segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O fermento da hipocrisia

 Matheus Viana

É impressionante detectar como o episódio vivido por Jesus, há milênios, seja atual: “Nesse meio tempo, tendo-se juntado uma grande multidão de milhares de pessoas, ao ponto de se atropelarem umas às outras, Jesus começou a falar primeiramente aos seus discípulos, dizendo: ‘Tenham cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia’” (Evangelho segundo Lucas 12:1). 

Ao nos depararmos com o termo hipocrisia, surge em nosso interior uma súbita rejeição. Isso, portanto, é fruto de um entendimento raso, e por vezes equivocado, do termo. Uma análise mais profunda é suficiente para vermos que, apesar de rejeitarmos a expressão, somos hipócritas em alguma área de nossas vidas. Mas, antes de tal análise, convém nos atentarmos ao contexto em que Jesus fez tal advertência.
     
Ele estava cercado de uma grande aglutinação de pessoas que queriam ver Seus milagres. Atualmente, não é diferente. Além de ser um país majoritariamente cristão, nas últimas quatro décadas o Brasil viveu – e ainda vive - um crescimento vertiginoso no número de cristãos, principalmente de confissões evangélicas/pentecostais e neopentecostais. 

De acordo com o mais recente censo demográfico feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgado em 2012, o número de evangélicos cresceu em 61,45% no período de 10 anos (2000 a 2010). Conforme afirma o IBGE, em 1980 o número de evangélicos no Brasil era de 6,6% da população. Em 1991, foi para 9%. Em 2000, 15,4% da população afirmavam ser cristãos evangélicos. Em 2010, este número subiu para 22,2%. 

De acordo com pesquisa realizada pelo DataFolha, nos dias 5 e 6 de dezembro de 2019, dos 80% dos brasileiros que confessam ser cristãos, 31% afirmam ser evangélicos. Ou seja, os evangélicos-protestantes, atualmente, são uma porcentagem bastante expressiva em um país de colonização católica.
       
Contudo, esta multidão, em sua esmagadora maioria, não é formada por discípulos. Conforme Lucas registrou, Jesus preteriu a multidão e falou, de forma exclusiva, com os discípulos. Qualquer semelhança com a realidade contemporânea não é mera coincidência. Não faço esta afirmação a esmo, desprovido de fatos que a sustentem. Por isso, apresento-os de agora em diante.
     
Assim como na época de Jesus, os pertencentes à multidão buscam Seus milagres e a plena satisfação de suas necessidades, não fazendo questão de Seu ensino. Ao ler este texto, surge em minha mente a lembrança de alguns templos repletos de pessoas buscando o milagre de cada dia. Se você for sincero, reconhecerá que em sua mente também. Toda a liturgia do culto neles exercida é voltada para que o participante possa fazer a sua súplica. Uma espécie de “mercado dos milagres”. A gritaria histérica que eclode dos púlpitos, e concomitantemente entre os participantes, lembra o frenesi de uma bolsa de valores em operação.
     
Não há ensino da Escritura. Apenas o entoar de canções curtas e repetitivas, semelhantes a um mantra, regadas a orações repletas da sentença: “Eu determino, em nome de Jesus”. Há ainda aqueles que não querem nem o milagre da manifestação sobrenatural, mas apenas receber roupa, alimento e dinheiro. Ou seja, pessoas que frequentam tais denominações com o entendimento de que Igreja é nada mais, nada menos do que uma instituição de assistência social. Assim, veem o cristianismo (ou melhor, uma séria distorção dele) como um assistencialismo. Ao fazer uma clara dicotomia entre Graça preciosa e graça barata, Dietrich Bonhoeffer afirmou:

“De acordo com a palavra de Jesus, há somente dois sentimentos em relação a Deus: devoção ou desprezo. Se não amarmos a Deus, o odiaremos. Não existe meio-termo. Deus é assim, e por isso mesmo Ele é Deus; só pode ser amado ou odiado. Existe somente esta opção: amarmos a Deus ou os bens do mundo”.[1]

A mensagem de Jesus aos discípulos foi sucinta: “Tenham cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”. Ele não utilizou a analogia do fermento em vão. Por ser um mestre judeu, estava evocando o princípio estabelecido na Lei, contido na festa dos pães asmos (Êxodo 23:14-15). Esta celebração tinha como intento relembrar a libertação do povo hebreu da escravidão do Egito. 

Na primeira Páscoa da história, o cordeiro sacrificado, cujo sangue seria vertido nos umbrais das casas para que seus moradores não fossem atingidos pelo anjo da morte, seria comido pelas famílias com pão sem fermento (Êxodo 12:8). Os discípulos, assim como o pão asmo, que tipifica Cristo (Evangelho segundo João 6:51)[2], devem ser sem fermento. Foi baseado neste princípio que o apóstolo Paulo advertiu aos coríntios: “... vocês não sabem que um pouco de fermento faz toda a massa ficar fermentada? Livrem-se do fermento velho, para que sejam massa nova e sem fermento, como realmente são. Pois Cristo, nosso cordeiro pascal, foi sacrificado” (I Coríntios 5:6-7).
     
Uma breve autoanálise é suficiente para diagnosticarmos o fato de que há muitos fermentos em nós. O apóstolo João advertiu: “Aquele que diz não ter pecado, a si mesmo se engana, e a verdade não está nele” (I João 1:8). Este fermento reside em nossa mente (Romanos 12:2, II Coríntios 10:5) e em nosso coração (Jeremias 17:9, Evangelho segundo Marcos 7:21-23, Tiago 4:3). O coração do homem foi contaminado como consequência do fermento da serpente corromper primeiramente sua mente (Gênesis 3:1-6). Este foi o fato sobre o qual o apóstolo Paulo fundamentou sua exortação:

“O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie de sua sincera e pura devoção a Cristo. Pois se alguém vem pregando um Jesus que não é aquele que pregamos, ou se vocês acolhem um espírito diferente do que acolheram ou um evangelho diferente do que aceitaram, vocês o toleram com facilidade”.
(II Coríntios 11:3-4)

Como podemos ver, a estratégia do inimigo não muda. O primeiro ponto em que ele visa nos contaminar com o seu ardiloso fermento é a nossa mente. Contudo, o intento é alcançar o nosso coração de modo a perverter a nossa devoção. Por isso o apóstolo Paulo preconizou que, para vivermos a boa, perfeita e agradável vontade de Deus, temos que renovar a nossa mente. Ou seja, tirarmos dela todo tipo de pensamento que não seja condizente com a Soberana Palavra de Deus. Esta renovação de mente, no entanto, consiste primeiramente em não nos conformarmos com o sistema secular vigente (Cf. Romanos 12:2) em quaisquer de seus âmbitos. Eis o desafio.
     
Atuo na área da educação - pedagógica e teológica. O número de professores cristãos contaminados pelo fermento do materialismo histórico/dialético - que sustenta as teologias liberal e da libertação -, do existencialismo e de várias outras filosofias destoantes das Escrituras é assustador. O pior é que, para as sustentarem, usam textos bíblicos completamente amputados de seus contextos históricos, gramaticais e semânticos. Praticam, exaustivamente, uma hermenêutica equivocada, recheada de anacronismos e fundamentada no método histórico-crítico. Estão contaminados pelo fermento do secularismo, mas não têm consciência disto. Ignoram a advertência do apóstolo Pedro:

“Antes de mais nada, saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito Santo”.
(II Pedro 1:20)

Como resultado de suas mentes terem sido capturadas por pressupostos seculares, seus corações foram por eles cooptados, fazendo com que se tornem a base para suas devoções. O próprio Jesus afirmou: “Onde está o seu tesouro, ali está o seu coração” (Evangelho segundo Mateus 6:21). Tal afirmação foi feita na esteira da elucidação de Salomão: “De todas as coisas que deves guardar, guarde o coração, pois dele procedem as fontes da vida” (Provérbios 4:23) e também da declaração do salmista: “Guardo as tuas palavras no meu coração, para que eu não peque contra Ti” (Salmo 119:11). O que está em nosso coração passa, primeiramente, pela nossa mente. O que tem passado por ela? Não seja contaminado por nenhum fermento!
     
Ao advertir os discípulos, Jesus falou de um fermento específico: o dos fariseus. Por quê? Havia naquele contexto uma dicotomia clara no tocante à Lei de Deus: a interpretação feita pelo movimento rabínico, conhecida como tradição oral, cuja classe dos fariseus fazia parte dela; e a interpretação feita por Jesus e ensinada aos Seus discípulos (Evangelho segundo Mateus 5:1-20). Vemos este confronto no Evangelho segundo Marcos 7:1-13. Jesus e Seus discípulos não observavam os costumes guardados pela tradição oral, que era uma interpretação rabínica da Torah. A análise de Jesus no tocante a ela foi precisa:

“Bem profetizou Isaías acerca de vocês, hipócritas; como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão me adoram; seus ensinamentos não passam de regras ensinadas por homens’. Vocês negligenciam os mandamentos de Deus e se apegam às tradições dos homens”.
(Evangelho segundo Marcos 7:7-8)

     Qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência.




[1] BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Paulo: Mundo Cristão, 2016. p. 138.
[2] Neste episódio, Jesus fez referência de Sua vida como pão de forma análoga ao maná, o pão (espécie de cereal) que Deus derramava do céu para que o povo dele se alimentasse (Êxodo 16:4-16). Mas este texto, embora se refira ao maná, também fala do corpo de Cristo como sacrifício, fazendo desta forma alusão ao sacrifício pascal.