Matheus Viana
Devemos observar, em primeiro lugar, a notória
distância que a Igreja de Cristo está de Seu Evangelho. Os fatos falam por si.
Mas algo que deve ser analisado é o conceito de sola scriptura. Pois é comum
o fato de alguns cristãos se proclamarem como os detentores do “verdadeiro
evangelho”.
Embora considerem ser devotos à “doutrina dos
apóstolos” (Atos 2:42) e defensores “da fé que foi confiada aos santos”
(Judas 3), muitos tentam moldar as Escrituras aos seus desejos e ideologias.
Textos fora de seus respectivos contextos são utilizados à exaustão para a
formulação de uma “ortodoxia” que atenda seus interesses. Quando são
confrontados, bradam a plenos pulmões: “Nossa conduta está de acordo com as Escrituras,
portanto, é ortodoxa”.
Antes de tal conclusão, devemos evocar o fato
incontestável de que muitas heresias têm origem nas Escrituras. Todavia, são
meros resultados de leituras e interpretações equivocadas das mesmas. Além
disso, precisamos considerar a abordagem de nosso coração que é enganoso
(Jeremias 17:9), além de nossa mente que é corrompida (II Coríntios 4:4).
Considerando tais fatores, o apóstolo Paulo denunciou: “É verdade que alguns
pregam Cristo por inveja e rivalidade.” (Filipenses 1:15). Ao seu discípulo
Timóteo, alertou: “Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina; ao
contrário, sentindo coceira nos ouvidos, juntarão mestres, segundo os seus
próprios desejos. Eles se recusarão a dar ouvidos à verdade...” (II Timóteo
4:3-4).
Não há, neste quesito, como deixar de falar da teologia
da prosperidade. Esta foi, há milênios, refutada desde a sua base por Jesus
(Evangelho segundo Mateus 6:24) e pelo apóstolo Paulo quando advertiu Timóteo: “Os
que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos
descontrolados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na
destruição (...) Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé
e se atormentaram com muitos sofrimentos.” (I Timóteo 6:9 a 11). Antes,
portanto, introduziu tal advertência dizendo: “Se alguém ensina falsas
doutrinas e não concorda com a sã doutrina de nosso Senhor Jesus Cristo e com o
ensino que é segundo a piedade, é orgulhoso e nada entende.” (I Timóteo
6:1).
Com o intento de refutar esta séria distorção, há
um crescente número de cristãos que tentam conformar o Evangelho de Cristo com
a ideologia marxista (seja a do próprio Karl Marx ou a elaborada por Antônio
Gramsci) chamando-o de evangelho social ou progressista. Ignoram,
assim, toda a degradação moral e cultural que dela emana. Por outro lado, temos
os cristãos que, na tentativa de refutar tal heresia, criam uma espécie de
evangelho ultraconservador, o que redunda em fundamentalismo.
O Evangelho possui uma ética própria: a que Deus
estabeleceu ao ser humano desde a Sua criação, e que foi plenamente vivida por
Jesus Cristo (Evangelho segundo João 5:39, I João 2:6). E ela está acima de
qualquer ideário humano, seja de direita ou de esquerda, conservador
ou progressista. O apóstolo Pedro preconizou: “Antes de mais nada,
saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois
jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de
Deus, impelidos pelo Espírito Santo.” (II Pedro 1:20). Há uma coerência em
todos os livros que compõem as Escrituras, que é chamada de canonicidade.
Isto demonstra que a mensagem contida na Palavra de Deus, por ser a descrição
da Soberana Vontade Dele, é única e não está sujeita a interpretações
particulares.
O pós-modernismo surgiu afirmando que os absolutos
do iluminismo são instrumentos de uma espécie de ditadura do pensamento. Por
isso, estabeleceu o princípio de que o conteúdo de uma mensagem é relativo pelo
fato dos conceitos de linguagem também serem. Assim, um texto não carrega em
seu bojo a mensagem que o autor pretende transmitir, mas a mensagem que o
leitor (receptor) deseja dele extrair. O intento absoluto do autor do
texto foi substituído pelo relativismo do desejo do leitor.
Elucidando este elemento, Alister McGrath afirma: “Um
aspecto do pós-modernismo que ilustra esta tendência particularmente bem,
enquanto também indicando sua obsessão com textos e a lingua, é a desconstrução
– o método crítico que virtualmente declara que a identidade e intenções do
autor de um texto são uma irrelevância à interpretação do mesmo.”[1]
Este princípio foi incorporado pelo liberalismo
teológico, que ainda exerce forte influência sobre várias denominações cristãs.
Ao evocar as conclusões do erudito em hermenêutica John Caputo, McGrath diz: “Ninguém
pode pretender possuir a verdade. É tudo uma questão de perspectiva. A
conclusão desta linha de pensamento é tão simples quanto desvastadora.”[2]
Em seguida, cita uma afirmação de Caputo: “A verdade é que não há nenhuma
verdade.”[3]
Tal declaração é claramente contraditória. Se não há verdade, não é possível
acreditar na afirmação feita por ele. É o cúmulo e a incoerência do
relativismo.
Este é o princípio que tem norteado a interpretação
que a Igreja atual tem exercido em relação às Escrituras. Já que não há
absolutos, posso usar tal relativismo de modo a conformar meus desejos e
interesses com o conteúdo da Escritura. E ainda assim dizer que observo o sola
scriptura e, portanto, sou ortodoxo. Mas não podemos anular o fato
de que a Escritura possui uma mensagem absoluta: as ações e os ensinos de
Jesus, a encarnação da Palavra.
[1] McGRATH, Alister. Paixão pela verdade: a
coerência intelectual do evangelicalismo; tradução de Hope Gordon Silva. – São
Paulo: Shedd Publicações, 2007. p. 156.
[2] Ibid, p.
157.
[3] CAPUTO, John. Radical Hermeneutics.
Bloomington, IN: Indiana University Press, 1987. Citado em McGRATH, Alister.
Paixão pela verdade: a coerência intelectual do evangelicalismo; tradução
de Hope Gordon Silva. – São Paulo: Shedd Publicações, 2007. p. 157.
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