Matheus Viana
O
mal possui várias faces. Muitas delas estão estampadas na realidade que nos
cerca, seja de perto ou de longe. Mediante este drama, é comum surgir a
questão: “Como pode existir um Deus bom diante de tanto mau?”. Esta é uma das
principais indagações feitas pelos ateus, mas não é “patrimônio” deles.
Epicuro
(341-270 a. C) elaborou o seguinte argumento: “Ou Deus quer abolir o mal, e não pode; ou ele pode, mas não quer; ou
ele não pode e não quer. Se ele quer, mas não pode, ele é impotente. Se ele
pode, e não quer, ele é cruel. Mas se Deus tanto pode quanto quer abolir o mal,
como pode haver maldade no mundo?”.
Este
argumento está recheado de problemas lógicos. Os que pensam exatamente assim ou
de forma semelhante acreditam que a razão é o único fator em exercício. Mas não
é! A indagação tem sua origem na razão, já a indignação tem na emoção. Ou seja,
por mais que pareçam racionais, questionamentos desta espécie têm caráter
sentimental.
Por
isso, quanto mais usamos a razão, dissipando toda a neblina da ideologia
pré-concebida e do sentimentalismo, vemos que as próprias questões são inconsistentes,
assim como toda e qualquer tentativa de transformar a existência do mal em
evidência para a não-existência de Deus ou em colocar em descrédito Suas
atribuições consideradas pelos teístas.
Jesus
certa vez contou uma parábola sobre certo jovem, a qual podemos tirar algumas
lições sobre o tema aqui abordado. Caminhando para o clímax da parábola, Ele
disse: “Ele desejava encher o estômago
com as vagens de alfarrobeira que os porcos comiam, mas ninguém lhe dava nada.”
(Evangelho segundo Lucas 15:16). Se lermos este versículo isolado de todo seu
contexto, podemos ficar indignados: “Como pode uma pessoa chegar a tamanha
desolação?”.
Se
lermos o versículo seguinte da mesma forma, – “Caindo em si, ele disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm comida de
sobra e eu aqui, morrendo de fome!’” - esta indignação se intensifica:
“Como pode o pai deste jovem permitir isto?”. É assim que agimos quando nos
deparamos com o mal. Trocamos apenas os personagens Pai por Deus. Contudo,
ignoramos o início da parábola. O jovem protagonista escolheu abandonar o pai e
viver de maneira DISTANTE e INDEPENDENTE. A degradação a qual alcançou foi mera
consequência de sua escolha. O pai não teve culpa alguma.
Há
quem refute tal afirmação indagando: “Mas se o pai não tivesse dado a parte da
herança nem permitido que ele saísse de casa, o mal não teria acontecido”. Todavia,
tal atitude seria pautada na falta de liberdade, algo que o ser humano tanto
deseja e anseia. Rousseau dizia que o homem nasce livre e, por isso, a
liberdade não é apenas uma benesse natural, mas um direito irrevogável.
De
acordo com a antropologia judaico-cristã, o ser humano foi formado por Deus em
plena liberdade, pois fora feito à imagem e conforme a semelhança de um Ser
Supremo que é livre (Gênesis 1:27). É neste mote que Jesus declara: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos
libertará.” (Evangelho segundo João 8:32). Ou seja, o ser humano é, em sua
essência original, livre. E liberdade implica em capacidade de escolher. C.S
Lewis elucida: “Uma vez mais, a liberdade
de uma criatura deve significar liberdade de escolha e esta implica a existência
de coisas entre as quais escolher.”1.
Assim
como o pai do jovem protagonista da parábola, mesmo se entristecendo, permitiu
que o filho seguisse suas escolhas, Deus também permitiu. Conforme Agostinho
preconizou em seu livro Livre-arbítrio,
o mal existe como consequência do mau uso que o ser humano fez do
livre-arbítrio que Deus o concedeu. Mas há quem diga: “Por que Deus, então,
permitiu que o ser humano escolhesse?”. Porque Deus queria que o ser humano
tivesse uma comunhão com Ele baseada na escolha, na liberdade de amá-Lo, e não
como resultado de ser a única possibilidade.
Conforme
elucida Agostinho ao seu discípulo Evódio: “...
se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia existir esse bem,
que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas
ações? Visto que a conduta desse homem não seria pecado nem boa ação, caso não
fosse voluntária. Igualmente o castigo, como a recompensa, seria injusto, se o
homem não fosse dotado de vontade livre.”2.
Sobre o exercício
da escolha, João Calvino diz no livro I de suas Institutas: “Portanto, Deus proveu a alma do homem com a mente,
mediante a qual pudesse distinguir o bem do mal, o justo do injusto, e,
assistindo-a a luz da razão, percebesse o que se deve seguir ou evitar. Razão
porque os filósofos chamaram a esta parte diretiva to hégemonikon (– o dirigente).
A esta mente Deus associa a vontade, em cuja alçada está a escolha.”3.
Nossas atitudes são classificadas como “boas” quando destoam das “más”.
Portanto, se não existisse a possibilidade de o ser humano fazer o mal, ele
também não faria o bem. Pois o bem existe por ser diferente do que é mal. Se
não houvesse o que é mal, não faríamos o bem, mas somente o que fosse possível
para nós. O bem é considerado bem por ser precedido por uma escolha. Jesus
disse em Mateus 7:10-11: “Se vocês,
apesar de serem maus, sabem dar coisas boas aos filhos, quanto mais o Pai de
vocês, que estás nos céus, dará coisas boas aos que lhe pedirem!”
(Evangelho segundo Mateus 7:10-11).
Apesar de sermos maus, escolhemos e fazemos coisas boas
a quem estimamos, mesmo sendo capazes de escolher e fazer o que é mal, por sermos
movidos pelo amor. Se existisse apenas o bem, o ser humano seria escravo dele.
Logo, nossas atitudes não poderiam ser classificadas como boas, mas apenas como
ordinárias. Agostinho elucida ao seu discípulo Evódio: “Pois do mesmo modo que um cavalo que se extravia é melhor do que uma
pedra que não pode se extraviar, ficando sempre em seu lugar próprio, por
faltar-lhe o movimento e sensibilidade, assim uma criatura que peca por sua
vontade livre é melhor do que aquela outra que é incapaz de pecar por carecer
dessa mesma vontade livre.” 4.
Continua...
Notas:
1 - LEWIS. C. S. O problema do sofrimento;
tradução Alípio de França Neto. – São Paulo: Editora Vida, 2009. Pg. 36.
2 - AGOSTINHO, Santo.
O livre-arbítrio; tradução, organização, introdução e notas de Nair de Assis
Oliveira – São Paulo: Paulus, 1995 – Patrística. Pg. 75.
3 - CALVINO, João. As
Institutas; ou Tratado da Religião Cristã. Capítulo XV. Pg. 195.
4 – Idem 2, pg. 166.
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