Matheus Viana
Trabalho é
um aspecto fundamental da vida desde seu início. Não é em vão que chamamos o
processo de uma mãe dar à luz um filho de trabalho
de parto. Mas não é só isso. A relação sexual da qual se origina o
desenvolvimento da vida na mulher ao receber o sêmen do homem pode
ser classificada como trabalho no
sentido de realização.
Além
disto, é crucial considerarmos que Deus criou todas as coisas em seis dias
(independente de como você entenda estes dias)
e no sétimo descansou. Descansar é o desdobramento de trabalho. O profeta Isaías proclamou: “Desde os tempos antigos ninguém ouviu, nenhum ouvido percebeu, e olho
nenhum viu outro Deus, além de ti, que trabalha
para aqueles que nele esperam.” (Isaías
64:4 – Ênfase acrescentada).
Trabalhar nada mais é do que
movimento. Movimento é energia. Sobre isso, o apóstolo Paulo disse: “Pois nele vivemos, nos movemos e
existimos.” (Atos 17:28). Nossa vida é fruto do trabalho que Deus realizou ao formar o ser humano do pó da terra e
soprar o Seu fôlego de vida a fim de que ele se tornasse um ser vivente
(Gênesis 2:7). Somos resultados do trabalho
de Deus e é nEle onde estão pautadas nossas existências e consequentes
ações (movimentos).
É
o trabalho de Deus, o nosso Criador,
que viabiliza e sustenta todo e qualquer trabalho. Até mesmo daqueles que
trabalham contra Ele, como o Faraó Ramsés ao tentar impedir o povo hebreu de sair do
Egito, por exemplo. Sim, esta contrariedade, mesmo sendo
resultado de sua liberdade de escolha, contribuiu para os propósitos de Deus.
Ele é soberano em toda e qualquer circunstância. Foi baseado neste mote que o
salmista declarou: “Se não for o SENHOR o
construtor da casa, será inútil trabalhar na construção. Se não é o SENHOR quem
vigia a cidade, será inútil a sentinela montar guarda. Será inútil levantar
cedo e dormir tarde, trabalhando arduamente por alimento.” (Salmo 127:1-2).
Na
esteira deste princípio, o apóstolo Paulo elucidou: “Pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de
acordo com a boa vontade dele.” (Filipenses 2:13). Em outras
traduções aparece a expressão opera
ao invés de efetua. A expressão grega traduzida para ambas no português é energon, que é oriunda de energein,
que é traduzida para o português como realizar
no referido texto. Ambas dão origem à
expressão que conhecemos bem no português: energia.
É
consenso que energia foi necessária
para o início da existência do universo. A questão é que energia foi esta? Qual sua origem? Gênesis 1:1-3, embora não seja uma descrição em linguagem científica, emite a resposta. Quem não a aceita, ainda está
procurando-a. Mas tal procura é baseada no axioma de que, embora desconhecida
pela ciência, é algo que antecede a própria existência da energia enquanto elemento natural. Ou seja, sua origem é
sobrenatural. Sendo assim, a energia
de Deus - Sua realização, Seu trabalho - é a fonte de sustentação para o nosso
trabalho, para a nossa energein.
Existem, no entanto, dois tipos de trabalho: o que o ser humano exerceu antes do pecado e o que surgiu como consequência deste.
O primeiro está relatado em Gênesis 2:15, que é o princípio de mordomia. Conforme relatei no livro Culto racional:
“... cultuar a Deus é refletir sua imagem
(caráter, ética) sobre toda a criação a fim de exercer o mesmo governo sobre a
terra que Ele exerce nos céus. O que também é chamado de mandato cultural: “O Senhor
Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo.”
(Gênesis 2:15). A expressão traduzida pelo verbo cultivar é avodah. Este
termo se refere ao que podemos chamar de trabalho agrícola, ou seja, cultivar a
terra. Mas o que é este cultivar em
relação ao culto racional?
Para respondermos tal questão é necessário
refletirmos sobre o termo mordomia.
Mordomia implica em administrarmos, cuidarmos do que, embora não seja nosso,
foi-nos confiado não apenas com o intento de manutenção, mas também de
desenvolvimento. É exatamente isto que o salmista disse em Salmo 115:16. Pois
toda a terra pertence ao Senhor (Deuteronômio 10:14, Salmos 24:1). Mas Ele a confiou
ao ser humano para ser Seu mordomo (oikonomos, no grego, de onde se origina
o termo economia, e que significa administrador da casa). E mordomia demanda racionalidade. Este
cultivar, no entanto, é um dos atributos de culto.
Desta
forma, vemos que culto racional não é
apenas ser mordomo da criação.
Atrelado à mordomia está a relação do
ser humano com a criação e também com o Criador. Aliás, a relação com a criação
está fundamentada na relação com o Criador. Uma não é possível sem a outra. Por
isso Deus formou o homem à Sua imagem (relação com o Criador), a fim de exercer
Sua semelhança (relação com a criação). A esta relação chamamos mandato cultural ou cultura. Este é o significado de avodah.".
Mordomia, como podemos ver, é o trabalho como forma de adorar a Deus, de
prestar-Lhe culto. Era o trabalho que o ser humano exercia até o advento do pecado original. Todavia, hoje estamos
sob o jugo do trabalho que é
consequência deste pecado, onde Deus ordenou ao homem: “Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra.” (Gênesis 3:18). Veja que este texto é
plenamente contrastante com a advertência emitida por Deus ao homem em Gênesis
1:29-30.
Nosso
trabalho é resultado do jugo da maldição do pecado. Ele não visa a mordomia em relação a Deus, mas o próprio sustento. Suas realizações não
são mais instrumentos de adoração a Deus, o que implica em trabalhar para que
Sua soberana vontade seja plenamente cumprida, mas a sua sobrevivência a qual
ele mesmo supriria a partir de então.
Este
trabalho é resultado de idolatria. Pois
o pecado que gerou tal maldição foi consequência do homem abandonar Deus,
através do abandono à Sua vontade, e buscar suprir os seus próprios desejos
(Gênesis 3:5-6). Por isso ele é árduo, pois
visa a sobrevivência e o enriquecimento obtidos de forma independente de Deus.
O
ponto fulcral de um trabalho é o objetivo que ele visa alcançar: a vontade de
Deus ou a sobrevivência e enriquecimento próprios. Deus foi
claro ao dizer ao homem que enquanto ele exercia mordomia, Ele mesmo lhe provia o sustento (Gênesis 1:29-30).
Mas com o surgimento do pecado, tal realidade mudou drasticamente.
O
stress é algo comum do homem
moderno. É resultado do trabalho
árduo que realizamos. O que devemos analisar é se estamos vivendo como sobreviventes ou mordomos. É claro que a provisão de Deus não “vem do céu”
literalmente. O sábio Salomão exortou: “Observe
a formiga, preguiçoso, reflita nos caminhos dela e seja sábio.” (Provérbios
6:6). Devemos trabalhar para prover o nosso sustento. O próprio Jesus declarou:
“Todo trabalhador é digno de seu
trabalho.” (Evangelho segundo Mateus 10:10). Contudo, é muito diferente
quando o exercemos com a consciência de que não somos meros sobreviventes, mas sim mordomos do SENHOR. E foi exatamente
isto que Jesus exortou Seus discípulos no texto citado: trabalharem em prol do
Reino de Deus. Esta é a renovação de mente que Paulo preconizou em Romanos
12:1-2.
Jesus
disse: “Vinde a mim vós todos que estás
cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Pois meu fardo é leve e meu jugo é
suave.” (Evangelho segundo Mateus 11:29-30). Ele aqui está conclamando-nos
para que deixemos de viver como sobreviventes para que vivamos como mordomos Dele. Pois Ele, através de Seu trabalho
na cruz (Isaías 53:11) quebrou toda maldição que o pecado trouxe sobre a
humanidade e também o jugo da Lei (Gálatas 3:13) para que sejamos Seus mordomos. É
isto que Paulo tinha em mente quando advertiu os cristãos em Corinto (I
Coríntios 10:31). Princípio que é conhecido como ética protestante. Porém, é bastante anterior à Reforma. Foi
estabelecida pelo próprio Deus no início da Criação.
Infelizmente
vivemos, como muitos cristãos já denunciaram à exaustão, uma dicotomia em
relação ao trabalho secular e o culto espiritual. Esta dicotomia não
existe para um mordomo. Não é em vão
que a palavra culto no inglês seja service. Pois somos servos de Deus em todos os momentos de nossa vida, em todas as
nossas atitudes. E a nossa forma de servir é sendo mordomos. Ou seja, glorificando e cultuando a Deus também com o
nosso trabalho, seja ele qual for, claro, desde que não fira os princípios
imutáveis das Escrituras. O culto a Deus é ininterrupto. Esta dicotomia, no
entanto, é uma das causas que tem gerado como efeito a falha da Igreja em
influenciar o mundo e subverter a ordem maligna que paira sobre ele (Cf. I João
3:8, I Pedro 5:8).
Somos
chamados por Jesus para sermos luz do
mundo (Evangelho segundo Mateus 5:14). Mas isso é possível apenas quando
estamos Nele (I João 2:6). E para isso é necessário abandonarmos a posição de sobreviventes, resultado de idolatria, e
nos tornarmos mordomos, assim como Ele foi (Filipenses 2:5-7). O apóstolo
Paulo exortou: “De fato, a piedade com
contentamento é grande fonte de lucro, pois nada trouxemos para este mundo e
dele nada podemos levar; por isso, tendo o que comer e com o que vestir-nos,
estejamos com isso satisfeitos.” (I Timóteo 6:8).
A
busca por enriquecimento, desvirtuado do princípio de mordomia, é idolatria. Não sou eu quem afirma, mas o próprio Jesus
(Evangelho segundo Mateus 6:24). A distância entre a busca pela sobrevivência e
pelo enriquecimento idólatra é muito tênue. Pois o coração do homem é corrupto
e enganoso (Jeremias 17:9), o que torna a nossa alma insaciável (Cf. I Timóteo 6:10-11). Nunca estamos
satisfeitos com o que temos. Sempre queremos mais. E isso nos faz buscar o enriquecimento
tendo o elemento sobrevivência como
ferramenta. E é exatamente este equívoco que o apóstolo Paulo exorta Timóteo e
os cristãos que ele pastoreava evitarem.
Em breve, mais reflexões sobre este tema. Até lá!