sábado, 7 de novembro de 2015

Evangelho & evangelhos



Matheus Viana

Devemos observar, em primeiro lugar, a notória distância que a Igreja de Cristo está de Seu Evangelho. Os fatos falam por si. Mas algo que deve ser analisado é o conceito de sola scriptura. Pois é comum o fato de alguns cristãos se proclamarem como os detentores do “verdadeiro evangelho”.

Embora considerem ser devotos à “doutrina dos apóstolos” (Atos 2:42) e defensores “da fé que foi confiada aos santos” (Judas 3), muitos tentam moldar as Escrituras aos seus desejos e ideologias. Textos fora de seus respectivos contextos são utilizados à exaustão para a formulação de uma “ortodoxia” que atenda seus interesses. Quando são confrontados, bradam a plenos pulmões: “Nossa conduta está de acordo com as Escrituras, portanto, é ortodoxa”.

Antes de tal conclusão, devemos evocar o fato incontestável de que muitas heresias têm origem nas Escrituras. Todavia, são meros resultados de leituras e interpretações equivocadas das mesmas. Além disso, precisamos considerar a abordagem de nosso coração que é enganoso (Jeremias 17:9), além de nossa mente que é corrompida (II Coríntios 4:4). Considerando tais fatores, o apóstolo Paulo denunciou: “É verdade que alguns pregam Cristo por inveja e rivalidade.” (Filipenses 1:15). Ao seu discípulo Timóteo, alertou: “Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina; ao contrário, sentindo coceira nos ouvidos, juntarão mestres, segundo os seus próprios desejos. Eles se recusarão a dar ouvidos à verdade...” (II Timóteo 4:3-4).

Não há, neste quesito, como deixar de falar da teologia da prosperidade. Esta foi, há milênios, refutada desde a sua base por Jesus (Evangelho segundo Mateus 6:24) e pelo apóstolo Paulo quando advertiu Timóteo: “Os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos descontrolados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na destruição (...) Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos.” (I Timóteo 6:9 a 11). Antes, portanto, introduziu tal advertência dizendo: “Se alguém ensina falsas doutrinas e não concorda com a sã doutrina de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino que é segundo a piedade, é orgulhoso e nada entende.” (I Timóteo 6:1).

Com o intento de refutar esta séria distorção, há um crescente número de cristãos que tentam conformar o Evangelho de Cristo com a ideologia marxista (seja a do próprio Karl Marx ou a elaborada por Antônio Gramsci) chamando-o de evangelho social ou progressista. Ignoram, assim, toda a degradação moral e cultural que dela emana. Por outro lado, temos os cristãos que, na tentativa de refutar tal heresia, criam uma espécie de evangelho ultraconservador, o que redunda em fundamentalismo.

O Evangelho possui uma ética própria: a que Deus estabeleceu ao ser humano desde a Sua criação, e que foi plenamente vivida por Jesus Cristo (Evangelho segundo João 5:39, I João 2:6). E ela está acima de qualquer ideário humano, seja de direita ou de esquerda, conservador ou progressista. O apóstolo Pedro preconizou: “Antes de mais nada, saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito Santo.” (II Pedro 1:20). Há uma coerência em todos os livros que compõem as Escrituras, que é chamada de canonicidade. Isto demonstra que a mensagem contida na Palavra de Deus, por ser a descrição da Soberana Vontade Dele, é única e não está sujeita a interpretações particulares.

O pós-modernismo surgiu afirmando que os absolutos do iluminismo são instrumentos de uma espécie de ditadura do pensamento. Por isso, estabeleceu o princípio de que o conteúdo de uma mensagem é relativo pelo fato dos conceitos de linguagem também serem. Assim, um texto não carrega em seu bojo a mensagem que o autor pretende transmitir, mas a mensagem que o leitor (receptor) deseja dele extrair. O intento absoluto do autor do texto foi substituído pelo relativismo do desejo do leitor.

Elucidando este elemento, Alister McGrath afirma: “Um aspecto do pós-modernismo que ilustra esta tendência particularmente bem, enquanto também indicando sua obsessão com textos e a lingua, é a desconstrução – o método crítico que virtualmente declara que a identidade e intenções do autor de um texto são uma irrelevância à interpretação do mesmo.”[1]

Este princípio foi incorporado pelo liberalismo teológico, que ainda exerce forte influência sobre várias denominações cristãs. Ao evocar as conclusões do erudito em hermenêutica John Caputo, McGrath diz: “Ninguém pode pretender possuir a verdade. É tudo uma questão de perspectiva. A conclusão desta linha de pensamento é tão simples quanto desvastadora.”[2] Em seguida, cita uma afirmação de Caputo: “A verdade é que não há nenhuma verdade.”[3] Tal declaração é claramente contraditória. Se não há verdade, não é possível acreditar na afirmação feita por ele. É o cúmulo e a incoerência do relativismo.

Este é o princípio que tem norteado a interpretação que a Igreja atual tem exercido em relação às Escrituras. Já que não há absolutos, posso usar tal relativismo de modo a conformar meus desejos e interesses com o conteúdo da Escritura. E ainda assim dizer que observo o sola scriptura e, portanto, sou ortodoxo. Mas não podemos anular o fato de que a Escritura possui uma mensagem absoluta: as ações e os ensinos de Jesus, a encarnação da Palavra.


[1] McGRATH, Alister. Paixão pela verdade: a coerência intelectual do evangelicalismo; tradução de Hope Gordon Silva. – São Paulo: Shedd Publicações, 2007. p. 156.
[2] Ibid, p. 157.
[3] CAPUTO, John. Radical Hermeneutics. Bloomington, IN: Indiana University Press, 1987. Citado em McGRATH, Alister. Paixão pela verdade: a coerência intelectual do evangelicalismo; tradução de Hope Gordon Silva. – São Paulo: Shedd Publicações, 2007. p. 157.

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