Matheus Viana
Certa
vez um mestre da Lei perguntou a Jesus: “De
todos os mandamentos, qual é o mais importante?” Jesus respondeu: “O mais importante é este: ‘Ouve, ó Israel,
o Senhor, o nosso Deus, o Senhor é o único Senhor. Ame o Senhor, o seu Deus, de
todo o coração, de toda alma e de todo o seu entendimento e de todas as suas
forças.” (Evangelho segundo Marcos 12:28-30).
Para
um judeu - ainda mais para um fariseu como o que fez tal questionamento a Jesus
-, guardar os mandamentos de Deus era o mesmo que cultuá-lo. Os mandamentos
contidos na Lei de Deus era uma demonstração de Seus atributos em plena
interação com o ser humano, a coroa de toda a criação.
Quando
Deus, do cume do monte Sinai, ordena que Moisés transmita ao povo hebreu os dez
mandamentos, emite o seguinte preâmbulo:
“Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidão.”
(Êxodo 20:2). Isso não foi mera lembrança, tampouco uma apresentação formal.
Mas o relato de quem Ele era (e É) e o que fez. Tal relato tinha como intenção
gerar no povo a consciência de cultuá-lo e senso de gratidão em exercer,
continuamente, este culto, que Davi chamou de Ação de Graças (Salmo 100:4).
Lembremos
que, por conta do pecado, o culto
racional que existia entre Deus e o ser humano foi extinto. Por isso Deus
precisou instituir uma forma de culto que levasse em conta a contundente
corrupção e consequente degradação da natureza humana em relação à Sua
Santidade suprema e imutável. Os quatro primeiros dos dez mandamentos focam a
relação entre Deus e o ser humano (Êxodo 20:1-7). Pois é ela que fundamentaria o
relacionamento comunitário. Sendo assim, o culto
racional começa com a interação entre Deus e o homem a fim de que seja a
base para a vida comunitária. Não há vida comunitária sem relacionamento
individual com Deus, e vice-versa.
A
resposta que Jesus emite ao fariseu traz um princípio fundamental. Ele citou
o Shemá, que foi a ordenança que
Moisés estabeleceu ao povo antes de atravessar o Jordão rumo à terra prometida,
Canaã (Deuteronômio 6:4). Antes de analisar o caráter deste princípio, convém
nos atentarmos à ação antecedente: ouvir.
Ouvindo a voz do
Bom Pastor
“Ouve, ó Israel”. Shemá significa ouvir. Por que Moisés
ordenou que o povo ouvisse a Deus antes de proclamar o mandamento citado
posteriormente por Jesus como resposta ao fariseu que Lhe questionou? Por que o
ato de ouvir é tão importante? A principal causa do pecado original foi o fato
de Eva ter dado ouvidos à ardilosa proposta da serpente (Gênesis 3:4-5). Sua
mente foi corrompida (II Coríntios 11:3), o que a levou a pensar e agir de
forma completamente contrária à vontade de Deus. O restante você já sabe...
Ouvir refere-se a se
atentar, receber informação, aprender. O apóstolo Paulo advertiu: “A fé vem pelo ouvir, e o ouvir vem pela
palavra.” (Romanos 10:17). Ouvir é a atitude primordial de um aprendiz e
também de um servo. Um aprendiz ouve o seu professor. Um servo ouve o seu senhor.
Somos chamados a ouvir a Deus. Não foi em vão que Jesus disse em relação aos
Seus discípulos: “O porteiro abre-lhe a
porta, e as ovelhas ouvem a sua voz. (...) Mas nunca seguirão um estranho; na
verdade, fugirão dele, porque não reconhecem a voz de estranhos.”
(Evangelho segundo João 10:3 e 5). Quando Jesus aparece a João, na ilha de
Patmos, e lhe ordena a escrever as sete cartas para as sete igrejas da Ásia,
disse: “Aquele que tem ouvidos, ouça o
que o Espírito diz às igrejas.” (Apocalipse 2:7).
Coração, alma e entendimento
Kardia,
psique e dianoia.
Estas são as expressões originais para coração,
alma e entendimento, respectivamente, na descrição que aparece no livro do
Evangelho segundo Marcos. Moisés exortou o povo hebreu a, depois de ouvir o
Único Senhor, amá-lO de todo coração.
Coração para um judeu não implica
somente em um órgão físico, tampouco apenas ao núcleo de nossos sentimentos.
Refere-se ao centro da personalidade e da vida do indivíduo. Por isso Salomão
advertiu: “De todas as coisas que deves
guardar, guarde o coração, pois dele procedem as fontes da vida.”
(Provérbios 4:23).
O
termo psique substitui normalmente o
termo hebraico nephesh. Contudo, a alma para um judeu não tem a mesma
conotação que possui no pensamento ocidental, influenciado pelo pensamento
grego, sobretudo platônico. Nephesh,
embora traduzido como alma para o
português, fala do ser humano integral. Ou seja, um judeu não faz a dicotomia
clássica que os ocidentais fazem de corpo
e alma. Portanto, amar a Deus com
toda psique é amá-Lo com todo o seu
ser.
E
por fim, mas não menos importante, dianoia.
Este termo é traduzido, em seu literal, como intelecto, já que o termo grego nous
é que é traduzido como entendimento,
por exemplo, em passagens como Romanos 12:2 e II Coríntios 4:4. Dianoia é o próprio intelecto humano, ou
seja, sua plena racionalidade. E foi justamente a dianoia que foi totalmente corrompida pelo pecado.
O
apóstolo Paulo exorta em sua carta aos romanos: “porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe
renderam graças, mas os seus pensamentos
tornaram-se fúteis e o coração insensato deles obscureceu-se. (...) Além do
mais, visto que desprezaram o conhecimento de Deus, ele os entregou a uma disposição mental reprovável, para
praticarem o que não deviam.” (Romanos 1:21 e 28 – Ênfases acrescentadas).
Sim, tal narrativa é a causa e o devastador efeito da queda. Quando a narrativa
de Gênesis descreve o homem como alma
ou ser vivente, refere-se a ele em
sua integralidade. Tal significado abarca a capacidade de pensar, sentir,
desejar e escolher.
Conforme vimos, Jesus
recebeu tal capacidade para que pudesse compreender a vontade de Deus a fim de
exercer, de forma plena e excelente, o
culto racional que lhe fora estabelecido. Por isso o Shemá, conforme Jesus afirmou, é o mandamento mais importante. Pois
observá-lo é amar a Deus com a totalidade do que somos, do que temos, do que
pensamos e de como agimos.