Matheus Viana
Entre a informação que
recebemos e o conhecimento que, a partir dela, desenvolvemos há a cognição. Para melhor compreensão deste
tema, devemos considerar o conceito judaico – do qual o cristianismo primitivo
utilizou – de ser humano. Quando um
judeu se refere ao nefesh, traduzido
para o português como alma, não fala
apenas do interior do homem, tampouco se refere àquilo que os gregos chamaram
de psique. Mas fala do homem
integral. Conforme afirmei no livro Culto
racional, os judeus não fazem distinção entre corpo e alma, comum no
pensamento grego que influenciou o pensamento ocidental, incluindo o
cristianismo. Além disso, também não considera a distinção entre céfalo (cérebro) - e noia/nous (mente) - e psique, também conhecida como neuro e psico.
Jean Piaget, ao seu modo, chamou este processo de equilibração
majorante. Nesta teoria, a captação da informação – que recebemos através
de nossos sentidos - é chamada de assimilação e a obtenção do
conhecimento de acomodação. A cognição
é composta de dois elementos distintos, porém coesos: razão e emoção. O que significa que um não é completamente
destituído do outro. Eles abarcam seus respectivos desdobramentos, que Herman
Dooyeweerd chamou de aspectos modais ao descrever a experiência
do ser humano com a realidade que o cerca[1].
Dooyeweerd dividiu esta experiência em duas atitudes: a pré-teórica, que é o conjunto de premissas que fundamentam o modo como o indivíduo interpreta suas experiências empíricas (senso-percepção);
e a teórica que é o ato da
cognição em si. Assim, vemos que ele chamou de atitude pré-teórica as premissas de fé que interpretam as informações que o ser humano recebe, e a teórica o processo de transformar estas informações em conhecimento. A atitude teórica,
segundo Dooyeweerd, se divide em dois aspectos: lógicos e não-lógicos.[2] Ele classificou como
lógicos os aspectos concernentes à razão.
E como não-lógicos os concernentes à fé e também a emoção/afeto. Podemos ver, portanto, que ele
chamou cognição de atitude teórica.
Nossa reação diante de uma informação nova, no caso positivo, será, no
momento da assimilação - ou da atitude pré-teórica - de admiração e depois de um esforço racional para
acomodá-lo. No caso negativo, será de rejeição, o que acarretará, em algumas
vezes, na eliminação do próximo passo. Quando criança, o ser humano não é capaz
de distinguir estes dois elementos com seus respectivos aspectos. Por isso é
comum entre os adolescentes e jovens, embora mais frequente nas mulheres, um(a) aluno(a) se apaixonar pelo(a)
professor(a). Pois sentirá admiração pelo que aprendeu e não conseguirá, por
conta de sua incapacidade de discernimento, separar o conteúdo ensinado de quem
o ensina. Na medida em que amadurece, o indivíduo consegue colocar cada
elemento em seu devido lugar.
Os gregos, principalmente Platão e seus discípulos, diziam que uma
pessoa virtuosa é aquela cujos desejos são governados pela razão. No caso do cristão,
Cristo governa sua razão e esta, por sua vez, governa suas emoções (II
Coríntios 10:5-6). Suas ações serão demonstrações de tal governo. Mas no
indivíduo infanto-juvenil, esta capacidade (virtude) ainda não está
amadurecida. Diante do novo, em muitos casos, a emoção guiará sua cognição.
Embora saiba que a vontade de Deus, revelada em Sua Palavra, seja a coisa
correta a fazer (razão), o indivíduo irá preteri-la diante de sua vontade,
pautada majoritariamente nas emoções.
Diante de uma proposta inédita que lhes for apresentada (informação),
como por exemplo, a do homossexualismo, alguns agirão (assimilação) com
curiosidade, que é uma maneira como a admiração se manifesta. Devido à
incapacidade de desmembrarem emoção de razão, peculiar do período etário, tal
curiosidade dará a estes indivíduos a impressão de que nutrem, de fato, um
desejo pelo mesmo sexo. O que os levará a deduzirem (acomodação), por eles
mesmos, que são homossexuais. Há um salto de mera curiosidade para a ilusória
definição de sua identidade, o que se tornará hábito.
O desejo,
oriundo da curiosidade, fará a razão sucumbir diante dele. No entanto, há outro
problema ainda mais grave. O padrão ético/moral – no qual a razão se fundamenta
- atual é definido pelo Estado com todos os seus tentáculos, utilizados na
destruição de todo padrão ético/moral fundamentado nos absolutos de Deus ao
homem (antropológico) e ao universo (cosmológico), chamando-os de construções
sociais. Vide a questão, por exemplo, da identidade de
gênero. Neste rolo compressor relativista, a família, principal ente
responsável pela formação do indivíduo e base da sociedade, é alvo de severa
degradação.
O ideal do Estado, como instrumento do movimento revolucionário, é
suprimir a moral judaico-cristã para estabelecer uma moral soberana, pautada
puramente nos desejos humanos. Proposta elucidada por Friedrich Nietzsche, ao
definir o que chamou de moral nobre, que denominou como vontade
de poder. Vale lembrar que seu raciocínio está fundamentado na vontade
de viver elucidada por Arthur Schopenhauer, que afirmou ser vontade a
essência humana. Ou seja, o ser humano não apenas possui vontade.
Ele é vontade. A partir desta premissa, afirmou que
o caráter humano se divide em três partes: inteligível, empírico e
adquirido. O inteligível, segundo ele, é o conhecimento racional da
vontade. Sobre o empírico, afirmou: “O caráter empírico, simples
instinto natural, é em si desprovido de razão. Suas próprias manifestações são
impedidas pela razão...”[3].
Neste raciocínio, Schopenhauer definiu justiça como o
ato de permitir que o indivíduo realize sua vontade (que ele não diferenciou
de instinto), pois isso significa que ele está vivendo; e injustiça como
o ato de impedir, por qualquer meio, que o indivíduo realize sua vontade, pois
isso significa que ele está morrendo. É notório que, nesta proposta, a razão se
transforma em obstáculo do livre fluir da vontade, por isso é rechaçada. A
consequência é o estabelecimento da supremacia das emoções.
No entanto, séculos antes, Agostinho de Hipona desvendou este enigma em
seu livro Cidade de Deus quando falou do caráter do império
romano e seu ataque contra a Igreja Cristã. Conforme preconizou Karl Marx em
seu livro A ideologia alemã, o homem é aquilo que faz, e não o que
pensa. Segundo ele, as ações do homem são determinadas pelos seus instintos e
desejos, e não por um padrão racional determinado pela burguesia.
Mas algo a ser considerado é que, para Marx, os instintos e desejos
humanos se resumem na busca pela libertação da “opressão burguesa”,
representada pela moral judaico-cristã. Todas as demais vertentes deste
pensamento no âmbito sociocultural, com suas muitas nuanças, emanam desta
fonte, que nada mais é do que desdobramento do episódio ocorrido no Éden entre
o ser humano e Deus. Ao ver a ética que Deus lhe estabeleceu como privação da
liberdade (interpretada como uma autonomia utópica), cuja deturpação foi fruto
da mente corrompida pelo engano de Satanás, o ser humano desejou o ilícito e
irrompeu em sua rebeldia contra Deus e Seus mandamentos. Qualquer semelhança
não é mera coincidência.
Ainda que não possa ser considerado como um movimento homogêneo, parte
considerável do pensamento iluminista do século 18 visou, no afã pela mesma
liberdade (autonomia) que o homem buscou no Éden, que a razão deixasse de ser
influenciada – e em alguns casos governada - pela teologia cristã. É
considerado por muitos como o ápice do período chamado de modernidade.
Mas o resultado foi uma razão centrada em si mesma, não tendo nada além dela. Com isso, a tão buscada liberdade se transformou numa máquina regida pelos
ditames racionais. A saída foi o salto existencial, que marcou o período pós-moderno.
A posição em que a sociedade se encontra é uma síntese de toda esta miscelânea.
O salto existencial não visa somente libertar o homem das correntes da razão,
mas também dos absolutos de Deus (chamados de religiosos) que não são somente
racionais. Pois qualquer absoluto é visto como elemento opressor.
Um fator preponderante é que o conhecimento que tem regido as ações de
muitos indivíduos que se confessam cristãos não está fundamentado em Cristo. É
comum o fato de alguns jovens cristãos, vítimas do processo elucidado nas
linhas acima, orarem para que Deus tire desejos pecaminosos de seus corações.
Pelo fato de tal clamor não ser atendido, deduzem que o próprio Deus, por ser
soberano, colocou tais desejos. Tanto a oração como a dedução são equivocadas
por estarem baseadas puramente nas emoções. Em outras palavras, na vontade
de viver e de poder.
Fica nítida neste caso a falta de um pensamento alicerçado nas doutrinas
da soberania de Deus e da pecaminosidade e responsabilidade humanas. O motivo?
Informação incorreta. Eis a lógica: Informação incorreta gera conhecimento
incorreto que redunda em ações incorretas. Diante deste quadro, convém
questionar: Quais informações os jovens têm recebido?
O evangelho autoajuda atualmente disseminado deturpa a imagem de Deus,
do ser humano e do relacionamento entre ambos. Por ser um evangelho
egocêntrico, a soberania de Deus é reduzida ao desejo humano. Pecado gera
culpa, que por sua vez gera mal-estar existencial. Logo, é necessário
transferir a culpa do pecado para a soberania de Deus. Proposta pra lá de
indecente. De tal forma, temos o disseminar de um evangelho que não confronta o
pecado a fim de libertar o homem de sua terrível condição, fazendo valer o
fruto do penoso trabalho de Cristo (Isaías 53:10). Mas o de causar bem-estar.
O apóstolo Paulo falou de dois tipos de tristeza, que podemos
interpretar como mal-estar: o gerado por Deus, através do
arrependimento que é fruto da ação do Espírito Santo em nós; e o do mundo (II
Coríntios 7:10). Mas em nenhum momento fala de bem-estar ou conforto.
Apesar de serem expressões semelhantes, confronto é
completamente diferente de conforto. O Evangelho nos confronta visando
nos conformar a Cristo, o padrão perfeito de Deus ao ser
humano (Efésios 4:13). O conforto é um estágio posterior.
Assim, não há verdadeiro conforto, que a Bíblia chama de descanso,
sem confronto. Se o cristianismo que você vive é confortável, não é
cristianismo. É idolatria. Ou melhor, é um engodo religioso construído por
uma cognição emocional.
[1] DOOYERWERD, Herman. No crepúsculo do pensamento: Estudos sobre a
pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010. p. 57.
[2] Ibid. p. 54
[3] SCHOPENHAUER,
Arthur. Do mundo como vontade e representação: Como vontade – Segunda consideração. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012 (Saraiva
de bolso). p. 68.