terça-feira, 13 de junho de 2017

Legados culturais e traços sociais - Parte II

Para melhor compreensão do texto, leia a parte I.

Matheus Viana

Guiado por sua egolatria, Caim se afastou da presença do SENHOR. Gerou uma família e, consequentemente, uma sociedade à sua imagem e semelhança, conforme vemos em Lameque (Gênesis 4:24). Na contramão, Enos, filho de Sete, reconheceu seu estado de degradação e o fato de Deus ser O seu Redentor. Por isso invocou o nome do SENHOR. Foi baseado nesta verdade que Davi declarou, milênios depois: “Feliz a nação cujo Deus é o SENHOR” (Salmos 33:12).
    
Noé, o homem cuja família foi escolhida por Deus para ser o protótipo de uma nova humanidade, era descendente de Sete. Vivendo em uma sociedade depravada e corrupta, foi justo e íntegro (Gênesis 6:9). Tsadiyq e tamiyn são os termos em hebraico traduzidos para o português, respectivamente. O significado do termo tsadiyq abrange o indivíduo que age de forma justa e também o que é justificado por Deus, O Justo. Em termos de causa e efeito, podemos concluir que tsadyiq é aquele que é justificado por Deus e suas ações são determinadas por esta justificação.
    
Foi baseado neste princípio que o apóstolo Paulo citou o profeta Habacuque (2:4) ao escrever aos romanos: “O justo viverá pela fé” (Romanos 1:17). Somos justificados por Deus mediante a fé que depositamos na obra única, magna e redentora de Jesus Cristo. Isto é invocar o nome do SENHOR e ser salvo (Atos 2:21, Romanos 10:13). E esta justificação, cujo selo é o Espírito Santo (Efésios 4:30), nos faz agir e viver com retidão diante de Deus. Noé foi justificado por Deus por ser fiel à cultura que recebeu de seus antecessores.
    
Esta retidão produz o tamiyn. Conforme vimos, este termo pode ser traduzido como perfeito ou íntegro. Tamiyn é amar e cultuar a Deus com tudo o que somos e temos. Não é em vão que o Shemá, citado por Jesus aos saduceus, preconiza: “Amarás o SENHOR teu Deus de todo coração, de toda alma, de todo intelecto e com todas as suas forças” (Deuteronômio 6:5, Evangelho segundo Marcos 12:28). Foi neste princípio que Jesus se fundamentou ao advertir seus ouvintes: “Sedes perfeitos como perfeito é o vosso pai celeste”. (Evangelho segundo Mateus 5:48). A versão septuaginta (LXX) traduz o termo tamiyn como teleion, que significa perfeito, completo, íntegro. E foi a expressão teleion usada por Marcos e também por Mateus ao registrarem esta afirmação de Jesus. Ou seja, o que Jesus quis dizer foi que devemos servir ao Ser Perfeito com todo o nosso ser.
    
Um dos mais ilustres descendentes de Sete, Enoque, “já não era” (Gênesis 5:24). O texto hebraico ve´enenu traduzido literalmente para o português é: e ele não era. Enoque andava com Deus ao cultuá-lo de forma íntegra por observar a cultura ao qual fora formado. Tal integridade fez com que Deus o tomasse para si, por isso ele não era. Deus deseja que vivamos “tomados” por Ele ao ponto de que não sejamos nós mesmos, e sim Cristo vivendo em nós (Gálatas 2:20). Óbvio que isso não significa a extinção de nossa existência. Mas que ela, integralmente, deve estar pavimentada na pessoa de Jesus Cristo (Sua vida e obra) a fim de que possamos refletir Sua imagem, conforme Deus deseja (Romanos 8:29).

Em outras palavras, vivermos para a Sua Glória (I Coríntios 10:31). Isso fala de renunciarmos a egolatria que permeia o nosso ser (Jeremias 17:9, Tiago 4:2-3). Significa, como Paulo exortou, morrermos para a nossa natureza terrena (Colossenses 3:5). Significa negarmos a nós mesmos conforme Jesus Cristo nos advertiu: “Aquele que quiser me seguir, negue-se a si mesmo, tome cada um a sua cruz e siga-me” (Evangelho segundo Mateus 16:24 – Ênfase acrescentada).
    
Para uma melhor compreensão, evoquemos a definição de essência humana de Arthur Schopenhauer: vontade de viver. De acordo com ela, o ser humano, por ser essencialmente vontade, ao deixar de realizá-la está morrendo. Assim, quando renunciamos a nossa vontade para realizarmos a vontade de Jesus Cristo, estamos morrendo para que Ele (Sua vontade) possa viver em nós. Óbvio que não devemos concordar com a definição do filósofo. Mas a utilizamos apenas como analogia para compreendermos, por exemplo, a exortação do apóstolo Paulo: “Trazemos sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também seja revelada em nosso corpo. Pois nós, que estamos vivos, somos sempre entregues à morte por amor a Jesus, para que sua vida também se manifeste em nosso corpo mortal” (II Coríntios 4:10-11).
    
Ambos (Tsadiyq - justo e tamiyn – íntegro), no entanto, foram efeitos de uma causa: Noé andava com Deus. Esta foi uma característica cultural fundamental na sociedade gerada por Sete a partir de Enos. Ele começou, ensinado pelo pai, a invocar o nome do SENHOR. Enoque andou com Deus ao ponto de ser tomado por Ele (Gênesis 5:24). Noé manteve a tradição cultural. Conforme vimos, não é correto dissociar cultura de culto. A cultura da sociedade originada em Caim era um culto ao homem. A cultura da sociedade originada em Sete era o culto a Deus. Qual a cultura que fundamenta sua maneira de pensar, ser e agir? Ela demonstra quem você cultua.
   
Andar com Deus fala do caminho que o indivíduo trilha em sua vivência. As duas árvores que estavam no jardim do Éden (Gênesis 2:17) - a da Vida e a do conhecimento do bem e do mal - representaram dois caminhos. A Escritura Sagrada afirma que Deus “Depois de expulsar o homem, colocou a leste do jardim do Éden querubins e uma espada flamejante que se movia, guardando o caminho para a árvore da vida (Gênesis 3:24 – Ênfase acrescentada). A palavra hebraica traduzida como caminho para o português é derech. Ela aparece, por exemplo, no salmo 18:30: “O caminho de Deus é perfeito”. A tradução literal deste salmo, no entanto, é Deus é o caminho perfeito (derech tamiyn).
    
Andar com Deus é viver, de forma ativa, neste derech tamiyn. Quando Jesus afirmou ser O Caminho (Evangelho segundo João 14:6), evocou esta premissa. Estava afirmando que Ele é O Caminho Perfeito, o derech tamiyn que conduz ao Pai. Jesus foi (e é) a personificação do salmo 18:30, bem como o cumprimento da profecia feita por intermédio de Isaías: “E ali haverá uma grande estrada, um caminho que será chamado Caminho de Santidade. Os impuros (não justificados) não passarão por ele; servirá apenas aos que são do Caminho...” (Isaías 35:8). Tal fato fez com que Seus primeiros seguidores fossem conhecidos como a seita do Caminho (Atos 9:2). Noé, à semelhança de Enoque, não andava no caminho dos homens, mas no derech tamiyn.
    
O pai de Noé, Lameque (que não é o descendente de Caim), declarou uma sentença ao nomeá-lo: “Deu-lhe o nome de Noé e disse: ‘Ele nos aliviará do nosso trabalho e do sofrimento de nossas mãos, causados pela terra que o SENHOR amaldiçoou”. (Gênesis 5:29). O nome de Noé carregava um propósito estabelecido por seu pai. A palavra traduzida por sofrimento é itsevon, que significa fadiga. Embora fadiga seja sofrimento, é algo característico de trabalho. Contudo, este trabalho não é o avodah, o cultivo – estabelecido por Deus - que o homem exercia no jardim do Éden como mandato cultural ou culto racional a Deus (Gênesis 2:15). A expressão traduzida como trabalho neste trecho é assenu. Este é o trabalho que o homem realiza no intuito de meramente sobreviver (Cf. Gênesis 3:19), e não de cultuar o Criador.
    
Sabemos que o que levou Deus a amaldiçoar a terra foi o estabelecimento de Seu juízo pela desobediência do homem a Ele, proveniente de um culto ególatra (Gênesis 3:17). Davi declarou em seu salmo: “Deus é um juiz justo, um Deus que manifesta cada dia o seu furor” (Salmo 7:11). O apóstolo Paulo preconizou aos cristãos em Roma: “... a ira de Deus é revelada nos céus contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela justiça”. (Romanos 1:18). Tais declarações descrevem nosso contexto atual.
    
As várias faces do mal que nos assolam são a manifestação da ira de Deus, que ainda se manifestará de forma definitiva com a volta de Jesus Cristo, por conta do ser humano viver à revelia Dele (Cf. Romanos 2:5-11). Enquanto isto não acontece, somos chamados a confortar o mundo de todo trabalho e fadiga (sofrimento) resultantes da ação dos homens (Romanos 8:19-21). A palavra traduzida por aliviará é chamenu, que significa confortar. Conforme vimos, o conforto de Deus é resultado de sermos confrontados a fim de nos conformarmos à Sua vontade soberana (Cf. Romanos 12:2).
    
Eis o chamado de Noé, exercido através da construção da arca: Confrontar o erro dos homens a fim de que fossem conformados à vontade de Deus, e transformar o trabalho em cultivo/culto para que a terra fosse redimida pelo SENHOR. O dilúvio representou tudo isso. O modo profano e devasso segundo o qual as pessoas viviam foi confrontado com a mensagem do dilúvio iminente (Gênesis 6:12-13). O conformarem-se à vontade de Deus foi o fato de perecerem como resultado do juízo decretado por Deus em detrimento de suas más ações. Com o dilúvio, a terra foi redimida e o culto racional a Deus foi estabelecido novamente. A Escritura registra que após o fim do dilúvio e o baixar de suas águas:

“... Noé construiu um altar dedicado ao SENHOR e, tomando alguns animais e aves puros, ofereceu-os como holocausto, queimando sobre o altar. O SENHOR sentiu o aroma agradável e disse a si mesmo: ‘Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa do homem, pois o seu coração é inteiramente inclinado para o mal desde a infância. E nunca mais destruirei todos os seres vivos como fiz desta vez”.
(Gênesis 8:20-21).

A terra foi redimida de todo o mal causado pelos homens. Na inauguração do recomeço de Deus sobre a criação, Noé ofereceu a Ele um culto racional. Note que Noé ergueu um altar ao SENHOR e Lhe ofereceu um holocausto. Mas... o princípio do holocausto não foi estabelecido por Deus através de Moisés? Sim, pois Ele intentou que o culto fosse restaurado (invocar o nome do SENHOR), uma sociedade que pudesse ser chamada de Seu povo fosse formada, e que Sua Glória enchesse toda a terra, conforme o plano original. O holocausto estabelecido através de Moisés não foi algo novo. Era um traço cultural da sociedade gerada em Sete e, por isso, exercido por Noé.
    
Em seguida, a Escritura afirma: “Deus abençoou Noé e seus filhos, dizendo-lhes: ‘Sejam férteis, multipliquem-se e encham a terra. Todos os animais da terra tremerão de medo diante de vocês: os animais selvagens, as aves do céu, as criaturas que se movem rente ao chão e os peixes do mar; eles estão entregues em suas mãos. Tudo o que vive e se move servirá de alimento para vocês. Assim como lhe dei os vegetais, agora lhes dou todas as coisas'” ­(Gênesis 9:1-3).
    
Houve uma repetição aumentada da ética que Deus estabeleceu ao homem após tê-lo criado (Gênesis 1:28-29). No primeiro versículo do capítulo 9, há a mesma interação, dividida nos mesmos dois momentos, feita por Deus com o primeiro ser humano da face da terra: Abençoou e lhes disse. Contudo, foi a Noé e aos seus filhos. Eis a importância da família para a formação da sociedade e a perpetuação da cultura de Deus sobre Sua criação. Encher a terra nada mais é do que formar gerações de acordo com a ética de Deus, personificada em Jesus Cristo. Foi exatamente este culto racional que Jesus advertiu aos Seus discípulos: “Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei”. (Evangelho segundo Mateus 28:19-20).
    
Abraão era descendente de Noé (Evangelho segundo Lucas 3:34-36). Também pudera. Apesar de viver em um contexto cultural politeísta, completamente diferente do vivido por seus antecessores, Abrão – seu nome na ocasião – recebeu de Deus a proposta de voltar o exercer o traço cultural estabelecido por Sete por meio de seu filho Enos: “Anda na minha presença e seja íntegro (tamiyn)(Gênesis 17:1). Deus quis que Abraão possuísse as mesmas características que Noé, alcançado por Sua Graça por ser descendente de Sete, possuía. Conosco não é diferente. Por isso Jesus, em seu sermão da montanha, advertiu: “Sedes perfeitos como perfeito é o vosso pai celeste” (Evangelho segundo Mateus 5:48). Contudo, só é possível ser perfeito/completo/íntegro (teleion) andando na presença de Deus, em Seu derech tamiyn, que é o próprio Cristo.

Por falar em Cristo, na descrição genealógica de Lucas, vemos que Jesus, em sua natureza humana, era da linhagem de Sete. 

terça-feira, 6 de junho de 2017

Legados culturais e traços sociais

Matheus Viana
    
As ações de indivíduos corruptos resultam em uma sociedade perversa. Tal perversidade, no entanto, passa pelo âmbito da família. Conforme afirmou Aristóteles, sociedade é o conjunto de famílias. Esta também é a definição bíblica, que é anterior à do filósofo. Não é em vão que a engenharia social, peculiar do sistema vigente que visa destruir os absolutos judaico-cristãos, não mede esforços em mutilar a estrutura familiar teonômica com todo seu mosaico de conceitos e valores.
    
Ao analisarmos a depravação da humanidade que levou Deus a subverter o mundo com dilúvio, vemos que ela foi desdobramento da degradação familiar que, por sua vez, foi resultado da corrupção dos indivíduos. A sentença bíblica é clara: “Por causa da perversidade do homem...” (Gênesis 6:3). No entanto, como ela se manifestou? “Quando os homens começaram a multiplicar-se na terra e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram bonitas, e escolheram para si as mulheres que lhes agradaram.” (Gênesis 6:1-2).
    
Os filhos de Deus – independente do que esta expressão signifique - manifestaram suas vilanias nas famílias até então compostas. Neste trecho das Escrituras vemos que os homens estavam cumprindo o mandato cultural estabelecido por Deus (Cf. Gênesis 1:28), mas Ele não era mais o ser cultuado. Isto resultou na formação de famílias desfiguradas em relação ao padrão familiar constituído por Deus ao homem. O que degradou toda a humanidade, exceto uma família: a de Noé. E foi através dela que Deus recomeçou.
    
Tratemos, contudo, a narrativa do capítulo 6 de Gênesis como efeito. Do pecado original – corrupção do indivíduo (Romanos 5:12) - até a depravação de toda a humanidade, houve dois homens que geraram, por meio de suas respectivas famílias, dois tipos de sociedade: Caim e Sete. Ambos, filhos de Adão. As diferenças entre eles, bem como de suas respectivas sociedades, foram abismais. Para termos uma pequena ideia de tamanha discrepância, Enoque, o homem que andou com Deus ao ponto de ser tomado por Ele, foi descendente de Sete (Gênesis 5:24). Já Lameque, o homem de “estopim curto” que matou um homem por tê-lo ferido e um menino por tê-lo machucado, foi descendente de Caim (Gênesis 4:24). Analisemos estas duas sociedades de modo a contextualizá-las com a nossa realidade.
    
Caim, o primeiro fratricida da história, casou-se e gerou um filho chamado Enoque, que significa iniciado. Depois disso, fundou uma cidade com o nome do filho, a primeira mencionada em toda a Bíblia (Gênesis 4:17). Aqui é clara a relação entre a tríade indivíduo, família e sociedade. Mas o ponto fulcral é a circunstância primária que levou Caim a trilhar sua saga: “Então Caim afastou-se da presença do SENHOR e foi viver em Node, a leste do Éden.” (Gênesis 4:16). Duas coisas a serem analisadas: O afastamento da presença de Deus e a morada em Node. Node significa peregrinação. Peregrinação, neste contexto, significa uma vida distante do propósito de Deus.
    
Houve dois momentos no episodio da criação do ser humano: O primeiro foi quando, ao receber do fôlego de vida de Deus (Gênesis 2:7), o ser humano passa a existir e ter consciência de sua existência. O segundo foi quando ele recebeu a ética de Deus que lhe deu propósito e sentido para sua vida (Gênesis 1:28). Ao abandonar a ética de Deus para se aventurar na ética proposta pela serpente, ele deixou de viver de acordo com o propósito pelo qual foi criado. A perda do sentido foi súbita. Recordemos que um dos significados de pecado (hátá) é errar o alvo/deixar de cumprir o propósito. Peregrinação é a jornada do ser humano em busca de sentido, que pode ser encontrado apenas em Deus encarnado na pessoa de Jesus Cristo, o Logos.
    
Andando a esmo, no labirinto de sua peregrinação, Caim formou uma família e, consequentemente, uma cidade. As gerações posteriores definiram os traços culturais desta sociedade. Jabal, por exemplo, foi o pai dos que moram em tendas e criam rebanhos (Cf. Gênesis 4:20). Seu irmão, Jubal, foi pioneiro na arte da música. E Tubalcaim foi ferreiro. Por crescer inserido nesta sociedade que propiciou o florescer de sua natureza corrompida, Lameque reproduziu o legado homicida de Caim: “Eu matei um homem porque me feriu, e um menino porque me machucou. Se Caim é vingado sete vezes, Lameque o será setenta e sete”. (Gênesis 4:24).
    
Vejamos, agora, a sociedade oriunda de Sete. Ele gerou um filho chamado Enos. Conforme a Bíblia afirma: “Nessa época começou-se a invocar o nome do SENHOR”. (Gênesis 4:26). O texto hebraico, de forma transliterada, afirma: “vayiqra´ shemo-`et `enosh `az huchal liqro`beshem `adonay” – “Ele chamou o nome dele de Enos. Então ele começou chamar pelo nome de SENHOR”. Ou seja, Enos, cujo nome significa ser humano/homem, passou a invocar o nome do SENHOR. Vemos aqui, ainda não na forma estabelecida por intermédio de Moisés, o ministério sacerdotal.
    
Diante desta análise, surgem algumas indagações: De onde Enos tirou a ideia de invocar o nome do SENHOR? Foi ele ensinado pelo pai, ou aprendeu sozinho? Quem lhe transmitiu o conhecimento do SENHOR de modo que O invocasse? Apesar de a Escritura não dizer explicitamente, a própria narrativa em si é um indício de que Enos foi ensinado a realizar esta invocação, este culto racional.
    
Invocar o nome do SENHOR. Não foi em vão que Jesus, ao ensinar Seus discípulos como orar, declarou: “Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o seu nome.” (Evangelho segundo Mateus 6:9 – Ênfase acrescentada). Ao falarmos neste princípio, não há como não evocar o diálogo entre Deus e Moisés: “Moisés perguntou: ‘Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes disser: O Deus de seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem: ‘Qual é o seu nome?’ Que lhe direi?’. Disse Deus a Moisés: ‘Eu sou o que sou. É isto o que você dirá aos israelitas: Eu sou me enviou a vocês’”. (Êxodo 3:13-14).
    
Neste mote, podemos afirmar que invocar o nome do SENHOR significa declarar, prestando-lhe o culto racional, que Ele é o único e verdadeiro Deus de modo a viver segundo tal declaração. O apóstolo Paulo, citando o profeta Joel, declarou: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (Romanos 10:13). Pedro, em sua mensagem após o evento em Pentecostes, também. Ambos usaram a expressão epikalésetai, cujo significado é clamar. De acordo com o Léxico do Novo Testamento de Wilbur Gringrich e Frederick Danker, esta expressão é usada para indicar que a pessoa invocada é pertencente ao nome que ela possui[1].
    
Às vésperas da encarnação de Jesus Cristo, o anjo advertiu a José sobre a gravidez de Maria: “Ela dará à luz um filho, e você deverá lhe dar o nome de Jesus (Yahoshua/Yeshua – Yahweh/Yaho salva), pois ele salvará o povo de seus pecados.” (Evangelho segundo Mateus 1:21). O nome determina o ser. O ser, por sua vez, determina o fazer. Jesus não se tornou O Salvador por salvar. Ele salvou – e salva - por ser O Salvador desde antes da fundação do mundo (Apocalipse 13:8).
    
As ideologias existentes no mundo não visam apenas prover uma ética para a humanidade seguir e, através dela, encontrar sentido existencial. Mas, principalmente, redimi-la. Todas elas têm início na premissa de que o mundo está caótico. Uma das diferenças entre elas, no entanto, é a situação do ser humano em relação a tal realidade.
    
Invocar o nome do SENHOR é resultado de se ter a consciência de que o mundo está caótico por culpa do próprio homem. Seu pecado degradou o ambiente em que habita (Cf. Gênesis 3:17). Por isso, não há redenção do mundo sem a redenção do homem. Esta, por sua vez, se dará apenas pela obra de Jesus Cristo, o Deus que se fez homem. É neste mote que o apóstolo Paulo declarou: “Pois a natureza foi submetida à inutilidade, não pela sua própria escolha, mas por causa da vontade daquele que a sujeitou (o ser humano), na esperança de que a própria natureza criada será libertada da escravidão da decadência em que se encontra, recebendo a gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Romanos 8:20-22).
    
O materialismo histórico/dialético, que desfruta de hegemonia no pensamento coletivo, não considera a depravação humana (antropológica). Na contramão, propõe apenas uma redenção social (que contempla a cultura, a educação, a política e a economia) como “solução final”. Sim, o termo pertencente ao movimento nazista vem bem a calhar. Anulando a necessidade de redenção do ser humano, anula-se, subitamente, O Redentor. Assim, não há razão para invocar o nome do SENHOR. Cria-se, a partir de então, uma sociedade anticristã.

Foi exatamente isto que o apóstolo Paulo exprimiu em sua carta aos romanos: “... trocaram a Glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal (...) Trocaram a verdade de Deus em mentira, e adoraram e serviram a coisas e seres criados em lugar do Criador, que é bendito para sempre. Amém” (Romanos 1:23 e 25). O culto a Deus foi substituído pelo culto ao homem. Ele divide-se em duas partes: O culto ao homem em si e o culto à sua obra.
    
No outro polo, temos o libertarianismo que manifesta um materialismo característico. Ele vê, à semelhança do histórico/dialético, qualquer figura de autoridade como elemento opressor. Contudo, na contramão do supracitado, ele não se resume à ética social promovida pelo Estado (Status Quo), mas à capacidade redentora do próprio homem, sem precisar da ajuda (capacidade) ou intervenção (autonomia) de ninguém. O que, além de desconsiderar a obra redentora de Jesus Cristo, elimina o princípio comunitário – e não comunista - do cristianismo.
    
Caim, embora reconhecendo seus pecados de idolatria e de fratricídio, - cujo reconhecimento não foi fruto de arrependimento, mas da abordagem disciplinatória de Deus sobre ele - não se atentou à necessidade de se redimir. Sintoma da plena ausência de culto racional. Conforme afirmei no livro Culto Racional:

“... a base de um culto racional é a consciência de que somos pecadores e a consequente necessidade de redenção que temos ao ponto de desejarmos ser libertos e redimidos como fruto de Sua misericórdia e Graça (I João 4:10). Este desejo nos leva a renunciarmos nossa vontade e realizarmos a vontade de Deus como consequência de seguirmos a Cristo (Evangelho segundo Mateus 16:24). Este processo é chamado de cristianismo”.[2]



[1] GINGRICH, F. Wilbur. Léxico do Novo Testamento: grego, português; revisão Frederick W. Danker; tradução Júlio P. T. Zabatiero – São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 83.
[2] VIANA, Matheus. Culto racional: A interação entre as razões divina e humana - Ribeirão Preto: Legis Summa, 2016. p. 50.