvores do jardim.” (Gênesis 3:8). A expressão traduzida para o português como presença é a expressão mipeney, cujo significado literal é diante da face. Ambos se esconderam da face de Deus. A mesma face que Moisés rogou a Deus para vê-La (Êxodo 33:18). Desejo que não foi atendido naquele instante, mas muito tempo depois, no episódio da transfiguração de Jesus (Evangelho segundo Mateus 17:3). Foi este desejável conhecimento que Adão e Eva rejeitaram. A degradação de toda a criação veio a roldão.
    
Tal conhecimento é manifesto através de Sua criação (Salmo 19:1, Romanos 1:18-20) e de Suas Sagradas Escrituras (Evangelho segundo João 5:39). Quando rejeitamos a obra redentora de Jesus e Seu legado sobre céus e terra (Evangelho segundo Mateus 28:18-19), e consequentemente deixamos de nos submeter às Sagradas Escrituras, rejeitamos este conhecimento. Esta rejeição, por si só, é fruto de idolatria. Fomos criados para cultuar a Deus, conforme afirmei no livro Culto racional:

“... cultuar a Deus é refletir sua imagem (caráter, ética) sobre toda a criação a fim de exercer o mesmo governo sobre a terra que Ele exerce nos céus. O que também é chamado de mandato cultural: “O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo.” (Gênesis 2:15). A expressão traduzida pelo verbo cultivar é avodah. Este termo se refere ao que podemos chamar de trabalho agrícola, ou seja, cultivar a terra. Mas o que é este cultivar em relação ao culto racional?
     Para respondermos tal questão é necessário refletirmos sobre o termo mordomia. Mordomia implica em administrarmos, cuidarmos do que, embora não seja nosso, foi-nos confiado não apenas com o intento de manutenção, mas também de desenvolvimento. É exatamente isto que o salmista disse em Salmo 115:16. Pois toda a terra pertence ao Senhor (Deuteronômio 10:14, Salmos 24:1). Mas Ele a confiou ao ser humano para ser Seu mordomo (oikonomos, no grego, de onde se origina o termo economia, e que significa administrador da casa). E mordomia demanda racionalidade. Este cultivar, no entanto, é um dos atributos de culto.
     Desta forma, vemos que culto racional não é apenas ser mordomo da criação. Atrelado à mordomia está a relação do ser humano com a criação e também com o Criador. Aliás, a relação com a criação está fundamentada na relação com o Criador. Uma não é possível sem a outra. Por isso Deus formou o homem à Sua imagem (relação com o Criador), a fim de exercer Sua semelhança (relação com a criação). A esta relação chamamos mandato cultural ou cultura. Este é o significado de avodah”.

Por isso, podemos afirmar que cultuar é se submeter integralmente ao objeto cultuado. No momento em que abandonou a ética divina para seguir a da serpente, o ser humano preteriu o propósito de Deus à sua vida e, com isso, deixou de cultuá-Lo. No entanto, fomos criados com esta necessidade. Deixando de cultuar a Deus, passamos, no instinto de suprí-la, a cultuarmos nós mesmos.
    
Tal fato é demonstrado pela facilidade que temos em fazer ídolos. Aqui vemos a síntese de duas necessidades: de cultuar e de termos uma referência existencial. A referência se transforma em objeto de culto. Em outras palavras, em ídolo. Isso fica claro nas palavras de Tolstói, em seu clássico Guerra e Paz. Ao descrever a admiração que o conde Rostov, um hussardo do exército russo, tem pelo imperador Alexandre, evidencia esta transformação. Rostov passa a vê-lo não apenas como uma referência, mas como um ídolo.

“Rostov estava na primeira linha do corpo do exército de Kutuzov, para onde se dirigia o imperador. Também ele sentia o que todos os demais soldados sentiam: ouvido de si próprio, orgulho de tal poder, entusiasmado apaixonado por aquele que era o objeto de tamanho triunfo: ‘Uma só palavra daquele homem’, pensava, ‘e aquela massa inteira, de que ele não era mais que uma ínfima partícula, lançar-se-ia ao fogo ou à água, precipitar-se-ia no crime ou na morte, praticaria os mais heróicos atos’. E por isso não podia dominar um estremecimento íntimo, um quase desfalecimento, à aproximação daquela voz potente”.[2]

Era natural que Rostov, na referida ficção, tivesse como referência outro militar que lhe fosse superior. No entanto, a admiração transformou-se em um culto. Pois vemos que Rostov, assim como os outros soldados que partilhavam de sua admiração, estava disposto a fazer algo contrário às suas vontades e convicções se fosse do agrado do imperador. Ao ler esta bela narrativa, recordo-me, subitamente, do relato feito pelo apóstolo João, na ilha de Patmos:

“Voltei-me para ver quem falava comigo. (...) e entre os candelábros alguém semelhante a um filho de homem, com uma veste que chegava aos seus pés e um cinturão de ouro ao redor do peito. Sua cabeça e seus cabelos eram brancos como a lã, tão brancos como a neve, e seus olhos eram como chamas de fogo. Seus pés eram como o bronze numa fornalha ardente e sua voz como o som de muitas águas. Tinha em sua mão direita sete estrelas, e de sua boca saia uma espada afiada de dois gumes. Sua face era como o sol quando brilha em todo o seu fulgor. Quando o vi, caí aos seus pés como morto. Então ele colocou sua mão direita sobre mim e disse: ‘Não tenha medo. Eu sou o Primeiro e o Último’.”
(Apocalipse 1:12-17).

Jesus é, além de nossa referência existencial, O nosso objeto de culto. Caso seja necessário, e na maioria das vezes é, devemos renunciar nossos desejos e propósitos a fim de realizar, de maneira plena, os Dele. Foi exatamente isso que Ele, como homem, expressou em Seu culto ao Pai: “A minha comida consiste em realizar a vontade daquele que me enviou a fazer a boa obra.” (Evangelho segundo João 4:24). Foi a este cultuar que o apóstolo Paulo abordou ao advertir os cristãos em Corínto: “E ele morreu por todos para que aqueles que vivem já não vivam para si mesmos, mas para aqueles que por eles morreu e ressuscitou.” (II Coríntios 5:15).
    
O liberalismo teológico tenta fazer de Jesus, além de um mero personagem histórico, apenas um referencial a ser imitado, e não alguém a ser cultuado. Em contrapartida, o simulacro de cristianismo atualmente vigente, representado por aberrações teológicas como teologia da prosperidade, por exemplo, transforma Deus em um ser que existe apenas para suprir os desejos humanos. Egolatria pura e simples. Cristianismo, no entanto, é muito mais do que isso. Ser verdadeiramente cristão é estar disposto a resignar-se integralmente a fim de cumprir a plenitude dos desejos e propósitos de Jesus Cristo. Ainda não alcancei este objetivo. Mas pretendo. Para isso, preciso ser liberto da idolatria. Há um intenso e dramático confronto em nossas mentes e corações sobre quem é o objeto de culto: Jesus x nosso ego.


[1] Extraído do site: http://www.mises.org.br/EbookChapter.aspx?id=290
[2] TOLSTÓI, Leon. Guerra e Paz: volume I; tradução de João Gaspar Simões. – Porto Alegre: LP&M, 2013. p. 299.


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