Matheus Viana
Quem era o estranho com barba e cabelos longos, roupagem rude de pele de camelo, que se encontrava no deserto convocando seus ouvintes ao arrependimento? Quem era o homem que ficava junto às margens do Jordão batizando aqueles que a ele se achegavam?
Estas eram as questões as quais os judeus buscavam respostas. O homem respondeu de maneira concisa: “Não sou o Cristo!” (Evangelho segundo João 1:20). Por que ele emitiu esta resposta? Era ciente de que os judeus aguardavam o Messias. Ele também O aguardava. Mas as perguntas não eram se ele era o Cristo, e sim quem ele era. Era sacerdote por direito e herança, embora não exercesse o ofício sacerdotal nos moldes da religião judaica.
A resposta deste homem não foi satisfatória. “Quem é você?”, perguntaram-lhe em seguida. Mas a questão não era fruto da razão de quem perguntava. E sim a transferência da dúvida de terceiros: “Dê-nos uma resposta, para que a levemos àqueles que nos enviaram. Que diz acerca de si próprio?” (Evangelho segundo João 1:22)
Estamos rodeados de pessoas querendo saber quem somos (Hebreus 12:1). Não há como fugir deste fato. Ele é demonstração da necessidade que temos de nos conhecermos. E esta necessidade, por sua vez, é desdobramento da necessidade que temos de conhecer a nossa origem. Martin Buber, tentando suprir esta necessidade, propôs a teoria do “eu e tu”, que diz que conheceremos a nós mesmos na medida em que conhecermos o nosso próximo. Pois Buber afirma que o próximo é um reflexo da nossa personalidade, o nosso espelho. Portanto, segundo ele, quando olhamos a personalidade do próximo, enxergamos a nossa própria existência.
O estranho questionado era João, o Batista. Mas ele não respondeu seu nome ou o que fazia. Respondeu quem era de forma peculiar: “Eu sou a voz do que clama no deserto.” (Evangelho segundo João 1:23). Se usarmos a teoria aristotélica da essência/acidente, podemos dizer que tal característica definia a essência de João.
Voz do que clama. Sim, João era a voz do próprio Deus que não clamava mais no Templo repleto de um sacerdócio corrompido pelo poder romano. Era a voz de um Deus que escolheu aquele que foi rejeitado pela religião humana, embora tivesse direito, por parte de pai e de mãe (Evangelho segundo João 1:5), de exercer o ofício sacerdotal. Deus também não quis que João se misturasse a um sacerdócio corrompido. Por isso lhe enviou ao deserto, a nova morada de Deus naquela ocasião.
Antes de entrarmos no exercício de conhecermos a nós mesmos, façamos alguns questionamentos. Quem eram os “judeus de Jerusalém” que queriam saber quem João era? A cúpula religiosa. Contextualizando este nicho para a atualidade, podemos dizer que se refere aos “portadores” da promessa. Recentemente fiquei chocado ao ouvir um pastor dizendo que aqueles que não se submeterem a uma determinada visão estratégica, comum no movimento neo-pentecostal que mistura evangelismo de massa, auto-ajuda cristã e teologia da prosperidade, não fará parte da “grande reforma” e do “avivamento” dos últimos dias.
Assim como os “judeus de Jerusalém” se portavam como os “portadores das promessas” declaradas pelos profetas a respeito do Messias, cristãos ligados a movimentos e “visões” se portam como os portadores das promessas triunfalistas dos últimos dias. Não podemos deixar, infelizmente, de citar o separatismo em que esta realidade desencadeia: “Donos da verdade” x “ignorantes da fé”. Será? Jesus diz que veio para os doentes, e não para os sãos. Quem é doente e quem é são nesta história? Jesus emitiu, nas entrelinhas, a resposta: todos somos doentes.
Algo interessante implícito na resposta de João Batista nos remete à sua negação ao chamado complexo messiânico. Ou seja, o complexo que nos emite o sofisma de que grande parte do mundo será redimido por conta do sacrifício de Jesus “através de seu ministério”. “O que seria de Deus, e da humanidade, sem o meu ministério?”. Acredite, há quem pense assim. Por isso, quando Deus levanta um ministério diferente dos moldes destes “reformadores contemporâneos”, logo é questionado. “Quem é você? O que fazes?”.
Sim, a advertência de Paulo é pertinente e necessária: “Examine todas as coisas e retenha o que é bom.” (I Tessalonicenses 5:21). Mas ela não anula a consideração que devemos exercer quando detectarmos que algo realmente provém de Deus. Não há fórmula mágica, tampouco única, para discernirmos o que é de Deus ou não é. Não há “10 passos para isso” nem “12 semanas para aquilo”. Não há “taylorismo cristão”, pois Deus possui multiforme e sabedoria (Efésios 3:10). Ou seja, Ele age como e quando bem entender. É um erro dizer que algo não provém de Deus por não se conformar com os moldes estabelecidos por homens, assim como João não se configurava com o molde exercido por um sacerdócio corrompido, e por uma religião que não reconheceu O Deus encarnado.
Feita uma breve e sucinta análise sobre os questionadores, analisemos as questões. A primeira delas é: “Quem é você?”. Façamos esta pergunta a nós mesmos. A proposta socrática ressoa sobre a nossa existência: “Conhece-te a ti mesmo”. Baseado nela (creio eu), o apóstolo Paulo, usando a ocasião da Ceia, reverberou: “Examine-se cada um a si mesmo.” (I Coríntios 11:28). Calvino, em uma de suas institutas, adverte: “O verdadeiro conhecimento de nós mesmos é dependente do verdadeiro conhecimento de Deus”. Ponto final.
Mas como conheceremos um Deus invisível, metafísico, e por isso, conforme preconizou Kant, incognoscível? Analisando Aquele que é a imagem do Deus invisível (Colossenses 1:15), o próprio Deus encarnado (Evangelho segundo João 1:14). O sociólogo e teólogo Ariovaldo Ramos elucida: “Jesus é o que Deus é e o que todo ser humano deve ser”. Por quê? Porque fomos formados, em nossa essência original, à imagem e conforme a semelhança de Deus. Ou seja, fomos feitos segundo uma forma, um modelo. E esse modelo é o próprio Jesus. Portanto, saberemos quem somos, de fato, quando soubermos quem Ele é. O único “eu e tu”, proposto por Buber, que revelará quem verdadeiramente somos só pode ser realizado com o Jesus revelado pelas Sagradas Escrituras (Evangelho segundo João 5:39). Qualquer outro modelo é falsificação barata. É um espelho fosco.
Sim, João nasceu antes da encarnação de Deus. Mas ele sabia quem era por conhecer e viver a Logos, a mesma Palavra que profetizava sobre a encarnação de Deus por todo o Antigo Testamento: Jesus, o Cristo. Por isso, respondeu: “Eu sou a voz do que clama do deserto: Façam um caminho reto para o Senhor.” (Evangelho segundo João 1:23). A resposta de quem somos, assim como a de João, deve consistir em essência e propósito. Em Jesus, temos a revelação de nossa essência e também de nosso propósito. Um não existe sem o outro.
Quem é este estranho que outros questionam, e que contemplo quando olho para o espelho?
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