quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Ortopedia

Matheus Viana

Ortopedia é uma palavra que conheço bem por ser um deficiente físico. Por vários anos fui objeto deste ramo da medicina. Sem sucesso. No entanto, a aplicação de ortopedia, em seu significado amplo às nossas vidas, possui uma conotação mais profunda, e é ela que desejo compartilhar.

Orto é o termo grego para correto ou original. Pedia é uma variação de paidia, expressão derivada de pedo, criança. Ou seja, ortopedia não tem haver somente com a correção do corpo ou exclusivamente de ossos, conforme reza o senso comum. Mas se refere ao modelo correto que mede a nossa normalidade desde o nascimento.

Mas não é só a normalidade física. As Escrituras preconizam: “Fomos formados”. Conforme afirmei em outras ocasiões, formar é diferente de criar. É fazer algo de acordo com um modelo pré-estabelecido. Fomos formados à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1:27). Mas como assim, imagem? Deus é Espírito! Isso mesmo. Contudo, Jesus é a imagem do Deus invisível (Colossenses 1:15). O que significa que Ele é o modelo ortopédico usado para a nossa formação.

Claro que esta afirmação não diz que somos à imagem e semelhança físicas de Jesus. Mas sim de que Ele é o nosso padrão ético. Ou seja, Jesus se encarnou para que possamos conhecer o modelo ao qual fomos formados e, consequentemente, ao qual devemos viver. No livro O discípulo radical, John Stott descreve esta verdade em três âmbitos distintos, porém coesos: passado, presente e futuro.

No passado, Stott utiliza a afirmação do apóstolo Paulo registrado em sua carta aos romanos, ao qual já utilizei em textos anteriores: “Aos que Deus de antemão os escolheu, também os predestinou para serem conforme à imagem de seu filho, a fim de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Romanos 8:29). No presente, utiliza a afirmação paulina descrita em sua carta aos coríntios: “E todos nós com o rosto desvendado, contemplando como por espelho a Glória do Senhor, somos transformados de Glória em Glória, conforme à Sua imagem, como pelo Senhor, o Espírito.” (II Coríntios 3:18). No de futuro, utiliza a afirmação joanina: Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele; porque assim como é o veremos.” (I João 3:2).

Fomos formados por Deus com um padrão, que foi manifesto por Adão e Eva antes da queda. E é a esta normalidade que Deus deseja que sejamos restaurados. Portanto, podemos dizer que o Jesus encarnado é a ortopedia de Deus ao homem.

O instrumento desta ortopedia é a cruz (Evangelho segundo Mateus 16:24). Contudo, o primeiro passo para atingirmos este padrão – esta sim, a verdadeira evolução - é termos a consciência de que somos anormais, ou seja, de que estamos distantes da normalidade divina estabelecida ao ser humano no momento de sua criação. Pois Jesus não veio para os sãos, mas para os doentes. E esta consciência é que nos levará à plenitude da cruz. E sua ação em nós, por intermédio do Espírito Santo, nos restaurará ao padrão ortopédico.

Assim como o primeiro passo rumo à ortopedia de Deus ao homem é a consciência da anormalidade que nos acomete, nossa mente é o primeiro alvo de restauração. Por isso o apóstolo Paulo preconizou: “Transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, perfeita e agradável vontade de Deus.” (Romanos 12:2). Na medida em que pensamos como Cristo, como resultado da ação da cruz, passamos a ter o mesmo sentimento, conforme o apóstolo Paulo diz em sua carta aos filipenses: “Tende em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus.” (Filipenses 2:5). Algumas traduções, como a NVI (Nova Versão Internacional), trazem a palavra “atitude” no lugar de “sentimento”. A expressão original é froneisto, que significa o pensamento que antecede uma atitude. Sendo assim, Paulo nos exorta a termos o mesmo pensamento que Jesus teve que o levou a tomar sobre si a cruz em nosso lugar. Não uma mera intelectualidade, mas uma racionalidade prática que envolve mente e coração. Eis o caráter do Shemá (Deuteronômio 6:5), que Jesus cita aos saduceus (Evangelho segundo Mateus 22:37-39). Eis a base ortopédica de Deus a nós.