quinta-feira, 9 de março de 2017

A relativização substancial



Matheus Viana

Toda palavra carrega consigo algumas propriedades. Cito três: um significado semântico, um propósito ao ser emitida e uma tonalidade determinada pela carga emocional de quem a emite. A primeira e a segunda são de ordem racional; a terceira, de ordem emocional.


Jesus é apontado no livro de João como Logos (Evangelho segundo João 1:1). Esta expressão, por ser uma palavra, é composta das propriedades citadas acima. Conforme vimos no livro Culto racional, João quis mostrar que o significado de Logos aplicado a Jesus era completamente diferente do que possuía no senso comum de sua época, pautado na cultura grega. Quis mostrar que Jesus não era apenas uma personificação da mente de Deus, uma espécie de Demiurgo que criou o mundo sensitivo; mas que era O Eterno que deu origem ao universo e a tudo o que nele há, seja de caráter natural ou sobrenatural.


João, portanto, mudou o significado semântico de Logos. Pois revelou não apenas o caráter racional desta expressão, mas também o espiritual. Evidenciou a síntese entre ambos. Seu propósito foi revelar quem, de fato, Jesus é. A tonalidade com que a proferiu foi por conta de ter andado com Ele e tê-Lo visto ressuscitado (I João 1:1-2), e não como resultado de um mero espasmo emocional ou psicológico.


Atualmente, os significados que aplicamos às palavras são definidos pelas nossas cargas emocionais. O aspecto sentimental tem a primazia – para não dizer supremacia - em relação ao racional/espiritual. Veja, por exemplo, a definição de templo de acordo com os paradigmas atuais. Alguns parecem shopping centers. São representações simbólicas do desejo de seus dirigentes de fazerem com que os frequentadores sintam-se plenamente satisfeitos por serem, primeiramente, atraídos pela beleza externa do recinto. A estética sobrepuja a essência. Assim, o belo, enquanto massageia o ego, cria em tais indivíduos a expectativa imaginária de que seus anseios serão saciados.


A velha máxima da economia corporativa de criar a demanda e posteriormente a oferta está em voga. Tal fato é o sintoma da acomodação à cultura consumista. Assim, a fé vira objeto mercadológico, com tabela de preços para a oração e o sermão. “Unção” e “profecia” são itens a parte no cardápio. Se estivesse em nosso meio, Jesus repetiria o episódio em que expulsou os cambistas do templo em Jerusalém.


Com isso, a definição (significado semântico) de Igreja sofre desgaste e seu propósito sofre um contundente desvio. Ao invés de ser a comunidade dos salvos que se reúnem para prestar a Deus o Culto racional que Lhe é devido, passa a ser um conjunto de pessoas que se reúnem com o único propósito de satisfazer necessidades pessoais. Isto quando não é para reunião de marketing multinível. Um culto puramente humanista, egocêntrico, ególatra. Tudo isso, portanto, é efeito do fato de a definição de quem é Jesus ser vítima de uma grave deturpação.


Quando Ele não é um mero modelo de militância política/social, como alguns adeptos da teologia da libertação O definem, é um agente das bênçãos materiais e físicas, como a teologia da prosperidade O define. Ambas são aberrações provenientes de uma definição de Jesus pautada nos moldes sentimentais e, por conseguinte, materialistas. Como outras existentes no vasto mercado da fé, são produtos de uma profunda devoção às emoções. Afinal, na presença de Deus há abundância de alegria. Logo, um cristão não pode viver triste. Por isso não pode sofrer angústias e padecer males.


Neste mosaico do pseudo-evangelho, o significado de alegria, como você pode notar, também foi deturpado. É visto como satisfação de desejos ou, como em alguns casos, produto de um modelo de culto que tem se tornado cada vez mais comum: o do entretenimento. Assim, o significado que a Sagrada Escritura contempla: o do contentamento, sai de cena, literalmente, do teatro da fé. Ou seria do picadeiro? Não, não é do cinema?

Se a definição de quem é Jesus for deturpada, tudo o mais será. Por isso o apóstolo Paulo afirmou, com forte convicção, que considerou todas as outras coisas como esterco para obter o conhecimento de quem Cristo é (Filipenses 3:7-9). Pois sabia que isso transformaria sua vida de forma completa. Eis aí outra palavra que sofreu deturpação: conhecimento. Há duas definições dominantes em voga: uma que preconiza que Cristo é um mero personagem histórico e, por isso, deve ser estudado de acordo com os parâmetros racionais da história, eliminando qualquer atributo de caráter sobrenatural (chamado por seus representantes de mítico); e outra de que tal conhecimento pode ser obtido apenas por experiências espirituais livres de toda “teologia inútil”.


Trata-se da polarização: liberalismo x pentecostalismo. Ambos são de caráter gnóstico. Sim, refiro-me à seita oriental que perturbou a Igreja em seus primeiros anos de existência e que preconizava, grosso modo, que um determinado conhecimento de Jesus, revelado a poucos escolhidos, garantia a salvação do homem, e não Seu sacrifício perfeito consumado no calvário. Para uma, o “conhecimento especial” é obtido através do racionalismo. Para a outra, é obtido através de experiências “sobrenaturais” em momentos de “êxtase espiritual”. A exacerbação do sentimentalismo floresce, e o ensino ortodoxo da Sagrada Escritura é deixado de lado. Afinal, a “palavra mata, mas o espírito vivifica”. Eis um exemplo clássico da regra básica da hermenêutica: Texto fora de contexto vira pretexto.


Diante desta realidade, surge outro termo cujas propriedades sofreram degradação: espiritualidade. O catálogo de definições é vasto. De rodopios, passando por voo da águia, até a unção do cachorro que urina nos quatro cantos de uma cidade para “marcar território”. Literalmente, “coisa do cão”. Você acha que é brincadeira? Queria que fosse. Recuso-me a entrar nos pormenores dos atos proféticos por respeito ao meu e ao seu bom senso. Não é, todavia, a expressão ato profético vítima de degradação em suas propriedades? A resposta é óbvia.


Assim como a definição de quem Jesus é foi deturpada, a de quem é o ser humano também foi. Aqui vemos outra polarização. Em um polo, ele é um deus. No outro, um miserável condenado à ira divina, totalmente destituído da Imago Dei. Resumindo, um demônio. A Sagrada Escritura, todavia, não abarca tais definições. O homem é um ser formado à imagem de Deus. No entanto, por conta do pecado original, esta imagem foi perdida - e não extinta -, o que deixou o homem à mercê de sua natureza corrupta. Deus, em Sua terceira pessoa (Espírito Santo), habita no homem restaurando-lhe Sua imagem (II Coríntios 3:18). Tal processo, todavia, só acontece após a regeneração que Ele (Espírito Santo) opera no interior do homem quando Jesus torna-se Senhor e Salvador de sua vida.


Eis o cerne do problema: Pelo fato da definição de quem é Jesus ter sido deturpada, Seu Senhorio sobre o ser humano também foi. Se Jesus não é quem realmente é, não é visto e reconhecido como o SENHOR. Consequentemente, a definição de cristianismo é deturpada. No começo de tudo, Deus falou, A Luz se manifestou e tudo criou. Jesus é a manifestação da Palavra, A Luz que deu origem à criação (natureza). A Palavra, contudo, tem sido deturpada. Logo, toda a criação, como um efeito cascata, também. (Gênesis 3:17). Por isso, conforme elucidou o apóstolo Paulo, ela “... aguarda, com grande expectativa, que os filhos de Deus sejam revelados” (Romanos 8:19).

Bem vindo à realidade nua e crua! Precisamos aprender quem, de fato, Jesus é a fim de que possamos revela-Lo ao mundo  e responder à expectativa elucidada pelo apóstolo Paulo.