Matheus Viana
“Disse-lhe Tomé:
‘Senhor meu e Deus meu’". (Evangelho segundo João 20:28).
Lendo esta afirmação, percebo, ainda que tenha certo impacto
por se referir a Cristo, o quanto ele é ínfimo perto do significado e caráter contidos
na ocasião em que foi feita. Devemos levar em consideração o fato de um judeu
fazer tal afirmação para alguém que, três dias antes, fora crucificado pela
“blasfêmia” de dizer ser Filho de Deus.
Vemos na narrativa bíblica que os discípulos, incluso Tomé,
estavam reunidos às portas fechadas por medo dos judeus (Evangelho segundo João
20:26). Medo de quê? De terem destinos
semelhantes ao de Jesus por serem considerados Seus seguidores, o que de fato
eram. Pedro chegou a negá-Lo três vezes. Será que também, naquelas
circunstâncias, não negaríamos?
Em outras palavras, estavam protegendo suas vidas de uma perseguição.
A palavra “Senhor” usada no texto original é Kyrios, versão grega de Adonai, no hebraico. Quando um judeu
declara Adonai ou Kyrios, refere-se ao Criador de todas as
coisas, o Ser soberano de nome impronunciável (representado pelo tetragrama
hebraico YHWH) por ser Santíssimo, o Grande Eu Sou. Esta expressão, pronunciada
por um judeu, possui uma reverência que nós ocidentais – principalmente os
cristãos pós-modernos, adeptos de teologias bizarras como a da prosperidade –
não temos a mínima noção.
O que Tomé fez, de acordo com a cúpula do judaísmo, foi
blasfemar contra Deus. Não foi uma blasfêmia qualquer. Ele usou uma
nomenclatura sagrada para se referir a alguém cuja blasfêmia, de tão absurda –
segundo os judeus -, O levou a ser condenado à morte. Mas qual o motivo de tal
afirmação?
Tomé era seguidor de Jesus. Não apenas isso, era contado
entre os doze mais próximos Dele. Mas seu nome aparece apenas em quatro ocasiões,
algumas relatadas mais de uma vez por diferentes escritores: a primeira quando
Jesus escolheu os doze e os enviou para pregar o Evangelho (Evangelho Mateus 10:3), a segunda no relato aqui analisado, a terceira na pesca maravilhosa (Evangelho segundo João 21:2) , e a quarta na ascensão de Jesus e posterior assembleia de oração que culminou na
escolha de Matias para ocupar o lugar de Judas (Atos 1:13).
Tomé passou três anos seguindo Jesus. Embora seu nome não
apareça no relato, estava presente quando Pedro fez a sublime confissão de que
Ele era o Filho do Deus vivo (Evangelho segundo Mateus 16:18). Sim, esta afirmação também era considerada blasfema
para a cúpula judaica. Mas Tomé foi além. Não afirmou “apenas” que Jesus é o Filho
de Deus, mas que era Kyrios dele e
Deus (Theos) dele. É importante
analisarmos o que o levou a isso.
É notório que Tomé teve uma ‘experiência religiosa’. A
expressão ‘religiosa’ aqui não contém a conotação degradada aplicada em nossos
dias e também no exercício dos fariseus que levou Jesus a adverti-los
severamente. ‘Religiosa’ aqui fala da experiência profunda com Deus que
ultrapassa o nível natural.
Antes de tal afirmação, Tomé viu, assim como os outros,
Jesus juntando-se a eles, mesmo as portas estando trancadas. Lendo o texto
fazendo uso da dedução lógica, devemos concluir que Jesus atravessou uma das
portas ou as paredes. Você decide. Imagine-se nesta situação: os presentes
respirando ameaças de morte. O jugo da perseguição pairava no ar deixando-o
denso. Respirações aceleradas, o que os deixa ofegantes. De súbito, alguém
entra no lugar onde se escondem, mesmo as portas estando trancadas. É óbvio que
ficariam espantados com este fato sobrenatural.
Mas isto não foi suficiente para Tomé. Ao ouvir, anteriormente, sobre a ressurreição de Jesus, foi
enfático: “Se eu não vir as marcas dos
pregos nas suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os pregos e não puser
a minha mão no seu lado, não crerei”. (João 20:25). É impossível ler este
relato sem associa-lo com a afirmação do apóstolo Paulo: “Levo em meu corpo as marcas de Cristo.” (Gálatas 6:17). Tomé tocou
as feridas de Jesus, por isso creu. Era, de fato, O Jesus ressuscitado. E sua
fé o levou a fazer a sublime declaração. Em outras palavras, Tomé obteve um
conhecimento naquele momento maior do que os três anos em que passara com o
Mestre. Ele saltou da experiência racional para a empírica.
Passaremos por experiência semelhante quando nos
aproximarmos Dele. Para isso, como o próprio Jesus nos diz, devemos tomar, a
cada dia, a nossa cruz (Evangelho segundo Mateus 16:24). Pois é esta a
aplicação prática que fazemos em relação às nossas vidas para “ver a marca dos
pregos em Suas mãos, colocar o dedo nelas e colocar também a mão em Seu lado
perfurado”.
Outro aspecto importante e evidente da afirmação de Tomé: um
Senhor pessoal. Isso também era algo inadmissível para um judeu. Pois como um
homem comum, um simples carpinteiro, afirmava que não apenas falava o que Deus
queria que Ele falasse; mas que fazia tudo o que via o Pai fazer (João 5:19), e
que era um com Ele (João 17:21)?
Para um judeu, a grandeza de Deus O impossibilita de um relacionamento pessoal.
E essa foi exatamente a proposta de Jesus. Diminuir Deus? Claro que não. Apenas propiciar o caminho de
acesso do homem a Deus (João 14:6, I Timóteo 2:5).
Na contramão de Tomé, muitos não obtêm a revelação do
Senhorio de Cristo por não estarem dispostos a “colocar as mãos nas marcas de
Cristo”. Pois isso implica tomar a cruz, o que redunda em renúncia. Por sua
vez, renúncia é incômoda. O que destoa do caráter do cristianismo em voga
(Leia-se pseudo-cristianismo). Ele foi elucidado por A. W Tozer em seu artigo A velha e a nova cruz:
“Uma nova filosofia
brotou desta nova cruz com respeito à vida cristã, e desta nova filosofia
surgiu uma nova técnica evangélica – um novo tipo de reunião e uma nova
espécie de pregação. Este novo evangelismo emprega a mesma linguagem que o
velho, mas o seu conteúdo não é o mesmo e sua ênfase difere da anterior. (...)
O evangelismo que
traça paralelos amigáveis entre os caminhos de Deus e os do homem é falso em
relação à Bíblia e cruel para a alma de seus ouvintes. A fé manifestada por
Cristo não tem paralelo humano, ela divide o mundo. Ao nos aproximarmos de
Cristo não elevamos nossa vida a um plano mais alto; mas a deixamos na cruz. A
semente de trigo deve cair no solo e morrer.”.
Síntese de precisão cirúrgica. Peculiar de
Tozer. Dizer mais o quê depois disto?