Matheus Viana
Jesus afirmou que Seus discípulos são a luz do mundo (Evangelho segundo Mateus 5:14). Se você se considera um cristão, eis o seu atributo. Todavia, tal afirmação não se refere a uma característica meramente identitária. Ela define o nosso ethos (ética) propositivo (sentido da vida) e missionário (mandato cultural). E se encaixa na advertência do apóstolo Paulo de que o cristão deve viver para a Glória de Deus (I Coríntios 10:31, Colossenses 3:23). Foi nesta esteira que Tomás de Kempis afirmou:
“Quem possui a verdadeira e perfeita caridade não busca a si em coisa alguma, mas seu único desejo é que em tudo se realize a glória de Deus”.1
Mas, convenhamos, “viver para a Glória de Deus”, para muitos, não passa de um clichê deveras abstrato, uma expressão linguística pertencente ao vocabulário do “gueto” cristão (ou melhor, “gospel”) e não de um conceito doutrinário absoluto, objetivo. Contudo, Jesus conceituou de forma plena este ethos ao afirmar: “Assim, brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que estás nos céus” (Evangelho segundo Mateus 5:16). Impossível ser mais claro.
Sendo assim, podemos afirmar o óbvio: ser cristão é revelar os atributos comunicáveis de Deus através de nossas ações, a fim de que as pessoas ao nosso redor O conheçam e O glorifiquem (Cf. Romanos 1:20). Este é o chamado elucidado pelo escritor da carta aos hebreus (12:1). Nesta jornada, devemos considerar o fato de que não somos capazes de emitir luz própria devido à nossa natureza terrena (Colossenses 3:5). Por isso o apóstolo João afirmou: “Deus é luz, nele não há treva nenhuma” (I João 1:5). Jesus, o Deus Filho em forma humana, foi a personificação desta Luz (Evangelho segundo João 1:4-5, 14; Colossenses 2:9). Conclusão: a Luz que somos chamados a refletir refere-se aos traços do caráter da vida de Jesus Cristo (I João 2:6, II Coríntios 4:10).
Eis o desafio. Juntamente com ele, surge a questão: O que significa, na prática, manifestar a vida de Jesus Cristo? Pensar, sentir e agir de acordo com a Sua Palavra (Cf. Evangelho segundo João 5:39, Efésios 2:20-21). Para entendermos isso, analisemos o episódio em que o rosto de Moisés resplandeceu um brilho tão sublime, que foi necessário que ele colocasse um véu (Êxodo 34:29-35).
A face brilhante de Moisés foi a demonstração física da proposta espiritual feita ao cristão, considerado o fato de que somos chamados a não usarmos, como fez Moisés, um véu que ofuscasse tal brilho (II Coríntios 3:12-18). O rosto de Moisés brilhou após descer do monte Sinai com as duas tábuas da aliança nas mãos. Antes de ter seu rosto brilhando, Moisés foi o mediador da aliança de Deus com o povo hebreu.
Não há como manifestar a Luz de Cristo sem ter uma aliança com Ele. No contexto em que Moisés viveu, a aliança com Deus era feita por meio de Sua Palavra (vontade, lei). A Escritura descreve: “Disse o SENHOR a Moisés: ‘Escreva essas palavras; porque é de acordo com elas que faço uma aliança com você e com Israel” (Êxodo 34:27). Note que Moisés tornou-se mediador da aliança de Deus com o povo após O SENHOR firmar uma aliança particular com ele.
A expressão “Disse o SENHOR a Moisés” é emblemática. O texto hebraico é: Vayomer YHWH… Ou seja, é a mesma expressão que aparece em Gênesis 1:3 (vayomer Elohim) que descreve como Deus criou todas as coisas e também em Gênesis 1:28, quando Deus estabeleceu ao homem e à mulher o propósito e sentido de suas existências. Resumindo, seus ethos existenciais. A diferença é que, ao invés de Elohim, aparece o tetragrama que descreve o nome que Deus revelou a Moisés (Êxodo 3:14), que é lido como Adonai (SENHOR) ou HaShem (O Nome), onde ambas expressões são referências à Sua autoridade, soberania e magnitude.
Aqui vemos traços da revelação progressiva de Deus, que Se revelou como o EU SOU. Podemos ver, então, que a mesma Palavra que deu origem a todas as coisas criadas e que revelou o ethos humano é que propõe a aliança com Moisés. Ao receber as Palavras do SENHOR, Moisés, como mediador da aliança (Lei) “ficou ali com o SENHOR quarenta dias e quarenta noites, sem comer pão e sem beber água. E escreveu nas tábuas as palavras da aliança: os Dez Mandamentos” (Êxodo 34:28).
Jesus, como o mediador da Nova Aliança (Evangelho segundo Marcos 14:24), também realizou quarentena semelhante (Evangelho segundo Mateus 4:1-11) após o Espírito Santo vir sobre Ele e receber do Pai a sentença de que É O Filho Amado em que Ele se compraz (Mateus 3:13-17). Após prevalecer sobre a quarentena e as tentações no deserto, começou Seu ministério de ensino por toda a Galileia e pregou o Sermão da Montanha, que é uma releitura da Lei mosaica e, consequentemente, do ethos de Deus ao homem (Evangelho segundo Mateus 5:21). Sobre isso, analisaremos em outra ocasião.
Você já parou para pensar o porque que a face (rosto) de Moisés brilhou e não outra parte do corpo? Rosto é, de certa forma, a demonstração de nossa personalidade. Veja que a maioria dos documentos pessoais, necessários para testificar nossa identidade, exige uma foto do… rosto. Por que não é exigida uma foto do braço, da mão (já que as impressões digitais, em algumas ocasiões, são exigidas) ou de qualquer outro membro? Refletindo sobre o tema rosto humano, Roger Scruton afirmou:
“Meu rosto também é aquela parte de mim a que outras pessoas dirigem sua atenção, sempre que elas se dirigem a mim como ‘você’. Estou atrás do meu rosto e, contudo, estou presente nele, falando e olhando através dele para um mundo de outros”.2
O rosto é a parte de nosso corpo que mais utilizamos em nossa interação exterior, transcendental. Sobre isso, Scruton elucidou:
“Ver um rosto como rosto significa ir de algum modo além dos traços físicos e chegar a um todo que surge deles, assim como uma melodia surge de uma sequência de sons modulados, e que é, como bem diz Levinas, ao mesmo tempo visitação e transcendência”.3
Nossos principais órgãos senso-perceptivos (olhos, nariz e boca) situam-se no rosto. Jesus afirmou que os nossos olhos são a candeia do corpo (Evangelho segundo Mateus 6:22-23). De acordo com tal afirmação, são o que eles veem que determina a condição de todo o corpo. Foi o olhar para o fruto proibido que gerou na mulher a cobiça pelo ilícito (Gênesis 3:5). Não foi em vão que o escritor da carta aos hebreus advertiu: “tendo os olhos fitos em Jesus, autor e consumador da nossa fé” (Hebreus 12:2).
Não podemos deixar de considerar a importância da fala. Conforme vimos anteriormente, o universo, e todas as coisas naturais e sobrenaturais que nele existem foram criados pelo “Disse Deus”. A primeira interação de Deus com o homem, em sua condição de ser vivente, foi a instrução, ou seja, a Palavra falada (Cf. Gênesis 1:28). Claro que a “boca” de Deus, bem como o Seu dizer não são equivalentes aos dos humanos. Embora a Bíblia afirme que Deus possui rosto (Gênesis 3:8, 17:1, Êxodo 33:20, Salmo 13:1), não é como o rosto humano. No entanto, Jesus foi e É o Deus Filho que se fez homem (Filipenses 2:7, João 1:14). Ele foi a plena manifestação da face, dos olhos e da boca de Deus (Evangelho João 14:9, Colossenses 1:15-16).
Os ouvidos estão próximos ao rosto. Ouvir possui uma importância crucial para o nosso relacionamento com Deus e com o próximo. Pois a fé vem pelo ouvir a Palavra (Romanos 10:17). Antes de Deus estabelecer, através de Moisés, os dois mandamentos que resumem toda a Lei (Deuteronômio 6:5, Marcos 12:28-30), Ele ordenou: “Ouça, ó Israel, O SENHOR, o nosso Deus, é o único Deus” (Deuteronômio 6:4). Foi baseado neste princípio que Jesus, ao contar Suas parábolas e emitir Suas mensagens às sete igrejas da Ásia, disse: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (Evangelho segundo Mateus 13:9, Apocalipse 2:7). Embora aqui Jesus não estivesse falando dos ouvidos naturais, eles também são abarcados pelo ensino escriturístico. O processo de degradação humana começou quando a mulher, juntamente com o homem, ouviu a ardilosa proposta da serpente e a considerou como algo válido. Seu coração absorveu a mentira que seus ouvidos ouviram. A catástrofe foi total.
Conforme exortou o apóstolo João, um verdadeiro seguidor de Jesus deve andar como Ele andou (I João 2:6). Ter nosso rosto resplandecente consiste em contemplarmos Jesus, através de Sua Palavra, com os nossos olhos naturais e espirituais (Hebreus 12:2), sermos ouvintes e praticantes de Sua Palavra (Tiago 1:22) a fim de falarmos do que está cheio o nosso coração (Evangelho segundo Mateus 12:34). Creio que Jesus, ao fazer tal elucidação, tinha em mente o Salmos 119:11: “Guardo em meu coração as tuas Palavras, para não pecar contra ti”.
O fato do rosto de Moisés ter brilhado foi o efeito de toda a sua vida (coração, alma e forças) ter sido inundada pela Palavra de Deus, fundamento de Sua aliança com ele. Não foi em vão que o sábio Salomão preconizou que o coração alegre aformoseia o rosto (Provérbios 15:13). O rosto sincero reflete o que está no coração. Em outras palavras: Se quisermos saber o que está no coração de uma pessoa, olhe bem em seu rosto. Ainda que o ser humano tenha a habilidade de dissimular sentimentos com o rosto a fim de enganar seu próximo, uma pessoa em sã consciência sabe discernir quando um rosto, ainda que expressando alegria, pertence a um indivíduo triste. A alegria é opaca e, conforme preconiza o adágio popular, “o sorriso é amarelo”. Sobre isso, Scruton afirmou:
“Quando leio um rosto, estou de algum modo tomando conhecimento da maneira como uma pessoa aparece para outra”.4
O rosto de Moisés brilhou por ser ele a parte do corpo que revela quem somos aos outros.
Considerando tudo o que foi falado até aqui, não podemos nos esquecer de que, em Sua transfiguração, o rosto de Jesus foi transformado (Evangelho segundo Lucas 9:29). Neste episódio, Moisés viu a face que pediu para Deus lhe mostrar, o que lhe foi negado naquela ocasião (Êxodo 33:20). Na transfiguração de Jesus, seu pedido foi atendido. Tommy Tenney elucidou sobre este episódio em seu livro Os caçadores de Deus.
Assim como o rosto de Moisés, o mediador da Antiga Aliança, resplandeceu, o rosto de Jesus, o mediador da Nova Aliança, também resplandeceu. Não foi apenas o rosto, como também as suas roupas. Tal fato demonstra que a transformação do rosto de Jesus refere-se a revelação de Deus na plenitude de Sua pessoa. Interessante notar que esta gloriosa manifestação aconteceu diante de Moisés, que representa a Lei (Torah), e de Elias, que representa Os profetas (Nabin). Ambos juntos são a plenitude de toda a Antiga Aliança (Evangelho segundo Mateus 22:40).
Desta forma, podemos ver que o rosto de Jesus foi transformado pelo fato de Sua vida estar plenamente alicerçada pela Palavra de Deus (Evangelho segundo Mateus 5:17), à semelhança de Moisés, cujo rosto resplandeceu por estar aliançado com Deus por meio de Sua Palavra, e munido dela através das duas tábuas em suas mãos. Mãos, na Escritura, fala de ação. Foi neste mote que Jesus afirmou: “Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus” (Evangelho segundo Lucas 9:62). Portanto, nossas ações, os frutos de nossas mãos, devem estar fundamentadas pela Palavra de Deus, alicerce de Sua aliança a nós. Foi baseado neste princípio que Davi declarou: “Quem poderá subir ao monte do SENHOR? Quem poderá entrar em seu Santo Lugar? Aquele que tem mãos limpas (ações) e coração puro (intenções)” (Salmo 24:3-4).
Ser a luz do mundo implica em termos o nosso rosto (em todos os seus pormenores) refletindo o brilho da Glória de Jesus Cristo, que é a Luz do Evangelho (II Coríntios 4:4). É sobre isso que o apóstolo Paulo elucidou ao dizer: “E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando como por espelho a Glória do Senhor, somos transformados de glória em glória, conforme a sua imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (II Coríntios 3:18). Rosto desvendado é o nosso próximo tema de análise. Até lá!
1 KEMPIS, Tomás de. Imitação de Cristo. Franca-Jandira: Principis, 2019, p. 36.
2 SCRUTON, Roger. O rosto de Deus. São Paulo: É Realizações. 2015, p. 112.
3 Ibid, p. 111.
4 Ibid, p. 114.