É possível que a urgente necessidade da abordagem
cristã em uma sociedade secularizada deturpe o caráter doutrinário de muitos
cristãos em vários aspectos. Minha análise é sobre duas situações coesas e
complementares. A primeira é o fato de que, no afã de exercerem o mandato cultural, muitos descem ao
“vale” da guerra cultural desprovidos do devido armamento. Estão despreparados
por não serem integralmente conformados à fé cristã (Cf. Romanos 12:2, II
Coríntios 10:5).
A segunda é que, por estarem despreparados, desconsideram a
importância de uma teologia sólida, satisfatoriamente firmada na doutrina
apostólica. Já ouvi alguns intelectuais afirmando que enquanto vários cristãos
destilam e desfilam teses e temas teológicos no espaço público, a cultura
contemporânea sucumbe diante da hegemonia secular, bem como as pessoas que por
ela estão subjugadas.
Esta denúncia procede. Contudo, tal
verdade não anula a importância do ensino da doutrina correta visando, obviamente, sua prática (Atos 1:1, Tiago
1:22). Ser cristão não consiste em ser
militante de uma ideologia e/ou partido político, mas seguir a Cristo. O que
implica em vivermos com todo o nosso coração, alma, intelecto e forças para que
a vontade de Deus seja estabelecida na terra (Cf. Mateus 6:9-10. 16:18). Conforme
o próprio Jesus preconizou: “A minha
comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou a fazer a boa obra” (João
4:24).
No seio deste dilema, floresce o desejo de
sermos relevantes. O que faz brotar a seguinte questão: o que é ser relevante?
De acordo com o atual senso comum, é ter muitos seguidores nas redes sociais,
ser famoso ou, no contexto propriamente cristão, ser líder de uma denominação
eclesiástica com muitos membros e uma grande infraestrutura material. Todavia,
a relevância bíblica não é isso. Ao olharmos as condutas de Jesus e de Sua
Igreja em seus primeiros séculos, vemos que altos índices demográficos e
infraestrutura ampla não consistem, necessariamente, em relevância.
Vejamos o contraste presente na vida de
Jesus sobre a terra entre multidão e discípulos. Da grande multidão que o
seguia - na casa dos milhares -, poucas centenas permaneceram fiéis, após Sua
morte, ressurreição e ascensão, em segui-Lo e disseminar o Seu legado.
Resumindo, a grande multidão não era relevante. Na última Festa dos
Tabernáculos a qual Jesus participou, muitos dos Seus discípulos O abandonaram
ao ouvirem o Seu discurso (João 6:66). Números não redundam, por eles mesmos,
em relevância.
O pequeno grupo composto por pessoas que
permaneceram em Jerusalém (Atos 1:12-15), conforme Jesus ordenara aos Seus
discípulos mais próximos (Atos 1:8), foi o início da Igreja sobre a terra. Ela foi
relevante (Atos 2:47). Mas na medida em que cresceu, a relevância diminuiu ao
ponto de Deus permitir uma perseguição a fim de que os cristãos fossem
dispersos e o Evangelho disseminado por toda a terra (Atos 8:1). Em outras
palavras, para que a Igreja voltasse a ser como foi no início (Atos 8:4-8). O
que fazia a Igreja ser relevante? Permanecer na doutrina de Jesus e,
consequentemente, dos apóstolos (Atos 2:42). O crescimento era resultante da
relevância, e não o contrário. A “receita” não mudou com o tempo.
A abordagem ao tema relevância é pertinente. O cristão genuíno sente, como uma chama em
seu interior, a necessidade de que sua devoção seja relevante. Diante deste dilema, há a tendência de
aplicar a este quesito um significado conformado à cultura contemporânea, distante
do seu original. E isto implica em dois riscos: 1) - o de não sermos uma Igreja
relevante pensando ser (Apocalipse 3:17-18); 2) - pensarmos que não estamos
sendo relevantes quando, na verdade, somos (Apocalipse 3:8). Na primeira
situação, o ufanismo escamoteia e, com isso, impede a verdadeira relevância. Na
segunda, a dúvida consome, aos poucos, as nossas forças, conduzindo-nos ao
desânimo e à desistência. Eis, portanto, a questão que não quer calar: O que é,
de fato, ser relevante? A resposta pode ser encontrada em Eclesiastes 11:1: “Lança o teu pão sobre as águas, pois depois
de muitos dias, o acharás...”.
Para que possamos compreender a mensagem
contida nesta advertência de Salomão, precisamos considerar os símbolos
presentes no texto com seus respectivos significados. Pão fala da provisão de Deus. Em Êxodo 28:30, vemos que sobre a mesa
que ficava junto à Arca da aliança, eram colocados os pães da proposição, que faziam alusão à provisão de Deus ao Seu
povo durante o êxodo rumo à terra prometida (Êxodo 16:34), como consequência da manifestação de
Sua Presença. Fazendo esta alusão, Jesus afirmou: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu” (João 6:51). Ou seja, Ele foi (e É) a verdadeira
provisão de Deus a nós.
Assim, podemos ver que este pão que devemos lançar sobre as águas fala do Pão vivo que veio do
céu, a plena manifestação e provisão de Deus aos homens (João 1:14, Filipenses
2:6-7, Colossenses 2:9). Conforme Ele mesmo afirmou, as Escrituras testificam
Dele (João 5:39). No entanto, lançar o
pão implica na proclamação do Evangelho de Cristo, consequente de andarmos
em Seu caminho (João 14:6), diante de Sua face (Gênesis 17:1, Mateus 5:48).
Este pão
deve ser lançado em um lugar específico: “sobre as águas...”. Águas, na Escritura, simbolizam o fluir
(manifestação) da presença de Deus. Vemos, por exemplo, em Ezequiel 47 a
descrição das águas que inundaram todo o Templo que o profeta visualizou em sua
experiência transcendental com Deus. No livro de Apocalipse, lemos a descrição
da visão que o apóstolo João teve: “Então
o anjo me mostrou o rio da água da vida que, claro como o cristal, fluía do
trono de Deus e do cordeiro” (Apocalipse 22:1).
Podemos ver, então, os dois elementos
cruciais para um cristianismo relevante: pregar o Evangelho de Jesus Cristo no
fluir da manifestação de Deus por nosso intermédio. É evidente a coesão
necessária entre erudição e devoção. Erudição na Palavra de Deus
(Pão/Escrituras) e a consequentente devoção
que redunda em prática (Cf. Tiago 1:22), ou seja, no fluir da manifestação
de Deus através de nossas ações fundamentadas em Sua vontade. Não foi em vão
que Deus, através de Seu anjo, deu pão e
água para que o profeta Elias se
alimentasse e saísse da irrelevância do claustro em que se encontrava (I Reis
19:6-8).
Não há como lançar o pão sem recebê-lo primeiramente (Mateus 6:11). Questão de
causa e efeito. Que tipo de pão você
tem recebido? O pão colocado na mesa
que ficava junto à Arca era asmo, sem
fermento. O mesmo pão que deveria ser feito e comido pelos hebreus durante a Páscoa
(Êxodo 12:15, 23:15). Elucidando sobre este aspecto da Lei aos cristãos em
Corinto, o apóstolo Paulo redarguiu: “Vocês
não sabem que um pouco de fermento leveda toda a massa?”. O que isto significa? Que o Evangelho não pode
ser levedado por nenhum tipo de fermento.
Ou melhor, não pode ser conformado a filosofias ou ideologias humanas
(Colossenses 2:9), tampouco às nossas vontades. Conforme preconizou o apóstolo
Pedro: “Antes de mais nada, saibam que
nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois jamais a
profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus,
impelidos pelo Espírito Santo” (II Pedro 1:20-21).
Uma vez que somos fiéis em lançar o nosso pão sobre as águas, eles
retornarão. Isso fala do cumprimento do propósito da vontade de Deus. Foi sobre
isso que Deus decretou através do profeta Isaías: “Assim será a palavra que sai da minha boca, não voltará vazia, mas
fará aquilo que me apraz e prosperará no propósito pelo qual eu a enviei” (Isaías
55:11). Pois em Deus nosso trabalho não é vão (I Coríntios 15:58). Como podemos
ver, a relevância propriamente dita não é obra nossa, mas do Espírito Santo
através do nosso trabalho. Da mesma forma que, na criação, o Espírito pairava
sobre a face das águas (Gênesis 1:2), Ele paira sobre as águas do fluir da
Presença de Deus, onde se encontram o nosso Pão, fazendo com que ele volte cumprindo a Sua vontade. É certo
que, mesmo depois de muitos dias, o
encontraremos.
Leia também: O pão da presença.
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