quarta-feira, 14 de outubro de 2015

O objeto do culto racional - Parte II


Matheus Viana

Antes de analisamos o adjetivo (racional), devemos conhecer a definição do substantivo (culto). Sim, as três questões anteriormente citadas continuam em voga. Utilizaremos uma delas: O que é culto? Vimos que Deus é racional. Fato que implica em Sua ação de criar o universo, e principalmente o ser humano, com um propósito. Culto é o exercício do propósito que Deus estabeleceu ao ser humano, e nele está implícito os atributos imagem e semelhança (Gênesis 1:26-17). No versículo 26, temos, no hebraico, os termos tselem e demuth traduzidos, respectivamente, como imagem e semelhança. Dois termos coesos e peculiares, mas que não são diferentes entre si.
    
Calvino afirmou: “Discussão bem acirrada há também a respeito de imagem e semelhança, enquanto entre estes dois termos buscam os intérpretes uma diferença que não existe, salvo que semelhança foi adicionada à guisa de explicação. Em primeiro lugar, sabemos que entre os hebreus as repetições eram triviais, através das quais exprimem duas vezes uma só coisa; em segundo lugar, nenhuma ambiguidade há na própria matéria, a saber, que o homem seja designado de imagem de Deus, porquanto é ele semelhante a Deus. Do quê se evidencia serem ridículos aqueles que acerca desses vocábulos filosofam com sutileza maior, quer atribuam tselem, isto é, a imagem, à substância da alma, e demuth, isto é, a semelhança, às suas qualidades, quer tragam a lume algo diverso.”[1].
    
Ele tem razão. Contudo, assim como acontece com as expressões alegria e prazer, que são semelhantes e complementares no português, mas ao mesmo tempo cada uma tem sua propriedade; ocorre com as expressões imagem e semelhança. O dicionário Strong traz o seguinte significado para ambas: Demuth – semelhança, similaridade; Tselem – imagem, semelhança.
    
O termo tselem é derivado da palavra tselel que significa sombra. Esta imagem relatada no texto bíblico simboliza uma coisa projetada sobre outra, assim como a nossa sombra é resultado da luz solar ser projetada sobre o nosso corpo. O caráter e a ética de Deus (ética, aqui, não possui apenas o significado de conjunto de leis e normas, tampouco o sentido que a teologia liberal aplica ao termo, mas à plenitude do padrão de vida que Deus outorgou ao ser humano, manifesto por Cristo quando encarnou) foram estabelecidos a nós a fim de serem refletidos na criação.
   
Por mais que os hebreus utilizaram, na escrita bíblica, de repetições, o uso do termo demuth, ao invés de usar apenas tselem, tem um motivo. Quando analisamos o texto de Gênesis 1:26-27 com o todo bíblico, vemos que imagem se refere ao caráter (a maneira de ser, pensar e agir, que é definida como ética divina) de Cristo (a segunda pessoa da Deidade) – incluindo, claro, a racionalidade – projetado no homem e manifesto através dele. É por isso que o apóstolo Paulo afirmou: “Aos que de antemão escolheu, também os predestinou para serem conforme a imagem de seu filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.” (Romanos 8:29). E semelhança é que o ser humano, por portar tal caráter (imagem), exerceria sobre a terra - que Deus criou e onde lhe colocou, com todas as coisas que nele existem - o mesmo governo que o Criador exerce sobre os céus. Por isso o salmista declara: “Os céus são os céus do Senhor, mas a terra deu ele aos filhos dos homens.” (Salmo 115:16).
    
Tais conceitos são corroborados pelo teólogo Justo González: “Desde seus primórdios a humanidade recebe de Deus uma comissão: cultivar o jardim, ser senhora sobre o restante da criação. Este cultivo e este domínio devem ocorrer à imagem e semelhança de Deus.”[2]. Assim, cultuar a Deus é refletir sua imagem (caráter, ética) sobre toda a criação a fim de exercer o mesmo governo sobre a terra que Ele exerce nos céus. O que também é chamado de mandato cultural“O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo.” (Gênesis 2:15). A expressão traduzida pelo verbo cultivar é avodah. Este termo se refere ao que podemos chamar de trabalho agrícola, ou seja, cultivar a terra. Mas o que é este cultivar em relação ao culto racional?
    
Para respondermos tal questão é necessário refletirmos sobre o termo mordomia. Mordomia implica em administrarmos, cuidarmos do que, embora não seja nosso, nos foi confiado não apenas com o intento de manutenção, mas também de desenvolvimento. É exatamente isto que o salmista quis dizer em Salmo 115:16. Pois toda a terra pertence ao Senhor (Deuteronômio 10:14, Salmos 24:1). Mas Ele a confiou ao ser humano para ser Seu mordomo (oikonomos, no grego, de onde se origina o termo economia, e que significa administrador da casa). E mordomia demanda racionalidade.
    
Este cultivar, no entanto, é um dos atributos de culto. Desta forma, vemos que culto racional não é apenas ser mordomo da criação. Atrelado à mordomia está a relação do ser humano com a criação e também com o Criador. Aliás, a relação com a criação está fundamentada na relação com o Criador. Uma não é possível sem a outra. Por isso Deus formou o homem à Sua imagem (relação com o Criador), a fim de exercer Sua semelhança (relação com a criação). A esta relação chamamos mandato cultural ou cultura. Este é o pleno significado de avodah.
    
É baseado neste conceito que Jesus disse aos fariseus: “Eu lhes digo verdadeiramente que o Filho não pode fazer nada de si mesmo; só pode fazer o que vê o Pai fazer, porque o que o Pai faz o Filho também faz. Pois o Pai ama ao Filho e lhe mostra tudo o que faz. (Evangelho segundo João 5:19-20). Jesus estava elucidando sobre o culto racional. No mesmo mote, Paulo exorta os cristãos em Corinto: “fazei tudo para a glória de Deus.” (I Coríntios 10:31). Não há distinção entre “vida secular” e “vida espiritual”. Nosso ser, pensar, sentir e agir, em toda e qualquer esfera de nossa vida, são instrumentos de culto ao Ser que os criou.



[1] CALVINO, João. As institutas ou tratado da religião cristã. Tomo I, Livro Itradução de Carlos Eduardo de Oliveira. — São Paulo: Editora UNESP, 2008p. 189.

[2] GONZÁLEZ. Justo L. Cultura & Evangelho: O lugar da cultura no plano de Deus: tradução de Vera Jordan Aguiar. – São Paulo: Hagnos, 2011. p. 51.


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