Matheus Viana
Após
registrar o que Jesus começou a fazer e
ensinar, Lucas narrou os primeiros feitos dos apóstolos e o nascimento da
Igreja como cumprimento da profecia estabelecida por Jesus à vida de Pedro
(Evangelho segundo Mateus 16:18). Algo significativo. A Igreja tem Jesus como seu
alicerce, conforme Paulo e Pedro afirmaram (Efésios 2:21-22, I Pedro 2:4-5) a
fim de que Seu Reino se estabeleça sobre a terra.
Por isso, a Igreja reflete a imagem de
Cristo (Efésios 5:27). Logo, as pessoas que a compõem, assim como fizeram os
apóstolos e pais da Igreja, devem continuar fazendo
e ensinando o que Ele fez e ensinou. Este é o plano desde o início. Jesus, como homem, seguiu este
padrão, que podemos chamar de testemunha.
Jesus advertiu Seus discípulos a
permanecerem em Jerusalém a fim de serem cheios do Espírito Santo (Atos 1:8).
Para quê? Eles já haviam recebido o Espírito Santo pelo próprio Jesus
(Evangelho segundo João 20:21-22). Mas este derramar seria diferente, pois
tinha um propósito peculiar: torná-los testemunhas.
O que significa, entretanto, ser testemunha
de Cristo?
Quando pensamos no termo, logo emerge em
nossa mente o conceito jurídico que ecoa sobre o senso comum: narrar, por ter
presenciado, um ou mais fatos. Tal conceito não deve ser desconsiderado. Mas o
termo aplicado por Jesus vai além. A expressão usada por Lucas é mártires. Sim, o termo mártir também tem um significado que
domina o senso comum: o de morrer por uma causa. Conceito que não pode ser
desconsiderado, mas que não define o termo de forma completa.
De acordo como o Léxico de F. Wilbur Gingrich e Frederick W. Danker, mártires significa, no contexto em que
Jesus advertiu Seus discípulos, ser testemunha “em um sentido não legal, especialmente com relação à atestação de atos
ou comunicações dignas de nota.” Atos
ou comunicações. Em outras
palavras, fazer e ensinar. Mas não é testemunhar quaisquer
atos ou comunicações, e sim as que são dignas
de nota. Ou seja, as que possuem um propósito que será cumprido na medida
em que são disseminadas.
Jesus aplicou este padrão testemunha por tê-lo seguido na íntegra. Apesar de, como
homem, ter sido a encarnação da Palavra que deu origem ao universo e a todas as
coisas naturais (e sobrenaturais) que nele há (Gênesis 1:3, Evangelho segundo
João 1:1, 14, Colossenses 1:16-17), Ele não veio como testemunha dele mesmo,
mas do Pai. Claro que, ao testemunhar do Pai, testemunhou Dele mesmo (Evangelho
segundo João 8:14-18), pois Ele e o Pai, embora não sejam os mesmos, são um
(Evangelho segundo João 14:9, 17:21).
O próprio Jesus afirmou em determinada
ocasião: “Se testifico acerca de mim
mesmo, o meu testemunho não é válido.” (Evangelho segundo João 5:31). Ele usou,
como artifício argumentativo, o princípio vigente entre os judeus de que para
que um ato ou fato seja válido, deve ser testificado por duas ou mais pessoas
(Cf. Deuteronômio 17:6, 19:15). Ao explicar a veracidade de Sua pessoa, demonstrou
que tudo o que fazia e ensinava não era testificado apenas por
Ele mesmo, mas por mais alguém: “Há outro
que testemunha em meu favor, e sei que o seu testemunho a meu respeito é
válido.” (Vs. 32). Quem é este outro?
A própria Escritura (Vs. 39).
As ações e ensinamentos de Jesus eram
desdobramentos do fato de ser testemunha do
Pai. Ele mesmo afirmou: “Eu lhes digo
verdadeiramente que o Filho não pode fazer nada de si mesmo; só pode fazer o
que vê o Pai fazer; porque o que o Pai faz o Filho também faz.” (Evangelho
segundo João 5:19). E também: “O meu
ensino não é de mim mesmo. Vem daquele que me enviou.” (Evangelho segundo
João 7:17). Tais afirmações, além de evidenciarem a veracidade do princípio do exemplo, atestaram o caráter do ser testemunha que Jesus estabeleceu aos
discípulos ao receberem o Espírito Santo.
Assim, nossas ações e ensinamentos não
devem testemunhar de nós mesmos. O fato de que eles devem testemunhar de Jesus
Cristo transformou-se em um clichê.
Mas entre o óbvio teológico e a prática (piedade) cristã há uma distância
abismal formada pelo ego humano. O princípio, evocado pelos fariseus que
perseguiam Jesus, de que o testemunho próprio não é válido (Evangelho segundo
João 8:13) ao ser ignorado, é praticado à exaustão. Por isso as ações e
ensinamentos da Igreja não têm surtido o efeito que Jesus deseja.
Nossos desejos, prazeres e intentos têm
sido as chaves de interpretação e devoção do Evangelho. O nome de Jesus Cristo
é usado, indevidamente, como pano de fundo para que Seu Evangelho venha de
encontro aos interesses do nosso reino,
a fim de que seja feita a nossa vontade,
assim na terra como no céu.
A Igreja atual é vítima de uma síndrome
diagnosticada por Francis Schaeffer, denominada como misticismo semântico. Expressões bíblicas, como por exemplo, cruz e santidade são utilizadas em discursos, mas completamente
desprovidas de seus respectivos significados. Do elemento cruz é retirado o aspecto renúncia
e considerado apenas a vitória de Cristo que nos faz dignos de desfrutamos das
bênçãos celestiais. Ignorando desta forma que a participação na cruz de Cristo,
conforme Ele mesmo afirmou (Cf. Evangelho segundo Mateus 16:24) e também os
apóstolos, implica em renunciarmos a nossa vontade a fim de realizarmos a Sua. Aqui
é pertinente aplicarmos ao elemento vontade
o significado elucidado pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer, de que vontade é a essência (vida) do ser
humano. Assim, o ser humano sem vontade
de viver – expressão utilizada pelo filósofo - está morto, ainda que não o
esteja fisicamente.
Veja o ensino do apóstolo Paulo, que
evidencia quem ele testemunhava: “Trazemos
sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também seja
revelada em nosso corpo. Pois nós, que estamos vivos, somos sempre entregues a
morte por amor a Jesus, para que a sua vida também se manifeste em nosso corpo
mortal.” (II Coríntios 4:10-11). Isso é ser mártires.
Não precisamos morrer, do ponto de vista
físico (nekrós), para nos tornarmos
testemunhas. O morrer aqui (thanaton – morte no sentido genérico) fala
da soberania que os própósitos de Deus ocupam em nosso coração, de onde
procedem todas as fontes da vida (Provérbios 4:23). Nossas ações e ensinos
devem ter como objetivo glorificar a Cristo (I Coríntios 10:31). Esta era a
tônica da piedade apóstólica e da chamada ética protestante. Isto é ser testemunha da Testemunha.
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