sexta-feira, 27 de julho de 2012

O ‘pneumatos’ de cada dia


Para entendermos um pouco mais o que o apóstolo Paulo quis ensinar no capítulo 8 de sua carta aos romanos, devemos primeiramente compreender o contexto em que ela foi escrita.

Matheus Viana

A expressão grega ‘pneuma’ é utilizada no português como referência ao fôlego humano. Um exemplo é a palavra ‘pneumonia’, usada para nomear a infecção pulmonar que acarreta na queda da capacidade de respiração de um indivíduo.

No entanto, a expressão ‘pneuma’ é traduzida para o português como ‘espírito’. A palavra ‘Espírito’ - com maiúsculo -, que faz referência ao Espírito Santo de Deus, é a tradução da palavra grega ‘pneumatos’ – que aparece, por exemplo, em Atos 1:8 na versão original - para o português.

É interessante quando analisamos a narrativa de Gênesis: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida, e o homem foi feito alma vivente”. (Gênesis 2:7). A palavra ‘formar’, diferente de criar, nos dá a ideia de que algo, neste caso o ser humano, foi feito segundo um padrão, uma forma para ser mais exato. Não é simples semântica.

Deus é um Ser trino. Portanto, o homem foi formado à imagem de Jesus, o Deus que se fez homem (Colossenses 1:15, Evangelho segundo João 1:14). O apóstolo Paulo faz alusão do próprio Jesus como o ‘Segundo Adão’ (I Coríntios 15:45). No final do processo de criação do homem, Deus faz dele uma alma vivente. Ou seja, concede-lhe a capacidade de pensar, sentir, desejar e escolher, a qual Agostinho denomina como livre-arbítrio. Mas há algo fundamental entre o começo e o fim deste processo.

Deus concede ao homem o fôlego de vida. Não se trata de mera capacidade de respirar. Isso mesmo! Deus soprou sobre o homem o ‘pneumatos’. Seu Espírito passou a habitar no homem a partir de então. Que privilégio! Portanto, podemos concluir a anatomia do ser humano antes da queda baseada em Gênesis 2:7: ele é constituído de um corpo, possui uma alma e o Espírito Santo de Deus habita em seu interior.

Sabemos, no entanto, que o homem pecou e cumpriu-se nele a sentença dada previamente por Deus de que no dia em que comesse do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal morreria (Gênesis 2:17). Esta morte é a ausência do Espírito de Deus sobre o homem (Efésios 2:1).

O apóstolo Paulo elucida sobre este fato em um dos trechos mais importantes das Escrituras: o capitulo 8 de sua carta aos romanos. Para entendermos a profundidade – e nunca a totalidade – do que ele quis ensinar, devemos primeiramente compreender o contexto em que esta carta foi escrita, entre os anos 55 e 57 d.C.

O império romano vivia seu auge. Subjugara o vasto império de Alexandre, o grande e também o reino de Israel. Contudo, apesar de seu poderio militar e abrangência política, era um império culturalmente dominado pela filosofia grega, também chamada de helenística.

Um dos sofistas gregos que mais exerceu influencia no pensamento e na cosmovisão dos cidadãos romanos da época foi Platão com sua dicotomia consciência/corpo, entre outros parâmetros filosóficos. Dividiu seu método para obtenção do conhecimento em duas partes: o mundo sensitivo, que faz uso dos sentidos; e o mundo das ideias, que faz uso da razão.

Platão afirmava que o exercício da plena e genuína consciência e a consequente obtenção do conhecimento não eram possíveis através dos sentidos, mas somente pela razão. Acreditava que a alma humana, antes de ser presa pelo cárcere do corpo, pertencia ao mundo das ideias. Afirmava que o ser humano é constituído de razão (consciência) e possui uma alma (presa ao corpo), sempre submissa à razão. Veremos o desdobramento deste pensamento em outros filósofos, como René Descartes, por exemplo, em outra oportunidade.

A alma humana, segundo Platão, divide-se em coragem - a capacidade de lutar - e desejo - referente ao trabalho e aos relacionamentos afetivo e sexual. Vejamos então a anatomia humana em sua visão:

·         Consciência (razão) – região da cabeça
·         Alma (aprisionada pelo corpo):
Coragem (capacidade de lutar) – região do peito e do bíceps
Desejo – (capacidade de sentir e de amar) – região do baixo ventre e dos órgãos genitais

Para Platão, o exercício da razão estava totalmente separado do corpo. Por isso, agir segundo os impulsos da coragem e do desejo representava para ele o total abandono da razão. Este raciocínio vai fundamentar a teologia dos patrísticos nos séculos II a VII, cujo representante mais emblemático é Agostinho de Hipona. É do pensamento platônico - passando pelo estoicismo de Zenão - que vai surgir a teoria cristã da guerra entre o Espírito de Deus, que conduz à santidade, e os feitos da carne (corpo), que conduzem ao pecado. Na tentativa de vencer o desejo do corpo e, consequentemente, o pecado, tornam-se comuns as práticas do ascetismo e, em casos mais extremos, do autoflagelo.

É este drama helênico, fundamentado na experiência, doutrina e razão cristãs, que Paulo utiliza para ilustrar o embate entre a vontade de Deus e a vontade humana. Era a linguagem que os romanos entendiam. Conforme preconiza, os filhos de Deus são guiados a viverem de acordo com o Seu Espírito (Romanos 8:14). Por isso, deve-se mortificar a carne, ou seja, seus desejos e concupiscências (Romanos 8:13), de modo a recebermos de seu ‘pneumatos’ (Romanos 8:11). Pois, assim como Ele ressuscitou a Jesus dentre os mortos, nos ressuscitará para vivermos a Nova Vida que nos foi preparada (II Coríntios 5:17, Evangelho segundo João 10:10).

Continua...


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