quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Ensaios sobre o mal - Parte II

Tradução: Chuck Norris pode dividir por zero. Não, nem "ele" pode.
Matheus Viana

Analisemos mais alguns problemas lógicos no argumento de Epicuro (citado na primeira parte deste ensaio), principalmente na questão sobre a onipotência de Deus. O fato de Deus ser onipotente não significa que Ele não siga alguns princípios absolutos. Aliás, o ser humano só tem a noção ética e moral por conta do padrão ético que recebeu de Deus. Todo ser humano tem necessidade de pautar sua vida sobre princípios absolutos. O próprio relativismo é um absoluto. Discordas? Então pergunte para um relativista se ele tem certeza de que tudo é relativo. Se responder que sim... Bingo! Ele considera sua “verdade” absoluta. Se responder que não, apenas confessou sua incoerência lógica.

Ou então diga para um relativista que o seu ponto de vista está errado! Você não terminará de contar até dois para ele dizer que você é que está errado. Isso mesmo! Ele considera, ainda que inconscientemente – o que é pior -, o relativismo como um absoluto. Falaremos sobre isto posteriormente.

Eis alguns absolutos em relação a Deus: Ele não pode mentir: “Deus não é homem (humano) para que minta.” (Números 23:19). Ele não pode ser tentado pelo mal nem tentar a ninguém: “... Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta.” (Tiago 1:13). Ele não pode ir contra Seus princípios: “Você viu bem, pois estou vigiando para que a minha palavra se cumpra.” (Jeremias 1:12 - Leia também Isaías 55:11). Ele não pode impedir o ser humano de provar as consequências de suas escolhas. Paradoxal para com Sua onipotência? Claro que é! Explico.

Um Juiz (meritíssimo) é soberano em um julgamento. Ele tem o poder de condenar ou absolver um réu, de declará-lo culpado ou inocente. Contudo, ele não pode deixar de seguir a ética jurídica. Ele não pode, por exemplo, mentir ou ser parcial e faltar com a retidão e equidade a fim de favorecer ou prejudicar o réu. Resumindo, ele não pode, de forma alguma, ser injusto. Portanto, posso usar o que um juiz não pode (não deve) fazer como base para afirmar que ele não é soberano em um julgamento? Claro que não! Isso seria uma falácia, ou melhor, uma picaretagem lógica. O argumento de Epicuro faz exatamente isso. Apesar de ser onipotente, Deus não irá revogar as consequências provenientes das escolhas e dos atos dos seres humanos. E o mal está incluso nelas.

Há quem diga, pelo fato de Deus dizer em sua Palavra que os maus serão condenados, que Ele não pode ser considerado bom. Sim, Ele é bom. E um dos atributos de Sua bondade é a justiça. Deus é justo ao ponto de entregar o Seu próprio Filho para cumprir em nosso lugar a justiça e a condenação – a penalidade - de nossos pecados: o sofrimento e a morte. Conforme o próprio Jesus elucidou: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas.” (Evangelho segundo João 10:11).

É sobre exatamente isso que o apóstolo João afirma: “Nisto consiste o amor de Deus: não que nós temos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou seu filho como propiciação pelos nossos pecados.” (I João 4:10). Sobre isso, o apóstolo Paulo afirmou: “Deus o ofereceu (Jesus) como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue, demonstrando a sua justiça.” (Romanos 3:25). E também: “Mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores.” (Romanos 5:8). Jesus é, ao mesmo tempo, o cumprimento das plenas justiça e bondade de Deus ao ser humano. Não há bondade maior do que sofrer e morrer por alguém mesmo sem merecer.

Assim, Jesus foi a obra suprema para acabar com o mal que assola a humanidade. Contudo, ela ainda desfruta de liberdade que Deus a concedeu. Mas é preciso reiterar que, pelo fato de os primeiros seres humanos terem feito uso indevido desta liberdade, a humanidade está debaixo da escravidão do pecado. Consequentemente, tem sofrido toda sorte de mal. Em outras palavras: o ser humano escolheu o mal e agora tem arcado com suas terríveis consequências.

Deus pode acabar com o mal. Sua “arma” foi o sofrimento e morte de seu Filho em nosso lugar. Foi isso que Isaías declarou ao dizer: “O castigo que nos traz a paz estava sobre ele.” (Isaías 53:5). O sacrifício passado de Jesus nos traz paz no presente, e trará no futuro (Evangelho segundo João 14:27). A “escolha”, portanto, é nossa de retornarmos, por intermédio da cruz, ao Bem Supremo. Ele já fez a Sua parte, o Seu ato soberano de bondade.

Sobre o fato do ser humano arcar com as consequências de suas escolhas e atos, há quem diga que Deus pode reverter a penalidade do ser humano, por isso concede, através de Jesus, a vida eterna ao pecador. Contudo, a vida eterna, apesar de não ser meritória - mas absolutamente pela Graça - é fruto da escolha humana de se arrepender de seus pecados, receber a justificação oriunda da morte de Jesus e recebe-Lo, pela fé, como Senhor e salvador (Efésios 2:8).

Conforme Paulo preconiza, o salário (consequência) por escolher e cometer o pecado (mal) é a morte, mas o dom gratuito de Deus (consequência) para aqueles que se arrependem – escolhem ser justificados em Cristo – é a vida eterna (Romanos 6:23). Esta escolha, no entanto, é fruto da ação do Espírito Santo de Deus (chamado de Graça precedente por uns e Graça irresistível por outros) no interior do ser humano, conforme Jesus advertiu: “Quando ele (O Espírito Santo) vier, convencerá o mundo (kosmon/cosmon - cosmos) do pecado, da justiça e do juízo.” (Evangelho segundo João 16:8).

O apóstolo Paulo elucida: “Irmãos, você foram chamados para a liberdade. Mas não usem a liberdade para dar ocasião à vontade da carne; ao contrário, sirvam uns aos outros mediante o amor.” (Gálatas 5:13). Paulo aqui nos adverte sobre o bom uso de nossa capacidade de escolha. Que possamos reconhecer o quanto somos maus, por conta de nossa natureza corrompida que nos torna escravos do mal (Romanos 3:12) a fim de que, por intermédio do Espírito Santo, busquemos o Bem Supremo.

Continua...

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Ensaios sobre o mal - Parte I

Matheus Viana

O mal possui várias faces. Muitas delas estão estampadas na realidade que nos cerca, seja de perto ou de longe. Mediante este drama, é comum surgir a questão: “Como pode existir um Deus bom diante de tanto mau?”. Esta é uma das principais indagações feitas pelos ateus, mas não é “patrimônio” deles.

Epicuro (341-270 a. C) elaborou o seguinte argumento: “Ou Deus quer abolir o mal, e não pode; ou ele pode, mas não quer; ou ele não pode e não quer. Se ele quer, mas não pode, ele é impotente. Se ele pode, e não quer, ele é cruel. Mas se Deus tanto pode quanto quer abolir o mal, como pode haver maldade no mundo?”.

Este argumento está recheado de problemas lógicos. Os que pensam exatamente assim ou de forma semelhante acreditam que a razão é o único fator em exercício. Mas não é! A indagação tem sua origem na razão, já a indignação tem na emoção. Ou seja, por mais que pareçam racionais, questionamentos desta espécie têm caráter sentimental.

Por isso, quanto mais usamos a razão, dissipando toda a neblina da ideologia pré-concebida e do sentimentalismo, vemos que as próprias questões são inconsistentes, assim como toda e qualquer tentativa de transformar a existência do mal em evidência para a não-existência de Deus ou em colocar em descrédito Suas atribuições consideradas pelos teístas.

Jesus certa vez contou uma parábola sobre certo jovem, a qual podemos tirar algumas lições sobre o tema aqui abordado. Caminhando para o clímax da parábola, Ele disse: “Ele desejava encher o estômago com as vagens de alfarrobeira que os porcos comiam, mas ninguém lhe dava nada.” (Evangelho segundo Lucas 15:16). Se lermos este versículo isolado de todo seu contexto, podemos ficar indignados: “Como pode uma pessoa chegar a tamanha desolação?”.

Se lermos o versículo seguinte da mesma forma, – “Caindo em si, ele disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm comida de sobra e eu aqui, morrendo de fome!’” - esta indignação se intensifica: “Como pode o pai deste jovem permitir isto?”. É assim que agimos quando nos deparamos com o mal. Trocamos apenas os personagens Pai por Deus. Contudo, ignoramos o início da parábola. O jovem protagonista escolheu abandonar o pai e viver de maneira DISTANTE e INDEPENDENTE. A degradação a qual alcançou foi mera consequência de sua escolha. O pai não teve culpa alguma.

Há quem refute tal afirmação indagando: “Mas se o pai não tivesse dado a parte da herança nem permitido que ele saísse de casa, o mal não teria acontecido”. Todavia, tal atitude seria pautada na falta de liberdade, algo que o ser humano tanto deseja e anseia. Rousseau dizia que o homem nasce livre e, por isso, a liberdade não é apenas uma benesse natural, mas um direito irrevogável.

De acordo com a antropologia judaico-cristã, o ser humano foi formado por Deus em plena liberdade, pois fora feito à imagem e conforme a semelhança de um Ser Supremo que é livre (Gênesis 1:27). É neste mote que Jesus declara: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (Evangelho segundo João 8:32). Ou seja, o ser humano é, em sua essência original, livre. E liberdade implica em capacidade de escolher. C.S Lewis elucida: “Uma vez mais, a liberdade de uma criatura deve significar liberdade de escolha e esta implica a existência de coisas entre as quais escolher.”1.

Assim como o pai do jovem protagonista da parábola, mesmo se entristecendo, permitiu que o filho seguisse suas escolhas, Deus também permitiu. Conforme Agostinho preconizou em seu livro Livre-arbítrio, o mal existe como consequência do mau uso que o ser humano fez do livre-arbítrio que Deus o concedeu. Mas há quem diga: “Por que Deus, então, permitiu que o ser humano escolhesse?”. Porque Deus queria que o ser humano tivesse uma comunhão com Ele baseada na escolha, na liberdade de amá-Lo, e não como resultado de ser a única possibilidade.

Conforme elucida Agostinho ao seu discípulo Evódio: “... se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia existir esse bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações? Visto que a conduta desse homem não seria pecado nem boa ação, caso não fosse voluntária. Igualmente o castigo, como a recompensa, seria injusto, se o homem não fosse dotado de vontade livre.”2.

Sobre o exercício da escolha, João Calvino diz no livro I de suas Institutas: Portanto, Deus proveu a alma do homem com a mente, mediante a qual pudesse distinguir o bem do mal, o justo do injusto, e, assistindo-a a luz da razão, percebesse o que se deve seguir ou evitar. Razão porque os filósofos chamaram a esta parte diretiva to hégemonikon (o dirigente). A esta mente Deus associa a vontade, em cuja alçada está a escolha.”3.

Nossas atitudes são classificadas como “boas” quando destoam das “más”. Portanto, se não existisse a possibilidade de o ser humano fazer o mal, ele também não faria o bem. Pois o bem existe por ser diferente do que é mal. Se não houvesse o que é mal, não faríamos o bem, mas somente o que fosse possível para nós. O bem é considerado bem por ser precedido por uma escolha. Jesus disse em Mateus 7:10-11: “Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar coisas boas aos filhos, quanto mais o Pai de vocês, que estás nos céus, dará coisas boas aos que lhe pedirem!” (Evangelho segundo Mateus 7:10-11).

Apesar de sermos maus, escolhemos e fazemos coisas boas a quem estimamos, mesmo sendo capazes de escolher e fazer o que é mal, por sermos movidos pelo amor. Se existisse apenas o bem, o ser humano seria escravo dele. Logo, nossas atitudes não poderiam ser classificadas como boas, mas apenas como ordinárias. Agostinho elucida ao seu discípulo Evódio: “Pois do mesmo modo que um cavalo que se extravia é melhor do que uma pedra que não pode se extraviar, ficando sempre em seu lugar próprio, por faltar-lhe o movimento e sensibilidade, assim uma criatura que peca por sua vontade livre é melhor do que aquela outra que é incapaz de pecar por carecer dessa mesma vontade livre.” 4.

Continua...

Notas:

1 - LEWIS. C. S. O problema do sofrimento; tradução Alípio de França Neto. – São Paulo: Editora Vida, 2009. Pg. 36.

2 - AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio; tradução, organização, introdução e notas de Nair de Assis Oliveira – São Paulo: Paulus, 1995 – Patrística. Pg. 75.

3 - CALVINO, João. As Institutas; ou Tratado da Religião Cristã. Capítulo XV. Pg. 195.

4 – Idem 2, pg. 166.