Matheus Viana
Antes
de analisamos o adjetivo (racional), devemos conhecer a definição do
substantivo (culto). Sim, as três questões anteriormente citadas continuam em
voga. Utilizaremos uma delas: O que é culto? Vimos que Deus é
racional. Fato que implica em Sua ação de criar o universo, e principalmente o
ser humano, com um propósito. Culto é o exercício do propósito
que Deus estabeleceu ao ser humano, e nele está implícito os atributos imagem e semelhança (Gênesis
1:26-17). No versículo 26, temos, no hebraico, os termos tselem e demuth traduzidos,
respectivamente, como imagem e semelhança. Dois
termos coesos e peculiares, mas que não são diferentes entre si.
Calvino
afirmou: “Discussão bem acirrada há também a respeito de imagem e
semelhança, enquanto entre estes dois termos buscam os intérpretes uma
diferença que não existe, salvo que semelhança foi adicionada à guisa de
explicação. Em primeiro lugar, sabemos que entre os hebreus as repetições eram
triviais, através das quais exprimem duas vezes uma só coisa; em segundo lugar,
nenhuma ambiguidade há na própria matéria, a saber, que o homem seja designado
de imagem de Deus, porquanto é ele semelhante a Deus. Do quê se evidencia serem
ridículos aqueles que acerca desses vocábulos filosofam com sutileza maior,
quer atribuam tselem, isto é, a imagem, à substância da
alma, e demuth, isto é, a semelhança, às suas
qualidades, quer tragam a lume algo diverso.”[1].
Ele
tem razão. Contudo, assim como acontece com as expressões alegria e prazer,
que são semelhantes e complementares no português, mas ao mesmo tempo cada uma
tem sua propriedade; ocorre com as expressões imagem e semelhança. O
dicionário Strong traz o seguinte significado para ambas: Demuth –
semelhança, similaridade; Tselem – imagem, semelhança.
O
termo tselem é derivado da palavra tselel que
significa sombra. Esta imagem relatada no texto
bíblico simboliza uma coisa projetada sobre outra, assim como a nossa sombra é
resultado da luz solar ser projetada sobre o nosso corpo. O caráter e a ética
de Deus (ética, aqui, não possui apenas o significado de conjunto
de leis e normas, tampouco o sentido que a teologia liberal aplica ao
termo, mas à plenitude do padrão de vida que Deus outorgou ao ser humano,
manifesto por Cristo quando encarnou) foram estabelecidos a nós a fim de serem
refletidos na criação.
Por
mais que os hebreus utilizaram, na escrita bíblica, de repetições, o uso do
termo demuth, ao invés de usar apenas tselem, tem
um motivo. Quando analisamos o texto de Gênesis 1:26-27 com o todo bíblico,
vemos que imagem se refere ao caráter (a maneira de ser,
pensar e agir, que é definida como ética divina)
de Cristo (a segunda pessoa da Deidade) – incluindo, claro, a racionalidade –
projetado no homem e manifesto através dele. É por isso que o apóstolo Paulo
afirmou: “Aos que de antemão escolheu, também os predestinou para serem
conforme a imagem de seu filho, a fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos.” (Romanos 8:29). E semelhança é que o
ser humano, por portar tal caráter (imagem), exerceria sobre a terra - que Deus
criou e onde lhe colocou, com todas as coisas que nele existem - o mesmo governo que o Criador
exerce sobre os céus. Por isso o salmista declara: “Os céus são os céus
do Senhor, mas a terra deu ele aos filhos dos homens.” (Salmo 115:16).
Tais
conceitos são corroborados pelo teólogo Justo González: “Desde seus
primórdios a humanidade recebe de Deus uma comissão: cultivar o jardim, ser
senhora sobre o restante da criação. Este cultivo e este domínio devem ocorrer
à imagem e semelhança de Deus.”[2]. Assim,
cultuar a Deus é refletir sua imagem (caráter, ética) sobre toda a criação a
fim de exercer o mesmo governo sobre a terra que Ele exerce nos céus. O que
também é chamado de mandato cultural: “O Senhor Deus
colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo.” (Gênesis
2:15). A expressão traduzida pelo verbo cultivar é avodah. Este
termo se refere ao que podemos chamar de trabalho agrícola, ou seja, cultivar a
terra. Mas o que é este cultivar em relação ao culto
racional?
Para
respondermos tal questão é necessário refletirmos sobre o termo mordomia. Mordomia
implica em administrarmos, cuidarmos do que, embora não seja nosso, nos foi
confiado não apenas com o intento de manutenção, mas também de desenvolvimento.
É exatamente isto que o salmista quis dizer em Salmo 115:16. Pois toda a terra
pertence ao Senhor (Deuteronômio 10:14, Salmos 24:1). Mas Ele a confiou ao ser
humano para ser Seu mordomo (oikonomos, no grego, de
onde se origina o termo economia, e que significa administrador
da casa). E mordomia demanda racionalidade.
Este
cultivar, no entanto, é um dos atributos de culto. Desta
forma, vemos que culto racional não é apenas ser mordomo da
criação. Atrelado à mordomia está a relação do ser humano com
a criação e também com o Criador. Aliás, a relação com a criação está
fundamentada na relação com o Criador. Uma não é possível sem a outra. Por isso
Deus formou o homem à Sua imagem (relação com o Criador), a fim de exercer Sua
semelhança (relação com a criação). A esta relação chamamos mandato
cultural ou cultura. Este é o pleno significado de avodah.
É baseado neste conceito que Jesus
disse aos fariseus: “Eu lhes digo verdadeiramente que o Filho não pode
fazer nada de si mesmo; só pode fazer o que vê o Pai fazer, porque o que o Pai
faz o Filho também faz. Pois o Pai ama ao Filho e lhe mostra tudo o que faz.” (Evangelho
segundo João 5:19-20). Jesus estava elucidando sobre o culto racional. No
mesmo mote, Paulo exorta os cristãos em Corinto: “fazei tudo para a
glória de Deus.” (I Coríntios 10:31). Não há distinção entre “vida
secular” e “vida espiritual”. Nosso ser, pensar, sentir e agir, em toda e
qualquer esfera de nossa vida, são instrumentos de culto ao
Ser que os criou.
[1] CALVINO, João. As
institutas ou tratado da religião cristã. Tomo I, Livro I; tradução de Carlos Eduardo
de Oliveira. — São Paulo: Editora UNESP, 2008. p. 189.
[2] GONZÁLEZ. Justo L. Cultura &
Evangelho: O lugar da cultura no plano de Deus: tradução de
Vera Jordan Aguiar. – São Paulo: Hagnos, 2011. p. 51.
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