quarta-feira, 1 de abril de 2020

O voo de Ícaro e a proposta pós-moderna




Matheus Viana

O conceito atual de liberdade é a total capacidade de agir conforme os próprios impulsos e desejos[1]. O chavão “seja livre”, entoado à exaustão como uma espécie de mantra, carrega em seu bojo o intento de que o indivíduo não se prive de nenhuma vontade. Autocontrole – ou domínio próprio – é visto como um moralismo opressor. Nietzsche, o grande guru póstumo do niilismo pós-moderno que teorizou tal proposta, elucidou:

“O indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral (pois “autônomo” e “moral” se excluem), em suma, o homem da vontade própria, duradoura e independente, o que pode fazer promessas – e nele encontramos, vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do que foi finalmente alcançado e está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento de realização”.[2]

De acordo com o pensador alemão, há duas espécies de moral: a nobre e a escrava. A descrição citada acima foi sobre o indivíduo praticante da moral nobre. Assim, podemos ver que ele considerou como moral nobre a realização plena dos desejos do indivíduo à revelia de qualquer outra moral que os contrarie. Mas tal proposta só é possível de ser exercida se o senso de certo e errado que todo ser humano possui (que lhe confere a necessidade de seguir um padrão ético, independente de qual seja[3]) for relativizado ao extremo.
     
A proposta vigente de relativização de valores e do próprio conceito de verdade, que redunda na inversão moral tão evidente em nossos dias, define o tom do imaginário (intelectualidade) coletivo, também conhecido como senso comum, que determina a cultura e, consequentemente, o pensar, o sentir e o agir da grande massa. Diante desta situação, não há como não evocar, a fim de compreendê-la, o mito grego do Voo de Ícaro.
     
De acordo com o mito, Dédalo, arquiteto e artesão, projetou o labirinto onde habitava Minotauro e informou Teseu sobre como entrar e andar nele. Após Teseu seguir tais orientações e matar o Minotauro, o rei de Creta, Minos, ordenou que Dédalo, juntamente com seu filho, Ícaro, fosse preso no labirinto que ele mesmo projetou. 

Inventor e genioso como era, Dédalo projetou asas com pedaços de madeira, peles de animais e penas de pássaros revestidas com cera para fixá-los todos e dar-lhes consistência. Construiu dois pares de asas, deu um ao seu filho e o ensinou a usá-lo. O intento era único: se libertarem do labirinto. Para que isso fosse possível, havia duas advertências a serem consideradas: Uma de que não poderiam voar muito baixo para que as águas e o sal do mar Egeu não danificassem as asas; e a outra de que não poderiam voar muito alto para que o calor do sol não derretesse a cera e desintegrasse as asas. Depois de um certo tempo, ambos alçaram voo. Conseguiram fugir do labirinto. Embriagado com a façanha, Ícaro começou a voar cada vez mais alto, ignorando as advertências do pai, em direção ao sol.
     
Voar em direção ao sol. Frase que evoca um sentimento “heróico” (ainda que seja um heroísmo egoísta, peculiar da presente era) e poético. Posso ouvir, enquanto escrevo estas linhas, o sussurro que ecoa sobre os seres humanos devotos da pós-modernidade: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”. Por mais poético que pareça, o voo libertador de Ícaro foi a causa de sua ruína definitiva. Quanto mais alto voava, seduzido pela grandeza de poder estar e ver acima da cidade e das pessoas, convicto de sua auto-elevação, aproximou-se do sol. O calor derreteu a cera de seu par de asas que se desintegrou, causando sua queda fatal.
     
Sei que alguns podem argumentar a respeito de que a morte de Ícaro foi a sua verdadeira e definitiva libertação. Tal argumentação, no entanto, contraria o próprio enredo do mito. Ícaro não queria morrer, mas se libertar do labirinto ao qual estava confinado. A morte não foi um objetivo alcançado por ser previamente planejado, mas consequência de uma escolha equivocada, por mais libertadora que aparentou ser. Assim como quem comete suicídio não quer, de fato, morrer, mas se libertar dos labirintos de sua alma. A morte não é um fim em si mesma, mas um meio, uma alternativa de findar um mal.
     
Na contramão deste ideal de liberdade que torna o indivíduo escravo de seus instintos e desejos, a verdadeira liberdade acontece no interior do indivíduo. Conforme elucidou o apóstolo Paulo: “... não permitam que o pecado continue dominando os seus corpos mortais, fazendo com que vocês obedeçam os seus desejos” (Romanos 6:12). A. W. Tozer preconizou: “A libertação vem apenas pela negação do eu”[4]. Jesus disse: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Evangelho segundo João 8:32). É necessário meditar sobre esta verdade em seus três aspectos, com suas respectivas perspectivas:

1 – A verdade sobre mim: Quem sou? (Perspectiva antropológica)
2 – A verdade sobre o sentido da vida: De onde vim? Para onde vou? (Perspectivas ética/ metafísica/religiosa/teológica)
3 – A verdade sobre a realidade: Onde estou? (Perspectivas filosófica/histórica/sociológica).

Claramente que cada uma destas perspectivas demanda outras abordagens complementares de diferentes áreas do saber, como por exemplo, a perspectiva antropológica requer as abordagens biológica e cultural. Assim como não podemos ignorar as abordagens físicas, matemáticas e linguísticas. Ao colocar as perspectivas entre parênteses, não se trata de reducionismo, mas de um mero direcionamento, respeitando e considerando a vasta abrangência epistemológica e fenomenológica que as constitui. O que quero dizer com isso? Que devemos considerar, em nossa análise sobre as diferentes perspectivas da verdade, os vários aspectos, que Herman Dooyeweerd chamou de modais[5], que compõem a realidade.
     
Tal análise tem como base duas premissas: A primeira é a de que as respostas das perguntas apontadas nos pontos 1 e 2 nos levam a Deus. E a segunda é a de que a verdade preconizada por Jesus não é um conceito, mas uma pessoa: Ele mesmo (Evangelho segundo João 14:6). Elucidarei sobre elas em outra oportunidade.
     
Não são as circunstâncias externas que nos fazem livres. Liberdade consiste em um indivíduo não ser escravo de si mesmo. É possível você ser livre estando confinado a uma prisão, e estar preso em cadeias interiores (seja através da culpa, do ressentimento, da angústia, de traumas do passado, do pecado) vivendo em um “paraíso”. A busca frenética do ser humano por liberdade é a suma demonstração de que ele não é livre. Pois buscamos apenas aquilo que ainda não possuímos. Tal desespero, aliado à obsessão aos nossos instintos e desejos, leva o ser humano a construir asas repletas de cera. Analisando e contextualizando a segunda proposta feita pelo Tentador a Jesus, durante a quarentena de Jesus no deserto, elucidei no livro Culto racional:

Esta segunda proposta é feita a nós hoje através do existencialismo, filosofia que apregoa o “salto de fé”. Ou seja, conforme vimos, é a conduta humana que abandona a razão e que se pauta unicamente pelos seus instintos e impulsos, sentido de sua existência. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche define como falsa moral ou moral escrava qualquer artifício usado para controlar ou coibir os impulsos e instintos humanos. É a morte da moralidade. Neste mesmo mote, o filósofo francês Jean-Paul Sartre foi o mentor intelectual da revolução contracultura, em 1968, que apregoou o lema ‘sexo, drogas e rock´n roll’. O que gerou o crescimento vertiginoso da sexualidade juvenil e do consumo de drogas ilícitas.”[6]


A jornada rumo ao “sol da liberdade em raios fúlgidos” não gera outra coisa a não ser a queda fatal. Foi o que elucidou, há milênios, o sábio Salomão: “Há caminhos que ao homem parecem direitos, mas no fim são caminhos de morte” (Provérbios 16:25). Não voe o voo de Ícaro!




[1] Para saber mais informações sobre a diferença entre instinto e desejo, leia o livro Culto racional, de minha autoria.
[2] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia do moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das letras, 2009, p. 45.
[3] Para maiores detalhes, veja o livro Cristianismo puro e simples, de C. S. Lewis.
[4] TOZER, A. W. Dia a dia com Tozer. Curitiba: Publicações Pão Diário, 2016, p. 101.
[5] DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento: Estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento científico. São Paulo: Hagnos, 2010, p. 53-54.
[6] VIANA, Matheus. Culto racional: A interação entre as razões divina e humana. Ribeirão Preto: Legis Summa, 2016, p. 131.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

O brilho de Sua face

Matheus Viana    


Jesus afirmou que Seus discípulos são a luz do mundo (Evangelho segundo Mateus 5:14). Se você se considera um cristão, eis o seu atributo. Todavia, tal afirmação não se refere a uma característica meramente identitária. Ela define o nosso ethos (ética) propositivo (sentido da vida) e missionário (mandato cultural). E se encaixa na advertência do apóstolo Paulo de que o cristão deve viver para a Glória de Deus (I Coríntios 10:31, Colossenses 3:23). Foi nesta esteira que Tomás de Kempis afirmou:


“Quem possui a verdadeira e perfeita caridade não busca a si em coisa alguma, mas seu único desejo é que em tudo se realize a glória de Deus”.1


Mas, convenhamos, “viver para a Glória de Deus”, para muitos, não passa de um clichê deveras abstrato, uma expressão linguística pertencente ao vocabulário do “gueto” cristão (ou melhor, “gospel”) e não de um conceito doutrinário absoluto, objetivo. Contudo, Jesus conceituou de forma plena este ethos ao afirmar: “Assim, brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que estás nos céus” (Evangelho segundo Mateus 5:16). Impossível ser mais claro.

Sendo assim, podemos afirmar o óbvio: ser cristão é revelar os atributos comunicáveis de Deus através de nossas ações, a fim de que as pessoas ao nosso redor O conheçam e O glorifiquem (Cf. Romanos 1:20). Este é o chamado elucidado pelo escritor da carta aos hebreus (12:1). Nesta jornada, devemos considerar o fato de que não somos capazes de emitir luz própria devido à nossa natureza terrena (Colossenses 3:5). Por isso o apóstolo João afirmou: “Deus é luz, nele não há treva nenhuma” (I João 1:5). Jesus, o Deus Filho em forma humana, foi a personificação desta Luz (Evangelho segundo João 1:4-5, 14; Colossenses 2:9). Conclusão: a Luz que somos chamados a refletir refere-se aos traços do caráter da vida de Jesus Cristo (I João 2:6, II Coríntios 4:10).  
     
Eis o desafio. Juntamente com ele, surge a questão: O que significa, na prática, manifestar a vida de Jesus Cristo? Pensar, sentir e agir de acordo com a Sua Palavra (Cf. Evangelho segundo João 5:39, Efésios 2:20-21). Para entendermos isso, analisemos o episódio em que o rosto de Moisés resplandeceu um brilho tão sublime, que foi necessário que ele colocasse um véu (Êxodo 34:29-35).
     
A face brilhante de Moisés foi a demonstração física da proposta espiritual feita ao cristão, considerado o fato de que somos chamados a não usarmos, como fez Moisés, um véu que ofuscasse tal brilho (II Coríntios 3:12-18). O rosto de Moisés brilhou após descer do monte Sinai com as duas tábuas da aliança nas mãos. Antes de ter seu rosto brilhando, Moisés foi o mediador da aliança de Deus com o povo hebreu.

Não há como manifestar a Luz de Cristo sem ter uma aliança com Ele. No contexto em que Moisés viveu, a aliança com Deus era feita por meio de Sua Palavra (vontade, lei). A Escritura descreve: “Disse o SENHOR a Moisés: ‘Escreva essas palavras; porque é de acordo com elas que faço uma aliança com você e com Israel” (Êxodo 34:27). Note que Moisés tornou-se mediador da aliança de Deus com o povo após O SENHOR firmar uma aliança particular com ele.
     
A expressão “Disse o SENHOR a Moisés” é emblemática. O texto hebraico é: Vayomer YHWH… Ou seja, é a mesma expressão que aparece em Gênesis 1:3 (vayomer Elohim) que descreve como Deus criou todas as coisas e também em Gênesis 1:28, quando Deus estabeleceu ao homem e à mulher o propósito e sentido de suas existências. Resumindo, seus ethos existenciais. A diferença é que, ao invés de Elohim, aparece o tetragrama que descreve o nome que Deus revelou a Moisés (Êxodo 3:14), que é lido como Adonai (SENHOR) ou HaShem (O Nome), onde ambas expressões são referências à Sua autoridade, soberania e magnitude. 
     
Aqui vemos traços da revelação progressiva de Deus, que Se revelou como o EU SOU. Podemos ver, então, que a mesma Palavra que deu origem a todas as coisas criadas e que revelou o ethos humano é que propõe a aliança com Moisés. Ao receber as Palavras do SENHOR, Moisés, como mediador da aliança (Lei) “ficou ali com o SENHOR quarenta dias e quarenta noites, sem comer pão e sem beber água. E escreveu nas tábuas as palavras da aliança: os Dez Mandamentos” (Êxodo 34:28).

Jesus, como o mediador da Nova Aliança (Evangelho segundo Marcos 14:24), também realizou quarentena semelhante (Evangelho segundo Mateus 4:1-11) após o Espírito Santo vir sobre Ele e receber do Pai a sentença de que É O Filho Amado em que Ele se compraz (Mateus 3:13-17). Após prevalecer sobre a quarentena e as tentações no deserto, começou Seu ministério de ensino por toda a Galileia e pregou o Sermão da Montanha, que é uma releitura da Lei mosaica e, consequentemente, do ethos de Deus ao homem (Evangelho segundo Mateus 5:21). Sobre isso, analisaremos em outra ocasião. 
      
Você já parou para pensar o porque que a face (rosto) de Moisés brilhou e não outra parte do corpo? Rosto é, de certa forma, a demonstração de nossa personalidade. Veja que a maioria dos documentos pessoais, necessários para testificar nossa identidade, exige uma foto do… rosto. Por que não é exigida uma foto do braço, da mão (já que as impressões digitais, em algumas ocasiões, são exigidas) ou de qualquer outro membro? Refletindo sobre o tema rosto humano, Roger Scruton afirmou:


“Meu rosto também é aquela parte de mim a que outras pessoas dirigem sua atenção, sempre que elas se dirigem a mim como ‘você’. Estou atrás do meu rosto e, contudo, estou presente nele, falando e olhando através dele para um mundo de outros”.2


O rosto é a parte de nosso corpo que mais utilizamos em nossa interação exterior, transcendental. Sobre isso, Scruton elucidou:


“Ver um rosto como rosto significa ir de algum modo além dos traços físicos e chegar a um todo que surge deles, assim como uma melodia surge de uma sequência de sons modulados, e que é, como bem diz Levinas, ao mesmo tempo visitação e transcendência”.3


Nossos principais órgãos senso-perceptivos (olhos, nariz e boca) situam-se no rosto. Jesus afirmou que os nossos olhos são a candeia do corpo (Evangelho segundo Mateus 6:22-23). De acordo com tal afirmação, são o que eles veem que determina a condição de todo o corpo. Foi o olhar para o fruto proibido que gerou na mulher a cobiça pelo ilícito (Gênesis 3:5). Não foi em vão que o escritor da carta aos hebreus advertiu: “tendo os olhos fitos em Jesus, autor e consumador da nossa fé” (Hebreus 12:2). 
     
Não podemos deixar de considerar a importância da fala. Conforme vimos anteriormente, o universo, e todas as coisas naturais e sobrenaturais que nele existem foram criados pelo “Disse Deus”. A primeira interação de Deus com o homem, em sua condição de ser vivente, foi a instrução, ou seja, a Palavra falada (Cf. Gênesis 1:28). Claro que a “boca” de Deus, bem como o Seu dizer não são equivalentes aos dos humanos. Embora a Bíblia afirme que Deus possui rosto (Gênesis 3:8, 17:1, Êxodo 33:20, Salmo 13:1), não é como o rosto humano. No entanto, Jesus foi e É o Deus Filho que se fez homem (Filipenses 2:7, João 1:14). Ele foi a plena manifestação da face, dos olhos e da boca de Deus (Evangelho João 14:9, Colossenses 1:15-16). 
     
Os ouvidos estão próximos ao rosto. Ouvir possui uma importância crucial para o nosso relacionamento com Deus e com o próximo. Pois a fé vem pelo ouvir a Palavra (Romanos 10:17). Antes de Deus estabelecer, através de Moisés, os dois mandamentos que resumem toda a Lei (Deuteronômio 6:5, Marcos 12:28-30), Ele ordenou: “Ouça, ó Israel, O SENHOR, o nosso Deus, é o único Deus” (Deuteronômio 6:4). Foi baseado neste princípio que Jesus, ao contar Suas parábolas e emitir Suas mensagens às sete igrejas da Ásia, disse: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (Evangelho segundo Mateus 13:9, Apocalipse 2:7).  Embora aqui Jesus não estivesse falando dos ouvidos naturais, eles também são abarcados pelo ensino escriturístico. O processo de degradação humana começou quando a mulher, juntamente com o homem, ouviu a ardilosa proposta da serpente e a considerou como algo válido. Seu coração absorveu a mentira que seus ouvidos ouviram. A catástrofe foi total.      
     
Conforme exortou o apóstolo João, um verdadeiro seguidor de Jesus deve andar como Ele andou (I João 2:6). Ter nosso rosto resplandecente consiste em contemplarmos Jesus, através de Sua Palavra, com os nossos olhos naturais e espirituais (Hebreus 12:2), sermos ouvintes e praticantes de Sua Palavra (Tiago 1:22) a fim de falarmos do que está cheio o nosso coração (Evangelho segundo Mateus 12:34). Creio que Jesus, ao fazer tal elucidação, tinha em mente o Salmos 119:11: “Guardo em meu coração as tuas Palavras, para não pecar contra ti”.
     
O fato do rosto de Moisés ter brilhado foi o efeito de toda a sua vida (coração, alma e forças) ter sido inundada pela Palavra de Deus, fundamento de Sua aliança com ele. Não foi em vão que o sábio Salomão preconizou que o coração alegre aformoseia o rosto (Provérbios 15:13). O rosto sincero reflete o que está no coração. Em outras palavras: Se quisermos saber o que está no coração de uma pessoa, olhe bem em seu rosto. Ainda que o ser humano tenha a habilidade de dissimular sentimentos com o rosto a fim de enganar seu próximo, uma pessoa em sã consciência sabe discernir quando um rosto, ainda que expressando alegria, pertence a um indivíduo triste. A alegria é opaca e, conforme preconiza o adágio popular, “o sorriso é amarelo”. Sobre isso, Scruton afirmou:


“Quando leio um rosto, estou de algum modo tomando conhecimento da maneira como uma pessoa aparece para outra”.4


O rosto de Moisés brilhou por ser ele a parte do corpo que revela quem somos aos outros.    

Considerando tudo o que foi falado até aqui, não podemos nos esquecer de que, em Sua transfiguração, o rosto de Jesus foi transformado (Evangelho segundo Lucas 9:29). Neste episódio, Moisés viu a face que pediu para Deus lhe mostrar, o que lhe foi negado naquela ocasião (Êxodo 33:20). Na transfiguração de Jesus, seu pedido foi atendido. Tommy Tenney elucidou sobre este episódio em seu livro Os caçadores de Deus.
     
Assim como o rosto de Moisés, o mediador da Antiga Aliança, resplandeceu, o rosto de Jesus, o mediador da Nova Aliança, também resplandeceu. Não foi apenas o rosto, como também as suas roupas. Tal fato demonstra que a transformação do rosto de Jesus refere-se a revelação de Deus na plenitude de Sua pessoa. Interessante notar que esta gloriosa manifestação aconteceu diante de Moisés, que representa a Lei (Torah), e de Elias, que representa Os profetas (Nabin). Ambos juntos são a plenitude de toda a Antiga Aliança (Evangelho segundo Mateus 22:40).

Desta forma, podemos ver que o rosto de Jesus foi transformado pelo fato de Sua vida estar plenamente alicerçada pela Palavra de Deus (Evangelho segundo Mateus 5:17), à semelhança de Moisés, cujo rosto resplandeceu por estar aliançado com Deus por meio de Sua Palavra, e munido dela através das duas tábuas em suas mãos. Mãos, na Escritura, fala de ação. Foi neste mote que Jesus afirmou: “Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus” (Evangelho segundo Lucas 9:62). Portanto, nossas ações, os frutos de nossas mãos, devem estar fundamentadas pela Palavra de Deus, alicerce de Sua aliança a nós. Foi baseado neste princípio que Davi declarou: “Quem poderá subir ao monte do SENHOR? Quem poderá entrar em seu Santo Lugar? Aquele que tem mãos limpas (ações) e coração puro (intenções)(Salmo 24:3-4).

Ser a luz do mundo implica em termos o nosso rosto (em todos os seus pormenores) refletindo o brilho da Glória de Jesus Cristo, que é a Luz do Evangelho (II Coríntios 4:4). É sobre isso que o apóstolo Paulo elucidou ao dizer: “E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando como por espelho a Glória do Senhor, somos transformados de glória em glória, conforme a sua imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (II Coríntios 3:18). Rosto desvendado é o nosso próximo tema de análise. Até lá!

1 KEMPIS, Tomás de. Imitação de Cristo. Franca-Jandira: Principis, 2019, p. 36.
2 SCRUTON, Roger. O rosto de Deus. São Paulo: É Realizações. 2015, p. 112.
3 Ibid, p. 111.
4 Ibid, p. 114.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Os fundamentos da relevância bíblica

 Matheus Viana    

É possível que a urgente necessidade da abordagem cristã em uma sociedade secularizada deturpe o caráter doutrinário de muitos cristãos em vários aspectos. Minha análise é sobre duas situações coesas e complementares. A primeira é o fato de que, no afã de exercerem o mandato cultural, muitos descem ao “vale” da guerra cultural desprovidos do devido armamento. Estão despreparados por não serem integralmente conformados à fé cristã (Cf. Romanos 12:2, II Coríntios 10:5). 

A segunda é que, por estarem despreparados, desconsideram a importância de uma teologia sólida, satisfatoriamente firmada na doutrina apostólica. Já ouvi alguns intelectuais afirmando que enquanto vários cristãos destilam e desfilam teses e temas teológicos no espaço público, a cultura contemporânea sucumbe diante da hegemonia secular, bem como as pessoas que por ela estão subjugadas.

Esta denúncia procede. Contudo, tal verdade não anula a importância do ensino da doutrina correta visando, obviamente, sua prática (Atos 1:1, Tiago 1:22). Ser cristão não consiste em ser militante de uma ideologia e/ou partido político, mas seguir a Cristo. O que implica em vivermos com todo o nosso coração, alma, intelecto e forças para que a vontade de Deus seja estabelecida na terra (Cf. Mateus 6:9-10. 16:18). Conforme o próprio Jesus preconizou: “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou a fazer a boa obra” (João 4:24).
     
No seio deste dilema, floresce o desejo de sermos relevantes. O que faz brotar a seguinte questão: o que é ser relevante? De acordo com o atual senso comum, é ter muitos seguidores nas redes sociais, ser famoso ou, no contexto propriamente cristão, ser líder de uma denominação eclesiástica com muitos membros e uma grande infraestrutura material. Todavia, a relevância bíblica não é isso. Ao olharmos as condutas de Jesus e de Sua Igreja em seus primeiros séculos, vemos que altos índices demográficos e infraestrutura ampla não consistem, necessariamente, em relevância.
     
Vejamos o contraste presente na vida de Jesus sobre a terra entre multidão e discípulos. Da grande multidão que o seguia - na casa dos milhares -, poucas centenas permaneceram fiéis, após Sua morte, ressurreição e ascensão, em segui-Lo e disseminar o Seu legado. Resumindo, a grande multidão não era relevante. Na última Festa dos Tabernáculos a qual Jesus participou, muitos dos Seus discípulos O abandonaram ao ouvirem o Seu discurso (João 6:66). Números não redundam, por eles mesmos, em relevância.
     
O pequeno grupo composto por pessoas que permaneceram em Jerusalém (Atos 1:12-15), conforme Jesus ordenara aos Seus discípulos mais próximos (Atos 1:8), foi o início da Igreja sobre a terra. Ela foi relevante (Atos 2:47). Mas na medida em que cresceu, a relevância diminuiu ao ponto de Deus permitir uma perseguição a fim de que os cristãos fossem dispersos e o Evangelho disseminado por toda a terra (Atos 8:1). Em outras palavras, para que a Igreja voltasse a ser como foi no início (Atos 8:4-8). O que fazia a Igreja ser relevante? Permanecer na doutrina de Jesus e, consequentemente, dos apóstolos (Atos 2:42). O crescimento era resultante da relevância, e não o contrário. A “receita” não mudou com o tempo.
     
A abordagem ao tema relevância é pertinente. O cristão genuíno sente, como uma chama em seu interior, a necessidade de que sua devoção seja relevante. Diante deste dilema, há a tendência de aplicar a este quesito um significado conformado à cultura contemporânea, distante do seu original. E isto implica em dois riscos: 1) - o de não sermos uma Igreja relevante pensando ser (Apocalipse 3:17-18); 2) - pensarmos que não estamos sendo relevantes quando, na verdade, somos (Apocalipse 3:8). Na primeira situação, o ufanismo escamoteia e, com isso, impede a verdadeira relevância. Na segunda, a dúvida consome, aos poucos, as nossas forças, conduzindo-nos ao desânimo e à desistência. Eis, portanto, a questão que não quer calar: O que é, de fato, ser relevante? A resposta pode ser encontrada em Eclesiastes 11:1: “Lança o teu pão sobre as águas, pois depois de muitos dias, o acharás...”.
     
Para que possamos compreender a mensagem contida nesta advertência de Salomão, precisamos considerar os símbolos presentes no texto com seus respectivos significados. Pão fala da provisão de Deus. Em Êxodo 28:30, vemos que sobre a mesa que ficava junto à Arca da aliança, eram colocados os pães da proposição, que faziam alusão à provisão de Deus ao Seu povo durante o êxodo rumo à terra prometida (Êxodo  16:34), como consequência da manifestação de Sua Presença. Fazendo esta alusão, Jesus afirmou: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu” (João 6:51). Ou seja, Ele foi (e É) a verdadeira provisão de Deus a nós. 
Assim, podemos ver que este pão que devemos lançar sobre as águas fala do Pão vivo que veio do céu, a plena manifestação e provisão de Deus aos homens (João 1:14, Filipenses 2:6-7, Colossenses 2:9). Conforme Ele mesmo afirmou, as Escrituras testificam Dele (João 5:39). No entanto, lançar o pão implica na proclamação do Evangelho de Cristo, consequente de andarmos em Seu caminho (João 14:6), diante de Sua face (Gênesis 17:1, Mateus 5:48).
     
Este pão deve ser lançado em um lugar específico: “sobre as águas...”. Águas, na Escritura, simbolizam o fluir (manifestação) da presença de Deus. Vemos, por exemplo, em Ezequiel 47 a descrição das águas que inundaram todo o Templo que o profeta visualizou em sua experiência transcendental com Deus. No livro de Apocalipse, lemos a descrição da visão que o apóstolo João teve: “Então o anjo me mostrou o rio da água da vida que, claro como o cristal, fluía do trono de Deus e do cordeiro” (Apocalipse 22:1).
     
Podemos ver, então, os dois elementos cruciais para um cristianismo relevante: pregar o Evangelho de Jesus Cristo no fluir da manifestação de Deus por nosso intermédio. É evidente a coesão necessária entre erudição e devoção. Erudição na Palavra de Deus (Pão/Escrituras) e a consequentente devoção que redunda em prática (Cf. Tiago 1:22), ou seja, no fluir da manifestação de Deus através de nossas ações fundamentadas em Sua vontade. Não foi em vão que Deus, através de Seu anjo, deu pão e água para que o profeta Elias se alimentasse e saísse da irrelevância do claustro em que se encontrava (I Reis 19:6-8).
     
Não há como lançar o pão sem recebê-lo primeiramente (Mateus 6:11). Questão de causa e efeito. Que tipo de pão você tem recebido? O pão colocado na mesa que ficava junto à Arca era asmo, sem fermento. O mesmo pão que deveria ser feito e comido pelos hebreus durante a Páscoa (Êxodo 12:15, 23:15). Elucidando sobre este aspecto da Lei aos cristãos em Corinto, o apóstolo Paulo redarguiu: “Vocês não sabem que um pouco de fermento leveda toda a massa?”.  O que isto significa? Que o Evangelho não pode ser levedado por nenhum tipo de fermento. Ou melhor, não pode ser conformado a filosofias ou ideologias humanas (Colossenses 2:9), tampouco às nossas vontades. Conforme preconizou o apóstolo Pedro: “Antes de mais nada, saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito Santo” (II Pedro 1:20-21).
     
Uma vez que somos fiéis em lançar o nosso pão sobre as águas, eles retornarão. Isso fala do cumprimento do propósito da vontade de Deus. Foi sobre isso que Deus decretou através do profeta Isaías: “Assim será a palavra que sai da minha boca, não voltará vazia, mas fará aquilo que me apraz e prosperará no propósito pelo qual eu a enviei” (Isaías 55:11). Pois em Deus nosso trabalho não é vão (I Coríntios 15:58). Como podemos ver, a relevância propriamente dita não é obra nossa, mas do Espírito Santo através do nosso trabalho. Da mesma forma que, na criação, o Espírito pairava sobre a face das águas (Gênesis 1:2), Ele paira sobre as águas do fluir da Presença de Deus, onde se encontram o nosso Pão, fazendo com que ele volte cumprindo a Sua vontade. É certo que, mesmo depois de muitos dias, o encontraremos.

Leia também: O pão da presença.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Saldo devedor

 Matheus Viana

Em uma sociedade devota ao senso comum do ufanismo travestido de autoconfiança, somos confrontados pela sentença proferida pelo apóstolo Paulo sobre si: “Sou devedor...” (Romanos 1:14). Quanto mais aprendemos sobre Cristo, torna-se mais claro o fato de que devedor é a nossa imutável condição. Há quem retruque tal afirmação citando o conhecido texto de Romanos 8:1: “Já não há condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus”. Esta declaração, por sua vez, confirma a veracidade da minha tese e invalida todas as tentativas de refutação. Através dela, o apóstolo Paulo mostrou a premissa que deve fundamentar a nossa conduta como cristãos. Pois fomos salvos (livres de toda condenação) com um propósito: o de fazer boas obras[1]. Ser salvo para fazer boas obras é diametralmente oposto à prática de boas obras para a obtenção da salvação. A obra de Jesus é completa. E tem uma finalidade. Foi neste mote que o apóstolo Paulo advertiu: “Desenvolvei com temor e tremor a vossa salvação” (Filipenses 2:12).
     
Fomos libertos, pelo sangue de Cristo derramado na cruz, da escravidão do pecado[2]. No entanto este ato, ao mesmo tempo em que foi libertador, sacramentou, de forma definitiva, nosso saldo devedor. Fomos comprados pela obra de Jesus[3]. Ou seja, deixamos de ser devedores do maligno para sermos devedores de Jesus Cristo. Houve apenas uma substituição de credores. Devemos considerar, todavia, a diferença do caráter de cada um destes credores: o Adversário é enganador[4] e usurpador[5]. Cristo, por Sua vez, é a luz dos homens[6], o Caminho, a Verdade e a Vida[7] e, apesar de ter toda autoridade nos céus e na terra[8] por ser o Criador de tudo[9], nos chama de amigos[10].
     
Era este senso devedor que orientava a vida do apóstolo Paulo. Sua consciência era tomada a tal ponto que ele se considerava como um doulos (escravo) de Jesus Cristo[11]. Ele conhecia o salmo que diz: “Entrai pelas suas portas com ações de graças” (Salmos 100:4). Quando adquirimos, pela obra do Espírito Santo em nós, a consciência da magnitude da obra de redenção realizada por Jesus em nosso favor, não temos outra opção a não ser a de submeter nossa vida a Ele em obediência à Sua soberana vontade. Foi por este motivo que ele afirmou: “Não sou mais eu quem vivo, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2:20). Ao recebermos algo de valor, independente qual seja, surge em nosso coração um senso de dívida de retribuirmos a dádiva recebida. No caso da Graça de Deus, também manifesta na cruz de Jesus Cristo, não há como retribuir de maneira simétrica e justa. Sempre ficaremos devendo­-Lhe.
     
Assim, podemos deduzir que Cristianismo consiste em nossa tentativa de retribuirmos a Graça que Deus previamente nos concedeu, conscientes de que não conseguiremos. Eis a loucura do Evangelho, também chamado de mensagem da cruz (I Coríntios 1:8). E esta tentativa consiste, conforme advertiu o próprio Jesus, em negarmos a nós mesmos e tomarmos a nossa cruz[12]. O apóstolo Paulo, certamente fundamentado no Salmo 100:4, descreve estas ações de graças como a entrega de nossos corpos (extensão da entrega de todo o nosso ser, pois um judeu considera o ser humano em sua integralidade) como sacrifícios vivos, santos e agradáveis a Deus e chama este ato de culto racional[13]. Em outras palavras: ser discipulado por Jesus Cristo através de Sua Palavra e de Sua Igreja. Elucidando sobre este aspecto, o pastor e teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) afirmou:

“Os discípulos de Jesus, por causa dele, vivem na renúncia aos próprios direitos. (...) Se ainda fizessem questão, mesmo depois de terem abandonado tudo por causa dele, de continuar apegado a essa posse, isto é, a seu direito individual, já teriam abandonado o discipulado”.[14]

Eis o dilema. Estamos inseridos em uma turbulenta dialética que se dá entre duas leis elucidadas pelo apóstolo Paulo: a Lei de Deus, também chamada de Espírito de vida, cumprida em Jesus Cristo[15], e a lei do pecado e da morte[16]. O entendimento equivocado sobre a Lei de Deus pode ocasionar na submissão inconsciente à lei do pecado e da morte. Algo comum na Igreja contemporânea. Há sobre o imaginário coletivo cristão uma espécie de dispensacionalismo que divide a História em: a era da Lei e a era da Graça. Tal dicotomia baseia-se em uma intepretação equivocada de Romanos 6:14. Para os seus adeptos, Cristo cumpriu toda a Lei e, por isso, somos livres para fazermos o que quisermos. Doutrina conhecida, grosso modo, como antinomismo[17]. Foi esta que Bonhoeffer nomeou de graça barata.

“A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento do pecador, é o batismo sem disciplina eclesiástica, é a comunhão sem confissão de pecados, é a absolvição sem convicção pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, é a graça sem cruz, é a graça sem Jesus Cristo vivo e encarnado”.[18]

Um dos fundamentos da ortodoxia cristã - que nada mais é do que a sistematização do que Jesus chamou de vontade[19] e de mandamentos do Pai[20], e o apóstolo Paulo chamou de boa, perfeita e agradável vontade de Deus[21] e de fundamento dos apóstolos e profetas, tendo Jesus como a Pedra angular[22] - é o de que, embora Jesus Cristo tenha cumprido a plenitude da Lei de Deus, o aspecto moral da Lei ainda permanece. O próprio Jesus deixou isso bem claro no sermão na montanha[23].

No entanto, há uma espécie de marcionismo moderno que ignora o Antigo Testamento, relegando-o a mitos judaicos e crendo que o Novo testamento ultrapassou e anulou o Antigo. Ledo engano. Todo o Novo Testamento foi escrito com base no Antigo. O próprio Jesus usou o Antigo Testamento para testificar sobre Sua vida e obra[24]. O Antigo Testamento (Tanach) foi a Bíblia que Jesus e os apóstolos usaram. Assim, ele é um dos pilares da ortodoxia cristã. O outro pilar é o Novo Testamento. Philip Yancey nos traz a seguinte advertência:

“Quando lemos o Antigo Testamento, estamos lendo a Bíblia que Jesus lia e usava. Trata-se das orações que Jesus fazia, dos poemas que memorizava, dos cânticos que entoava, das histórias de ninar que ouvia quando criança, das profecias nas quais refletia. Ele reverenciava cada ‘iota ou (...) til’ da Bíblia Hebraica. Quando mais entendemos o Antigo Testamento, mais entendemos Jesus. Como disse Martinho Lutero: ‘O Antigo Testamento é um testamento de Cristo, o qual ele pediu que fosse aberto após a sua morte e lido e proclamado em todos os lugares por intermédio do evangelho”.[25]

Como podemos ver, o Novo Testamento complementa o Antigo Testamento, mas não anula-o. O falso dogma de que o Novo Testamento anula o Antigo não é uma característica peculiar da Igreja atual. A Igreja primitiva também foi acometida por ela. Judas (o irmão do Senhor Jesus), em sua carta à Igreja em Jerusalém, registrou: “... senti que era necessário escrever-lhes insistindo que batalhassem pela fé de uma vez por todas confiada aos santos. Pois certos homens, cuja condenação já estava sentenciada há muito tempo, infiltraram-se dissimuladamente no meio de vocês. Estes são ímpios, e transformam a graça de nosso Deus em libertinagem e negam Jesus Cristo, nosso único e soberano Senhor”. (Judas 3-4). Qualquer semelhança não é mera coincidência. Esta fé confiada aos santos nada mais é do que a doutrina dos apóstolos e dos profetas, tendo Jesus como a Pedra angular, citada pelo apóstolo em sua carta aos efésios. Veja que não se trata de duas doutrinas distintas, mas da síntese entre ambas como uma só. Como podemos ver, o cerne desta prática vil, denunciada por Judas, é o pensamento equivocado, alicerçado na premissa de que não somos mais devedores de coisa alguma. E sim que somos beneficiários que devem usufruir das bênçãos conquistadas por Jesus, disponíveis nas regiões celestes[26] sem nenhum senso de responsabilidade. Em outras palavras, chamam libertinagem de liberdade. Se esquecem do que disseram os apóstolos Paulo e Pedro:

“Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas não usem a liberdade para dar ocasião à vontade da carne; ao contrário, sirvam uns aos outros mediante o amor”.
                                                                  (Gálatas 5:13)

“Vivam como pessoas livres, mas não usem a liberdade como desculpa para fazer o mal; vivam como servos (doulos – escravos) de Deus”.
(I Pedro 2:16)

Resumindo e finalizando, devemos viver nossa liberdade, conquistada em Jesus Cristo, como Seus escravos e, por isso, devedores para sempre.


[1] Efésios 2:9-10.
[2] Romanos 6:5-7, Efésios 1:7, Colossenses 1:13-14, Hebreus 9:28.
[3] I Coríntios 6:20.
[4] Evangelho segundo João 8:44, II Coríntios 11:3.
[5] II Tessalonicenses 2:4.
[6] Evangelho segundo João 1:4-9.
[7] Evangelho segundo João 14:6.
[8] Evangelho segundo Mateus 28:18.
[9] Evangelho segundo João 1:1-3, Colossenses 1:16-17.
[10] Evangelho segundo João 15:14-15.
[11] Romanos 1:1.
[12] Evangelho segundo Mateus 16:24.
[13] Romanos 12:1.
[14] BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Paulo: Mundo Cristão, 2017, p. 107.
[15] Evangelho segundo Mateus 5:17, Romanos 10:4
[16] Romanos 8:2.
[17] Sistema doutrinário que preconiza, grosso modo, que a Graça de Deus, manifesta em Jesus, extingue qualquer dever de cumprir a Lei. Ou seja, anula, por completo, as implicações de qualquer aspecto da Lei de Moisés na vida do cristão.
[18] BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Paulo: Mundo Cristão, 2017, p. 20.
[19] Mateus 6:9-10
[20] João 14:21-23
[21] Romanos 12:2
[22] Efésios 2:20-22
[23] Evangelho segundo Mateus 5:18-20.
[24] Evangelho segundo João 5:39, Lucas 4:14-20, 24:27, 44-45.
[25] YANCEY, Phillip. A Bíblia que Jesus lia. São Paulo: Vida, 2000, p. 23.
[26] Efésios 1:3