Matheus Viana
“Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia.” (Evangelho segundo Mateus 6:11)
Que tipo de pão é esse? Natural ou espiritual?
Ambos. Mas não podemos esquecer do pão intelectual. O clamor ensinado por
Jesus, alvo de nossa reflexão, é parte de Sua oração. Ele é antecedido pelo
pedido da vinda do Reino de Deus que demanda que Sua vontade seja feita na
terra como é nos céus (Evangelho segundo Mateus 6:10).
Este aspecto refere-se ao resgate do propósito
original: Que o homem seja o representante de Deus, que exerça na terra o mesmo
governo que Ele exerce nos céus (Salmos 115:16). Foi este o mote que levou
Jesus a dizer a Pedro: “Nesta pedra eu edificarei a minha igreja, e as
portas do inferno não resistirão contra ela.” (Evangelho segundo Mateus
16:18).
O apóstolo Paulo preconizou que o Reino de Deus não
é comida ou bebida, mas paz, justiça e alegria no Espírito Santo (Romanos
14:17). Ou seja, não é uma instituição física como pensava, infelizmente, a
Igreja durante a idade média. Sim, ainda há quem pense assim. Contudo, Ele tem
sua manifestação no âmbito natural. Tratando a Igreja como representante do
Reino de Deus, Abraham Kuyper elucidou:
“A Igreja sobre a terra não faz subir luz para o
céu, mas a Igreja no céu deve fazer sua luz descer sobre a terra.”[1]
Disse também:
“A Igreja verdadeira, celestial, invisível deve
manifestar-se na Igreja terrena.”[2]
Após jejuar durante 40 dias, Jesus teve fome
(Evangelho segundo Mateus 4:2). Ela não era espiritual. Ao ser anteriormente
batizado por João Batista, foi cheio do Espírito Santo. Também não era
intelectual. Seu intelecto estava devidamente alimentado, pois venceu as
tentações usando a Palavra de Deus ao bradar: “Está escrito”. Sua fome
era natural. Por isso o tentador lhe propôs que transformasse pedra em... pão
(Evangelho segundo Mateus 4:3). Embora Jesus tenha refutado tal proposta
dizendo que a Palavra de Deus é o nosso verdadeiro alimento, sua fome natural
foi saciada por anjos após vencer o tentador (Evangelho segundo Mateus 4:11). O
pão espiritual, embora vital, não anula nossa necessidade do pão natural, tampouco
do intelectual. As respectivas recíprocas também são verdadeiras.
Jesus, em outra ocasião, afirmou ser o Pão que Deus
concede a nós: “Declarou-lhes Jesus: ‘Digo-lhes a verdade: Não foi Moisés
quem lhes deu pão do céu, mas é meu Pai quem lhes dá o verdadeiro pão do céu.
Pois o pão de Deus é aquele que desceu do céu e dá vida ao mundo’.”
(Evangelho segundo João 6:32-33).
Disse também: “Eu sou o pão da vida. Os seus
antepassados comeram o maná no deserto, mas morreram. Todavia, aqui está o pão
que desce do céu, para que não morra quem dele comer. Eu sou o pão vivo que
desceu do céu. Se alguém comer deste pão, viverá para sempre. Este pão é a
minha carne, que dou pela vida do mundo.” (Evangelho segundo João 6:48-51).
Ao instituir a Eucaristia (Ceia), Jesus
disse aos Seus discípulos que deveriam realizá-la em memória Dele (Cf. I
Coríntios 11:23-25). Isso é culto racional, pois ela abrange os três
níveis aqui analisados (Cf. Atos 2:42-43). O pão partido e distribuído por
Jesus saciou a necessidade física dos discípulos (Evangelho segundo Marcos
14:22). A Ceia realizada pela Igreja Primitiva consistia de uma espécie de
banquete, que ficou conhecida como festa ágape. Ou seja, a necessidade
natural dos participantes era saciada. Mas não se tratava de um mero jantar. O
alimento natural possuia uma simbologia espiritual: a obra de Cristo com todos
os seus desdobramentos. Por isso, a Ceia deve ser realizada em memória do
sacrifício e Senhorio de Cristo. O que demanda uma intelectualidade submissa a
Ele. Para isso, nosso intelecto precisa ser alimentado pelo Pão de Sua Palavra.
Ser Cristão é distribuir de Seu Pão. O episódio do
primeiro milagre da multiplicação, onde os discípulos distribuíram alimento à
grande multidão que seguia Jesus (Evangelho segundo Marcos 6:30-43), foi
significativo. Semelhantemente, somos chamados a distribuir o alimento que é
fruto de Seu legado e poder. Devemos suprir nossos próximos em suas
necessidades físicas, espirituais e intelectuais. Pois este é o caráter da Ceia
instituída por Jesus Cristo.
A ética apostólica preconiza: “Não é certo
negligenciarmos o ministério da Palavra de Deus, a fim de servir as mesas.
Irmãos, escolham entre vocês sete homens de bom testemunho, cheios do Espírito
de sabedoria. Passaremos a eles esta tarefa e nos dedicaremos à oração e
ao ministério da Palavra.” (Atos 6:2-3).
Vemos neste versículo as três necessidades que a
Igreja é chamada a suprir: servir as mesas (necessidade
material/natural), oração e ministério da Palavra
(espiritual/intectual). Sim, as necessidades espirituais e intelectuais são
coesas, pois o culto que Deus instituiu é racional. Toda espiritualidade
desprovida de razão é misticismo. E toda intelectualidade desprovida de
espiritualidade (sobrenatural) é racionalismo. Ambas são deturpações do
cristianismo. Portanto não há, no exercício da ortodoxia cristã, como
desvencilhá-las.
Para servirmos, no entanto, devemos receber. Os
discípulos receberam, cada um, pequenos pedaços de pão e peixe (Evangelho
segundo Marcos 6:41). A multiplicação aconteceu na medida em que Jesus partiu e
compartilhou o alimento com os discípulos, e esses com a multidão. Não foi um
surgimento súbito de uma grande quantidade. Pelo contrário. A multiplicação
seguiu o compasso do compartilhar.
Não podemos compartilhar sem antes receber. Tal
fato faz emergir a seguinte questão: Qual pão tem suprido nossas necessidades?
Não podemos, nesta ocasião, esquecer da parábola do filho pródigo contada por
Jesus (Evangelho segundo Lucas 15:11-24). Sua fome social de viver independente
do pai o fez ser acometido de uma intensa fome material. Tão dramática que
desejou comer o que os porcos comiam.
As parábolas contadas por Jesus tinham caráter
reflexivo, pois transmitiam valores e códigos éticos do Reino de Deus. Por
isso, devemos refletir sobre a situação, embora fictícia, do filho pródigo e
nos questionarmos se, como ele, não temos se alimentado de comida de porcos.
Pois todo alimento que não tenha Jesus como essência deve ser considerado como
tal.
Jesus não é apenas o maná de Deus aos homens, é
também a personificação dos pães da proposição que ficava sobre a mesa
do Lugar Santo. Eles também são chamados de pães da Presença (Êxodo
25:30). Somente na Presença de Deus, manifesta através de Sua Palavra
(Evangelho segundo João 5:39), é que encontramos este Pão.
Bom apetite!
[1] KUYPER, Abraham. Calvinismo; traduzido por Ricardo Gouvêa, Paulo
Arantes. - São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2014. p. 70.
Nenhum comentário:
Postar um comentário